Algumas considerações sobre a retomada do ceticismo no período moderno e a acusação de apraxia, por Rodrigo Pinto de Brito

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Rodrigo Pinto de Brito  é professor do Departamento de Filosofia da UFF.
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Resumo

Neste trabalho, far-se-á uma introdução ao acalorado debate ocorrido na década de 1980 — após a série de conferências cujos papers foram compilados sob o título de “Doubt and Dogmatism: Studies in Hellenistic Epistemology. Oxford: Claredon Press, 1980” — entre Michael Frede e Myles Burnyeat quanto à possibilidade de se viver concretamente o ceticismo e o alcance da epoché cética, demonstrando as duas interpretações standard e antagônicas sobre o assunto. Além disso, mostraremos também como é possível articular estes dois argumentos, aparentemente opostos, criando uma interpretação média em que a suspensão cética do juízo teria a mesma incisão pensada por Burnyeat, mas o cético se tornaria um homem comum como pensa Frede, livrando o ceticismo das acusações de apraxía e autorefutabilidade.

Palavras-Chave

Apraxía, Epoché

Abstract

In this work, we shall introduce the debate occurred in 80’s, between Michael Frede and Myles Burnyeat — after the lectures whose papers were organized under the title: “Doubt and Dogmatism: Studies in Hellenistic Epistemology. Oxford: Claredon Press, 1980”. The debate’s scope were the possibility to concretely live the skepticism and the epoché’s incidence, then we are going to show these two opposed and standard interpretations, and also the possibility to — throw the articulation of those interpretations of Frede and Burnyeat — create another third interpretation, called ‘middle interpretation’, a way to argue in favor of the wide epoché, as thought by Burnyeat, but, as result, the skeptic becomes an ordinary man, as thought by Frede. So, we think we can save the skepticism of apraxia and self-refutability.

Key Words

Apraxía, Epoché

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1-

La Flèche, o célebre colégio jesuíta de Anjou que outrora fora frequentado por Descartes e Marín Mersenne, abrigou também, nos idos de 1734, David Hume que lá começou a elaborar o ‘Tratado Sobre a Natureza Humana’, cujos livros ‘Do Intelecto’ e ‘Das Paixões’ publicou em 1739, somente um ano depois ‘Da Moral’ seria publicado. Sua obra não logrou sucesso, pelo contrário, os poucos que a leram chamaram Hume de herege e cético, e mesmo ateu, como se não bastasse, a sombra do ostracismo se avizinhava, e em 1745 foi-lhe vetada a Cátedra de Filosofia Moral da Universidade de Edimburgo.

Muito elucidativa do impacto inicial do ‘Tratado’ de Hume é a sua ‘Carta de um Cavalheiro a seu Amigo em Edimburgo’[1] — em que ele próprio, em uma das raras ocasiões em que se prestou à tréplicas, rebateu as acusações de ceticismo universal (porque “duvida de todas as coisas […] e sustenta a loucura de fingir acreditar em qualquer coisa com certeza”), de ateísmo (“ao negar a doutrina das causas e dos efeitos”, “), e de ter “solapado os fundamentos da moral, ao negar a diferença natural e essencial entre certo e errado, bem e mal, justiça e injustiça, tornando a diferença somente artificial e originada em convenções e pactos humanos”[2].

Mas não é tudo. Por si só eloquente é o fato de que mesmo o editor que tão arduamente trabalhou para publicar as obras completas de Hume, o Green a quem se atribui uma das edições padrão, considerava que o filósofo deliberadamente havia levado as já inconcebíveis noções de Locke e Berkeley acerca do funcionamento da mente humana e sua capacidade de conhecimento à consequências paradoxais e estapafúrdias, afirmando que não podemos conhecer os processos que interligam os corpos ou os fatos, as cadeias causais. Em suma, segundo a interpretação de Hume por Green, não há nada no mundo que faça sentido, exceto as impressões momentâneas e as ideias que esvoaçam pelas nossas consciências[3].

De fato, no fechamento do primeiro livro do seu ‘Tratado’, Hume vislumbrou um conflito insuperável entre as exigências da razão e da fé, porque sua razão o levara à conclusão cética de que ele não conhecia nada além de suas impressões. Esse conflito entre a filosofia e a própria vida repercutirá nas últimas décadas do século XVIII e Kant, assim como outros filósofos de seu tempo, se debateu com o problema da autoridade de uma razão que foi capaz de colocar em xeque as bases mesmas da existência.

