Raízes do proto-ceticismo em De Vetera Medicina, por Rafael Huguenin

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Rafael Huguenin é professor de Filosofia na FAETEC.
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Resumo

A presente exposição tem como principal objetivo examinar a medicina antiga conforme exposta no tratado De Vetera Medicina, composto no século quinto a. C. Tentaremos mostrar que, neste texto que registra a prática da medicina antiga e que foi integrado ao Corpus Hipocraticum, se encontram já formulados alguns problemas, métodos e critérios que exercerão importantes papéis na argumentação cética. Em outros termos, esperamos mostrar que o modo de reflexão dos antigos céticos, desde as suas raízes mais remotas, retomam e desenvolvem certa atitude epistemológica comum às mais diversas práticas sociais ordinárias que caracterizavam o contexto social no qual atuavam.

Palavras-Chave

De Vetera Medicina, Corpus Hipocraticum, Ceticismo

Abstract

This exposition has as main objective to examine the ancient medicine as exposed in DeVetera Medicina’s Treatise, composed in the fifth century b. C. We will try to show that in this text that registers the ancient practice of medicine and has been integrated into the Corpus Hipocraticum, some problems, methods and criteria that already can be found formulated, will exert important roles in the skeptical argument. In other words, we hope to show that the way of thinking of the ancient skeptics, from its more remote roots, retake and develop certain epistemological attitude that is common to several ordinary social practices that characterized the social context in which they acted.

Key Words

De Vetera Medicina, Corpus Hipocraticum, Skepticism

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A presente exposição tem como principal objetivo examinar a medicina antiga conforme exposta no tratado De Vetera Medicina, composto no século quinto a. C. Tentaremos mostrar que, neste texto que registra a prática da medicina antiga e que foi integrado ao Corpus Hipocraticum, se encontram já formulados alguns problemas, métodos e critérios que exercerão importantes papéis na argumentação   cética. Em outros termos, esperamos mostrar que o modo de reflexão dos antigos céticos, desde as suas raízes mais remotas, retomam e desenvolvem certa atitude epistemológica comum às mais diversas práticas sociais ordinárias que caracterizavam o contexto social no qual atuavam.

1. Medicina e ceticismo

As relações próximas entre medicina e ceticismo são de conhecimento de todo estudante do período helenístico. São notórias e reconhecidas pelos especialistas as conexões muito próximas não apenas entre os argumentos filosóficos elaborados pela tradição cética e a prática dos médicos, mas  também na terminologia, no estilo direto e objetivo de escrita e principalmente na maneira segundo a qual se concebia a atividade filosófica. Como se sabe, os céticos compreendiam a sua filosofia antes de tudo como uma terapia capaz de curar certos filósofos que apresentavam sintomas  de pretensões dogmáticas. De acordo com Sexto Empírico, nossa principal fonte sobre o ceticismo antigo, “o cético, por amor à humanidade, pretende curar, por meio do discurso, até onde pode, a prepotência e a precipitação dos dogmáticos”[1]. Assim como os “médicos” possuem “remédios” com diferentes graus de potência, que prescrevem conforme a gravidade das mais diversas afecções corpóreas, os céticos oferecem diversos argumentos, que são ministrados em dosagem adequadas aos diversos graus da “afecção de convicção dos dogmáticos”[2].

Não se trata, como sabemos, de uma mera proximidade estilística. Afinal, Sexto Empírico era ele mesmo um médico. Em Contra os Matemáticos, ele louva Asclépio, o deus da medicina e da cura, como “o fundador de nossa ciência” [3]. Conforme veremos adiante, o próprio nome com o qual ficou conhecido faz alusão à escola dos médicos empíricos. De acordo com Diógenes Laércio, Sexto era membro desta escola. Esta informação é confirmada por Pseudo Galeno, segundo o qual Menódoto e Sexto Empírico “fortaleceram acuradamente” [4] a escola empírica. Na Vida dos Filósofos Ilustres, Diógenes Laércio oferece uma relação dos primeiros filósofos pirrônicos na qual, além do próprio Sexto, pelo menos quatro outros são caracterizados explicitamente como médicos da escola empírica: Menódotos de Nicomedia, Teoidás de Laodicéa e um discípulo de Sexto chamado Saturnino[5]. É possível que outros também tenham sido médicos[6].

Como era de se esperar, essa proximidade se faz presente em várias passagens de Sexto Empírico. Neste sentido, a medicina é provavelmente o campo que mais fornece exemplos e modelos à investigação dos céticos. Um dos tópicos que mais atesta esta aproximação diz respeito à aplicação médica da noção de causalidade. O tema da causalidade em geral aparece em vários momentos da obra de Sexto Empírico, sendo tratado mais detidamente em três passagens[7]. A principal delas ficou conhecida como os Oito Modos de Enesidemo[8], passagem na qual se coloca sob escrutínio certas etiologias pelas quais os dogmáticos nutrem grande apreço. Apesar do caráter radical e aparentemente irrestrito destes ataques, os estudiosos traçam uma distinção entre dois tipos de causalidade considerados pelos céticos[9]. Temos, por um lado, um padrão que estabelece conexões entre causas não evidentes e fenômenos aparentes, padrão considerado dogmático. Temos também, por outro lado, um padrão ordinário de causalidade, que estabelece apenas conexões causais entre os próprios fenômenos, todos eles atestados pela experiência humana comum.

Ora, quando consideramos o estado da medicina no contexto do helenismo, notamos que as próprias diferenças entre as escolas de medicina podem ser traçadas a partir dos modelos etiológicos que adotam[10]. Com isso, faz-se necessário considerar brevemente a medicina por ocasião da composição das obras de Sexto Empírico, tema da próxima seção.

2. Medicina no contexto do Helenismo

Antes de tratarmos de nosso tema propriamente dito, qual seja, o esboço de procedimentos e critérios proto céticos em um tratado médico do século quinto, julgamos apropriado traçar em linhas gerais o estado da medicina por ocasião da atuação de Sexto Empírico. Deste modo, quando voltarmos nossa atenção para o século quinto, poderemos destacar de modo mais claro os pontos relevantes para a nossa discussão. Pois bem, na época em que Sexto Empírico compôs a sua obra, a medicina se encontrava já  consolidada e dividida em três escolas ou tendências bem estabelecidas[11].

Temos, em primeiro lugar, os médicos conhecidos como lógicos, racionalistas ou dogmáticos. Este grupo não constituía propriamente uma escola no sentido estrito do termo, mas uma espécie de tendência geral ou atitude comum a várias escolas. Sua origem pode ser traçada a partir da própria medicina de Hipócrates, a partir do final do século quinto em diante, e talvez até mesmo antes disso. Em linhas gerais, todos os racionalistas defendiam que uma compreensão teórica dos fenômenos era essencial à prática médica eficaz. Ou seja, as tendências médicas racionalistas defendiam que um tratamento apropriado das doenças requer uma compreensão de suas causas ocultas e subjacentes, compreensão esta que só poderia ser obtida por meio do raciocínio teórico.

De acordo com os defensores desta tendência, todas as causas das doenças são intrínsecas e só podem ser conhecidas por meio de inferências causais a partir dos sintomas evidentes, em um processo chamado pelos empiristas e pelo próprio Galeno de “indicação” e que pode ser definido como uma passagem do visível para o invisível, do evidente para o não evidente. Por exemplo, uma vez detectado determinado sintoma ou afecção evidente, o médico atribui a ele uma causa interna e não evidente, que variava conforme a concepção fisiológica adotada pela tendência racionalista em questão. Ou seja, dependendo da fisiologia dogmática adotada, a causa interna para certo sintoma poderia ser um excesso ou deficiência dos humores, uma aderência inapropriada de algum humor a um órgão ou, no caso dos defensores do corpuscularismo defendido pelos seguidores de Asclepsíades, um fechamento dos poros ou um entupimento dos vasos internos[12].