De um modo geral, pensadores ‘das Luzes’ conferiam uma autoridade singular e notável à razão, o padrão Iluminista soberano da verdade que, imparcial, tinha princípios auto-evidentes pelos quais se poderia justificar a moral, o estado e a religião, e que, da mesma forma, poderia criticar todas as crenças e conhecer a natureza. Contudo, todos esses poderes da razão vieram a ser questionados a partir de meados do séc. XVIII, tal guinada ocorre porque, uma vez incidindo sobre a moral, a religião e o estado, a filosofia e a ciência acabaram por demoli-las, restam o ateísmo, o fatalismo e o anarquismo, como consequências do avanço do modelo mecanicista de ciência e dos modelos de conhecimento de Hume e de Spinoza, entre outros fatores.

Spinoza, em seu ‘Tratado Teológico-Político’, publicado anonimamente em 1670, criticou a religião revelada e o tipo de conhecimento — que na verdade é fantasia e se relaciona com a imaginação — envolvido nas profecias, para tal, aplicou o método cartesiano ao estudo e interpretação das escrituras. Como resultado, ele “transferiu o lugar da verdade da religião para o conhecimento racional na matemática e na metafísica”[4]. Além disso, investigando racionalmente a ocorrência de milagres, foi muito mais além do que faria Hume posteriormente e afirmou categoricamente sua impossibilidade, tendo em vista que, segundo ele, na natureza, os fenômenos sucediam-se de acordo com uma ordem fixa e imutável, o que haveria de fato seria a ignorância de seu funcionamento e das cadeias causais envolvidas nos fenômenos naturais. A aplicação de um método racional à investigação das escrituras fez com que o ‘Tratado’ de Spinoza fosse considerado “um livro pernicioso e detestável”[5].

Se há uma ligação determinada e necessária intrínseca à natureza, por outro lado, a razão, capaz de conhecer, também opera por ligações determinadas e necessárias intrínsecas às ideias, daí a famosa proposição 7 da ‘Ethica, ordine geométrico demonstrata’[6] (publicada postumamente em 1677): Ordo et connexio idearum idem est ac ordo et connexio rerum. Desse modo, para cada evento B deve haver um evento anterior A, tal que, dado A, B ocorre necessariamente. Mas, esse princípio, uma vez universalizado, leva ao ateísmo e ao fatalismo, pois deus e a liberdade têm que ser causas autoengendradas, que agem sem que haja uma causa mais anterior a elas.

Mesmo o modelo de conhecimento de Kant, que pretendia moderar o dilema de Hume, explicava a razão em termos de atividade a priori e declarava que a razão somente conhece a priori o que ela própria cria, ou o que se conforma com as leis de sua própria atividade. Não obstante, ao generalizarmos esse princípio, tudo o que poderíamos conhecer seriam os produtos de nossa própria atividade mental, e não uma realidade independente dessa atividade, levando-nos ao solipsismo. Essa consequência da teoria kantiana do conhecimento foi apontada por Hamann, Jacobi, Wizenmann, Schulze, Platner e Maimon[7], os primeiros críticos de Kant que defendiam, por seu turno, Spinoza ou Hume.

Jacobi chegou a afirmar que a razão e o ceticismo levavam a uma espécie de niilismo (usado, neste contexto, para denotar as consequências do solipsismo gerado por todas as investigações racionais) onde duvidar-se-ia da existência do mundo externo, de outras mentes e de deus. Isso, por sua vez, tornava impossíveis uma regra moral para a ação correta, o estabelecimento de um estado, de uma justiça, colocava em xeque toda a realidade e, em suma, tornava a vida impossível de ser vivida.

Voltando a Hume e ao ceticismo, a fragilidade da vida diante dos questionamentos céticos já o afligia no fim da década de 1730.

2-

Muito se discute sobre as fontes literárias dos ceticismos antigos, de modalidade pirrônica ou acadêmica, disponíveis não só à época de David Hume, mas também a partir da Renascença. Desse modo, sabe-se que a difusão do pirronismo na Europa, através dos textos de Sexto Empírico, começa a ocorrer a partir do séc. XV. Havendo, assim, uma edição latina dos ‘Esboços Pirrônicos’ (‘Pirroniarum Informacionum libri’), datando de 1470, bastante próxima do texto original em grego, que foi utilizada por Hermann Mutschmann na sua edição crítica da obra de Sexto[8]. Há uma outra versão latina, também de 1470, do mesmo livro (‘Pirronie Informaciones’), bem como de fragmentos de ‘Adversus Mathematicos’ III-V. Outra tradução latina do séc. XV é a de Giovanni Lorenzi, que faleceu em 1501.