Temos, em segundo lugar, os seguidores da escola empírica de medicina. Os membros desta escola, ao contrário dos dogmáticos, rejeitavam todo tipo de pretensão teórica em nome de um apelo radical à experiência empírica. Ou seja, acreditavam que a prática médica eficaz deveria se basear unicamente em conexões evidentes de eventos diretamente observáveis. Seu surgimento, apesar de incerto, costuma ser datado após o ano 250 a. C. Sua fundação é atribuída a um aluno de Herófílo da Calcedônia conhecido como Serápion de Alexandria, ou ainda a Philinos de Cós, também aluno de Herófilo. Outros procuram remontar a origem do empirismo médico ao próprio Herófilo, que teria colocado sob suspeita certos tipos de inferências causais na medicina. Em um fragmento registrado por Galeno, Herófilo sustenta que “se há ou não uma causa <intrínseca>, ela é por natureza incognoscível”[13]. Em outro fragmento, ele teria afirmado: “consideremos os fenômenos primeiros, mesmo que não sejam primeiros” [14]. Segundo a maior parte dos estudiosos, a escola empírica teria se desenvolvido com bases justamente nestes preceitos.

A epistemologia subjacente a este tipo de prática médica procura se apoiar exclusivamente em fenômenos evidentes. Deste modo, as conexões nas quais se baseiam o diagnóstico, o prognóstico e, se for o caso, a terapêutica são conexões evidentes e publicamente atestáveis de repetições de eventos de um mesmo tipo. O médico deveria contar apenas com seu exame pessoal, na experiência acumulada de outros médicos e em um procedimento conhecido como “transição para o similar”, por meio do qual o tratamento que se revelou eficaz em uma parte do corpo era transferida para outra parte. Este último processo, por meio do qual alguns empiristas esperavam descobrir novas curas, era alvo de controvérsia interna e também com os dogmáticos[15].

Temos, por fim, os médicos da escola metodista. Defendiam, antes de tudo, a simplicidade da medicina, que poderia ser aprendida em poucos meses. Eles se assemelham aos empiristas ao se apoiarem apenas em fenômenos evidentes e rejeitarem qualquer apelo a causas não observáveis. No entanto, julgavam a experiência acumulada de pouca importância para a terapia eficaz. De acordo com eles, as afecções em si mesmas são suficientes para indicar o tratamento adequado. Ou seja, os próprios sintomas, tomados em si mesmos, indicariam a terapia correta. Para isso, eles possuíam uma escala universal de sintomas que indicaria, para cada caso e de modo supostamente exaustivo, as medidas terapêuticas a serem adotadas.  A origem desta escola, que surgiu por volta do século I a. C., é atribuída a Themisson de Laodicéia ou a Thêssalos de Trales. Ambos era discípulos de Asclepsíades de Bitínia, defensor da teoria corpuscular, segundo a qual as funções vitais do organismo se explicam a partir do fluxo de corpúsculos  ou partículas pelos dutos, cavidades e poros do corpo[16].

Apesar do caráter dogmático do corpuscularismo, ele parece ter fornecido a base para o metodismo médico ao reduzir todo estado patológico a duas condições: “relaxamento”, quando os corpúsculos fluem muito livremente, e “constrição”, quando o fluxo normal é interrompido. Os metodistas teriam simplesmente dispensado as causas intrínsecas (ação dos corpúsculos) para levar em conta apenas os estados resultantes. A partir destes estados resultantes, também chamados de “comunidades aparentes”, foi possível estabelecer os graus de uma escala universal dos sintomas a partir da qual era possível prescrever rapidamente a terapia adequada.

Conforme afirmamos anteriormente, a diferença básica entre as escolas de medicina acima apresentadas pode ser traçada a partir dos modelos causais utilizados. De um lado, por parte dos racionalistas, há um emprego irrestrito de conexões causais entre o evidente e o não evidente. De outro lado, apesar das diferenças, os empiristas e metodistas estreitam os limites das conexões causais, ora as limitando ao que é evidente, ora enfatizando sua pouca utilidade na prática médica. Com isso, como essa é uma discussão central do ceticismo, aprofundam-se ainda mais as já apontadas relações entre ceticismo e medicina. Na seção seguinte, para melhor compreender estas relações, recuaremos alguns séculos para examinar o tratado mais antigo do Corpus Hipocraticum. Um exame atento deste texto, sobretudo no que tange aos métodos e critérios nele esboçados a partir da prática concreta da medicina, nos obrigará talvez a incluir os médicos mencionados no texto na lista dos assim chamados proto céticos.

3. Medicina Antiga

O tratado Medicina Antiga, também conhecido por seus títulos latinos De Vetera Medicina ou De Prisca Medicina, faz parte do Corpus Hipocraticum. A data de composição estimada por W. H. S. Jones, tradutor da edição que consultamos, situa-se “não muito antes de 427 a. C., nem muito depois de 400 a. C.”[17]. Se as datas são corretas, o texto foi composto em um período anterior à composição dos diálogos platônicos. O texto oferece um ataque a um grupo de pensadores que tentava, talvez por influência dos primeiros filósofos, fundamentar a prática médica em uma teoria que reduzia a fisiologia humana às interações de um ou mais pares de opostos como quente e frio, seco e úmido e assim por diante. Podem ser vistos, de modo geral, como os precursores da tendência racionalista de medicina que vimos na seção anterior. Estes médicos  defendiam que todas as doenças tem como causas um ou mais destes fatores. Segundo o autor do tratado,

Todos aqueles que assumiram a responsabilidade de falar ou escrever sobre medicina, estabelecendo como hipótese para suas explicações o quente, o frio, o úmido, o seco ou qualquer outra coisa, limitando assim a causa primária das doenças e da morte dos seres humanos a uma ou mais destas coisas como se fossem causas para todos os casos, estão errados em muito do que dizem[18].

O termo grego utilizado no texto para caracterizar os princípios causais básicos utilizados por estes médicos é ypotesis, entendida aqui como explicação última para toda doença e morte dos seres humanos[19]. Com isso, o diagnóstico consiste em determinar a causa da doença a partir de uma suposta configuração desequilibrada destas hipóteses e a terapia, por sua vez, na prescrição dos opostos. Em termos mais gerais, o autor do tratado ataca aqueles que postulam uma determinada constituição corpórea a partir de alguns elementos básicos, tomados como os princípios causais de toda doença e, a partir desta constituição elementar, tentam curar os pacientes restaurando o equilíbrio originário de seus elementos constituintes por meio da prescrição da ypotesis contrária. Segundo o autor do tratado, “de acordo com a explicação deles, se o que causa o dano é uma ou outra destas <hipóteses>, ela deve ser removida pelo seu oposto” [20].

Este método, insiste o autor, jamais trará resultados satisfatórios. O principal erro desta tendência, tratada no texto como uma grande novidade ou como uma espécie de modismo, é ignorar que a medicina já tinha se estabelecido há muito tempo como uma “técnica” genuína, sendo amplamente reconhecida como tal em virtude dos diferentes graus de competência de seus praticantes. Esta técnica da medicina antiga dispensa o uso de tais hipóteses, necessárias apenas e tão somente quando se estuda coisas “não-visíveis” e “confusas”, como parece ser o caso das investigações acerca “das coisas do céu ou sob a terra” [21]. Quando alguém se propõe a “conhecer” e discorrer sobre estas coisas, elas não serão “evidentes” nem para quem fala nem para quem escuta, de modo que será impossível determinar se as explicações são ou não verdadeiras.

A determinação da verdade neste tipo de investigação torna-se impossível em virtude da falta de um critério claro ou de uma referência que comprove as afirmações feitas. De acordo com o texto, “não há aquilo em relação a que, tendo sido apontado, é necessário para conhecer com clareza” [22]. A expressão piros o, que pode ser traduzida como “em referência a que” ou “em direção ao qual”, funciona neste contexto como aquilo que confirma as afirmações e assegura a sua clareza. Esta mesma expressão exerce, ao longo de todo o tratado, a mesma e importante função de indicar precisamente o que, em casa caso, funciona como critério de confirmação e clareza. Em todos os contextos, ela parece indicar não apenas clareza no sentido de simplicidade, mas algo publicamente atestável. Com isso, como o caso em questão envolve conhecer as  coisas “do céu” ou “sob a terra”, temos aí um tipo de conhecimento impossível de ser confirmado ou refutado, pois as evidências permanecem constantemente remotas e inacessíveis ao observador.

A medicina antiga, prossegue o autor, não precisa de tais hipóteses. Desde os tempos mais “antigos” ela já possuía um “princípio” e um “método”. Por meio deste método e deste princípio, frutos da “própria necessidade” e que remontam às próprias origens do ser humano, foram feitas muitas e maravilhosas descobertas[23]. Todo o seu processo de descoberta se deu empiricamente, a partir da observação atenta das “afecções” que se manifestam de modo evidente nos seres humanos. O passo inicial se deu a partir da constatação de que espécies e indivíduos diferentes são afetados de modos distintos pelos mesmos alimentos. Ou seja, o mesmo tipo de alimento beneficia um grupo de indivíduos e prejudica outros. Com base nesta diferença/semelhança de reação, chega-se a uma (i) compreensão da “constituição” comum a um grupo de indivíduos e também a uma (ii) associação entre certos alimentos e determinadas “afecções” em cada constituição. A partir daí, na base da tentativa e erro, “ao curso de um longo período”, descobriram como modificar, combinar e dosar os alimentos para que se adaptem às constituições em questão[24]. O fundamental neste processo de descoberta da medicina é que ele não pressupõe uma teoria geral da constituição humana, pois se baseia em um conjunto de descobertas empíricas e na própria opinião compartilhada dos outros médicos.

Este método de descoberta antecipa um procedimento utilizado em um tropo atribuído a Enesidemo por Sexto Empírico. No segundo dos Dez Modos, a suspensão é obtida a partir da constatação de que diferenças nas constituições dos seres humanos são responsáveis por diferenças na apreensão dos fenômenos e também na capacidade intelectual[25]. Assim como no procedimento médico descrito acima, a constatação de que há diferentes constituições físicas é obtida quando se nota que os homens “não são afetados do mesmo modo pelas mesmas <coisas>” [26].

Um pouco mais adiante no texto, no capítulo 9, coloca-se em discussão a eficácia da aplicação destas descobertas ao tratamento dos pacientes. O autor deixa claro que a medicina possui um grau limitado de “precisão”. Afinal, se tudo é tão simples como foi sugerido, se a medicina consiste na habilidade de prescrever um regime benéfico para cada tipo de doença e paciente, a prática da medicina seria relativamente simples e o seu grau de eficácia bastante elevado. No entanto, os erros médicos, assim como em nossos dias, eram relativamente comuns e um bom médico era simplesmente aquele que errava menos. Esta imprecisão é uma decorrência da dificuldade em prescrever uma dieta específica para cada paciente em questão, pois qualquer excesso ou deficiência poderia causar efeitos danosos.

A precisão, neste caso, depende da obtenção de uma “medida” precisa. No entanto, como só temos acesso indireto ao estado interno do paciente, não há nenhuma medida, nenhum “número” ou qualquer outra coisa “que, referindo-se a qual <tu> conhecerás com precisão”. O único critério ou medida disponível ao médico, “aquilo em relação a que” o juízo médico se confirma, é  “a sensação do corpo”. Isto envolve tanto as reações e “afecções” do corpo do paciente ao tratamento quanto a “observação” e o “julgamento pessoal” do médico acerca destas afecções. Com isso, as associações envolvidas procuram levar em conta apenas fenômenos evidentes e publicamente atestáveis.

Um exame atento do tratado em questão, no entanto, oferece diversas passagens que não podem ser tomadas propriamente como posicionamentos de um ceticismo em sentido estrito. A principal delas diz respeito aos limites do conhecimento obtido pela medicina antiga, que não se limitaria apenas ao que é evidente e claro. Em seu trabalho de curar os doentes, o médico deverá se apoiar em alguns conhecimentos de aspectos internos da constituição humana que não podem ser observados diretamente, como a estrutura e o estado dos órgãos internos do paciente, por exemplo. No capítulo 22, o autor do tratado descreve como a medicina antiga obteve conhecimento das estruturas internas dos corpos, tomadas como não evidentes. Para este fim, os médicos se utilizaram não apenas da observação direta e da experiência acumulada de outros médicos, mas também de analogias estabelecidas entre fenômenos passíveis de observação e aspectos internos e não observáveis da constituição humana.

Ora, este procedimento poderia ser tomado como exemplo de um alvo possível para o quarto modo de Enesidemo, pois parece pressupor que as coisas “não aparentes” se comportam de modo análogo às coisas “aparentes”, ignorando que as coisas não aparentes talvez se comportem não de “modo semelhante”, mas de “modo peculiar” [27]. Como um dos pólos da analogia é completamente indeterminado, este procedimento deve ser colocado sob suspensão. No entanto, o autor insiste que a evidência observável deve ser extraída da vida ordinária e da experiência médica concreta, que contava já com alguns instrumentos de medição e extração. Além disso, os resultados deste procedimento devem também ser confirmados pela experiência médica compartilhada.

Curiosamente, o método de investigação apresentado no texto não se restringe ao campo da medicina. No capítulo 20, quando o autor volta a atacar os médicos proto dogmáticos, ficam claras as relações destes médicos com os primeiros filósofos, investigadores da physis. A crítica veiculada nesta passagem, no entanto, vai além da medicina para abarcar o próprio projeto dos pré-socráticos, compreendido neste contexto como uma investigação “acerca da natureza” que poderia se beneficiar do método desenvolvido pelos médicos:

Certos médicos e especialistas asseguram que ninguém pode conhecer a medicina caso ignore o que é o homem; aquele que pode tratar apropriadamente os pacientes deve aprender isto, eles dizem. Mas a questão que eles levantam diz respeito à filosofia; ela é o território daqueles que, como Empédocles, escreveram acerca da ciência natural, sobre o que é o homem desde sua origem, como surgiu o primeiro <deles> e a partir de quais elementos ele foi construído. Mas minha visão é a de que, em primeiro lugar, tudo o que os especialistas ou médicos disseram ou escreveram acerca da ciência natural não pertence mais à medicina do que à arte da literatura. Além disso, também sustento que um conhecimento claro acerca da ciência natural só pode ser adquirido a partir da medicina e de nenhuma outra fonte[28].

Ou seja, além de reafirmar a inutilidade de uma compreensão geral da physis dos seres humanos para a medicina, o autor afirma também que até mesmo a cosmologia poderia se beneficiar das descobertas e métodos da medicina! Em outras palavras, o conhecimento da constituição dos seres humanos obtido pela experiência acumulada dos médicos, em especial no que diz respeito ao papel exercido pelas substâncias que afetam e constituem os seres humanos, contribuiria também para a compreensão da cosmologia. No entanto, como as coisas do “céu e sob a terra” são tão ou mais inapreensíveis que a constituição interna do corpo humano, os resultados não seriam satisfatórios.

Tudo o que foi colocado até aqui comprova que a prática da medicina antiga e o ceticismo compartilhavam uma mesma atitude epistemológica. Ambos procuravam limitar a aplicação da noção de causalidade ao que pode ser confirmado pela experiência, ou seja, ao que é considerado claro e aparente.  Em Contra os Lógicos, em sua extensa discussão sobre a noção de critério, Sexto Empírico sustenta que Enesidemo traça uma importante diferença entre os próprios “fenômenos”. Alguns fenômenos  “se manifestam em comum para todos”. Outros fenômenos, por outro lado, se manifestam “privadamente para alguém”. Nesta perspectiva, a verdade seria simplesmente confirmada pelas coisas que se manifestam em comum para todos e em torno das quais “não passa despercebido o entendimento comum” [29]. Ora, a noção de experiência atribuída em De Vetera Medicina aos antigos médicos  parece envolver exatamente esta forma de experiência compartilhada, indo além da observação pessoal do médico, de sua experiência pessoal e das afecções que se manifestam no paciente.

Conclusão

O ceticismo, conforme tentamos mostrar ao longo deste trabalho, se enraíza profundamente nas atividades práticas que constituíam a vida social dos gregos antigos. A medicina antiga, que se desenvolveu apoiando-se principalmente na observação, no exame pessoal do médico e na experiência acumulada de outros médicos, se configura também como uma importante raiz do proto ceticismo. Se podemos falar em conclusão em um trabalho como este, ainda incipiente, ela se limita à constatação de que o ceticismo retoma, prolonga e dá continuidade a atitudes e  discussões de extrema importância para a vida ordinária. Neste sentido, o estudo atento da medicina antiga oferecerá importantes elementos não apenas para uma compreensão mais acurada do ceticismo, mas para a filosofia antiga como um todo. Se a filosofia, como sustentou Jean-Pierre Vernant, era “filha da cidade”, faz-se necessário situá-la firmemente neste cenário e ampliar os seus pontos de contato com as mais diversas atividades que constituíam a vida social daquele período, principalmente no caso do ceticismo.

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[1]   PH, 3, 280.1-3. Seguimos aqui a tradução de J. Annas e J. Barnes.

[2]   PH, 3, 280.3-281.6

[3]   M, I, 260, 7.

[4]   Pseudo-Galeno, Introductio, 14, 684, 1.

[5]   DL, IX, 115-116. Ver também Hankinson, The Sceptics, p. 203.

[6]   Hankinson, The Sceptics, p. 203, também menciona Heráclides, professor de Enesidemo, que seria o empirista Heráclides de Tarento; menciona também Zeuxis, que era talvez o mesmo empirista conhecido por este nome.

[7]   Além dos Oito Modos, As outras duas passagens são PH, III, 5, 17-29 e Adversus Mathematicus, IX, 195-358.

[8]   PH, I, 17, 180-186.

[9]   Ver, a esse respeito, o artigo de Renato Lessa intitulado Ceticismo, causalidade e Patologias da Cognição Dogmática: Comentário aos Oito Modos de Enesidemo.

[10] Cf. Hankinson, Cause and Explanation in Ancient Greek Thought, p. 344-345.

[11] Ver, a esse respeito, Michael Frede, Philosophy and Medicine in Antiguity.Ver também Hankinson, The Sceptics, XIII,

[12] Pellegrin,  Ancient Medicine and its Contrribution to the Philosophical Tradition, p. 669-671.

[13] Apud Hankinson, The Sceptics, p. 203. Não tivemos acesso até o momento ao texto grego.

[14] Anonymous Londinensis, Iatrica Menonia, 21, 22-23.

[15] Cf. Hankinson, The Sceptics,p. 206-210.

[16] Sobre a escola metodista, ver Michael Frede, The Method of the So-Called Methodical School of Medicine. Ver também: Pellegrin, Ancient Medicine and its Contrribution to the Philosophical Tradition; Hankinson, The Sceptics, cap. XIII e Cause and Explanation in Ancient Greek Thought, cap. IX.

[17] Corpus Hippocraticum, De Prisca Medicina,  p. xxxii.

[18] Vetera Medicina, I, 1-6. Seguimos aqui a tradução de Mark J. Schiefsky.

[19] O termo u¸po¯qesij deve ser tomado neste contexto em seu sentido etimológico, como “base” ou “fundação”, entendido como objeto ou resultado do verbo ????????? (“eu coloco sob”).

[20] Vetera Medicina, XIII, 2. Seguimos aqui a tradução de Mark J. Schiefsky, com modificações.

[21] Vetera Medicina, I, 18.

[22] Vetera Medicina, I, 20-21.

[23] Vetera Medicina, II, 2-4.

[24] Vetera Medicina, III. Vale a pena consultar o detalhado comentário de Schiefsky, p. 152-171.

[25] PH, I, 15, 79-91.

[26] PH, I, 15, 87, 4-5.

[27] PH, I, 17, 182.

[28] Vetera Medicina, XX, 1-13. Seguimos aqui a tradução de W. H. S. Jones, com pequenas modificações.

[29] M, VIII, 8-9. Cf. Renato Lessa, Ceticismo, Causalidade e Patologias da Cognição Dogmática: Comentário aos oito modos de Enesidemo, p. 129-130.