Do séc. XVI, há a versão latina de John Wolley, que viveu entre 1530-96, bem como uma tradução de cerca de 1550, ainda não estudada, dos ‘Esboços Pirrônicos’, de Paéz de Castro, um grande humanista espanhol que lia hebraico, grego, caldeu e árabe e que fazia parte do círculo de Florian de Ocampo, Juan de Vergara, Alvar Gómez, Ambrosio de Morales, Diego Hurtado de Mendoza, e do cardeal de Burgos, de quem se tornou bibliotecário. Provavelmente o manuscrito grego que Paéz utilizou para a tradução é um que pertenceu até o séc. XVII ao Convento de S. Vicente de Plasencia e hoje é identificado como “Ms. Madrid Bib. Nac. 4709 (O 30)”.

Apesar disso, com a exceção de Gianfrancesco Pico della Mirandola, que lia grego e pôde ler Sexto no original, a tradução mais largamente difundida foi a versão latina de Estienne de 1562, que é a fonte mais provável de Sanchez, Montaigne, Charron e, mais tarde, Gassendi e mesmo Descartes, embora não se saiba ao certo quais autores céticos este tenha de fato lido.

Do séc. XVII há a edição das obras de Sexto de 1621 dos irmãos Chouet, também a edição inglesa completa dos ‘Esboços Pirrônicos’ na popularíssima ‘História da Filosofia’, de Thomas Stanley (publicada de 1655 a 1660 e reimpressa em 1687). No séc. XVIII, tem-se a edição de J. A. Fabricius do texto grego, com tradução latina, das obras completas de Sexto Empírico. Além disso, houve a tradução francesa das obras completas de Sexto, de 1725, e uma tradução em três livros dos ‘Esboços Pirrônicos’, por Claude Huart (‘Les Hipotiposes ou Institutions Pirroniennes de Sextus Empiricus en trois livres, Traduites du grec’) que tem duas revisões detalhadas, uma de 1726 (Leipzig), e outra de 1727 (nas ‘Memoires de Trevoux’) em que o pirronismo é atacado por vinte e seis páginas, pois que ameaçaria a verdadeira religião.

Ademais, embora não sejam traduções de Sexto, há o ‘Examen du Pyrrhonisme’ de Jean Pierre de Crousaz, que pretende responder a Sexto, Huet e Bayle. Isso atesta quão amplamente circulavam dos dois últimos, respectivamente, as seguintes obras: ‘Traite de la foiblesse del ‘esprit humain’ e ‘Dicionário’ [9].

Contudo, apesar da ampla difusão dos ceticismos antigos no séc. XVIII, Hume não demonstra, seja no ‘Tratado’, seja na ‘Investigação’, um conhecimento adequado do ceticismo pirrônico (e nem mesmo do acadêmico, de fato, mal sabe distinguí-los), conforme apresentado pela obra de Sexto.  Antes, apesar de citar Sexto em grego (na segunda ‘Investigação’, seção IV), o que denota que talvez tivesse acesso a uma outra versão que não a latina de Estienne, e das estranhas citações que faz na seção II da segunda ‘Investigação’ e na ‘História Natural da Religião’, sua fonte para o pirronismo parece ser mais de segunda mão (através de Huet ou Bayle)[10], ou advinda de uma leitura de Diógenes Laércio que compila doxografias depreciativas e encomiásticas sobre a ‘Vida de Pirro’ em um único livro, tornando dúbia, para dizer o mínimo, a interpretação sobre a coerência da filosofia/vida de Pirro, herói modelo do ceticismo pirrônico[11].

Mesmo não querendo, por hora, me alongar deveras em Hume, não posso seguir sem citar (mais uma vez, diga-se de passagem) o trecho que acho ser o mais emblemático que conheço na qual se acusa o ceticismo de conduzir a uma vida que não pode ser vivida:

Um Estóico ou Epicurista expõe princípios, que podem não somente ser duradouros, mas têm um efeito sobre a conduta e o comportamento. Mas um Pirrônico não pode esperar que a sua filosofia tenha qualquer influência constante sobre a mente: ou caso tenha, que essa influência seja benéfica para a sociedade. Pelo contrário, deve reconhecer, caso ele reconheça qualquer coisa, que a vida humana pereceria se seus princípios prevalecessem universal e firmemente. Todo discurso, toda ação imediatamente cessariam; e os homens ficariam em total letargia, até que as necessidades da natureza, insatisfeitas, botassem fim à sua miserável existência. É verdade; um evento tão fatal é muito pouco possível para apavorar. A natureza é sempre muito forte para princípios. E embora um Pirrônico possa levar a si mesmo ou aos outros a um espanto e confusão momentâneos através dos seus profundos raciocínios; o primeiro e mais trivial evento da vida jogaria por terra todas suas dúvidas e escrúpulos, e deixa-lo-ia igual, em todas as maneiras de agir e especular, aos filósofos de qualquer outro secto, ou àqueles que nunca se interessaram por qualquer pesquisa filosófica. Quando ele despertar do seu sonho, será o primeiro a se unir nas risadas contra si mesmo, e a confessar que todas suas objeções eram mera diversão, e não podem ter outra tendência senão mostrar a condição excêntrica dos homens, que devem agir e raciocinar e crer, embora não sejam capazes, pela sua investigação mais diligente, de satisfazerem-se a respeito do fundamento dessas operações, ou de remover as objeções que se podem levantar contra elas (David Hume, An Enquiry Concerning Human Understanding, parágrafo XII, 128).[12]

Mas Hume não foi o primeiro a fazer essas críticas, na verdade, elas já teriam surgido mesmo séculos antes de Sexto Empírico quando do longo debate ocorrido entre os líderes da Stoá e os da Academia em fase Cética[13].

Diante da acusação de que o ceticismo conduz a uma vida que não pode ser vivida na prática, os céticos antigos se defenderam, mas ao fazerem isso deram margens a uma nova crítica: a de que eram dogmáticos disfarçados posto que ao defenderem o ceticismo defendiam a doutrina filosófica que criam ser a melhor. Assim, o argumento da apraxía que acusa o cético de não poder viver é só a isca que traz consigo o anzol, o problema da auto-refutabilidade, pelo o qual o cético se refutaria ao defender-se.

Claro que para Sexto este era um problema grave[14], contudo é de se estranhar que em boa parte de seus trabalhos ele não buscasse sistematizar uma defesa. De modo geral, só vemos os contra-argumentos de Sexto em Hipotiposes Pirrônicas, que é uma parte bastante pequena de sua obra[15]. Em todo o resto do trabalho sextiano o que se vê é uma aplicação repetitiva da metodologia argumentativa cética conduzindo a um mesmo resultado: suspensão do juízo. Assim, se quisermos entender porque Sexto não vê auto-refutabilidade ou apraxía no ceticismo de modalidade Pirrônica, ou mesmo se quisermos defender o ceticismo das armadilhas que recorrentemente aparecem na História da Filosofia devemos ler e interpretar o que disse Sexto Empírico.

3-

Para Sexto o ponto de partida do ceticismo é a investigação, por sua vez o objetivo dessa é, no contexto das principais filosofias do Helenismo, sempre conduzir à felicidade que geralmente é definida de forma negativa (imperturbabilidade / ataraxia), assim era para os Epicuristas e Estóicos, por exemplo. Sexto nos diz que:

A causa original do ceticismo é, dizemos, a esperança de atingir a quietude. Homens de talento, que estavam perturbados pelas contradições nas coisas e em dúvida quanto a qual das alternativas deveriam aceitar, foram levados a investigar o que é verdadeiro nas coisas e o que é falso, esperando, pela clarificação desta questão, atingir a quietude. O mais básico princípio do sistema cético é aquele de opor a toda questão uma questão igual; porque pretendemos que, como uma conseqüência disto, acabamos por cessar de dogmatizar. (P.H. I 12).

Ao investigar e buscar o melhor sistema filosófico com o intuito de encontrar o que mais eficientemente possa conduzir à felicidade, “homens de talento” inevitavelmente se confrontam com diferentes argumentos lançados pelas diferentes escolas filosóficas, muitas das vezes mutuamente excludentes. Contudo, o investigador, ao se deparar com esses argumentos e com a impossibilidade de aceitá-los sem excluir outros que talvez também lhe agradem, é imediatamente levado à suspensão do juízo. Ele não opta por suspender o juízo, a suspensão advém como uma espécie de afecção passiva que surge diante da impossibilidade da escolha e da adesão a um conjunto de dogmas imposto por uma vertente filosófica e, ao suspender o juízo, por casualidade, o investigador atinge a imperturbabilidade.[16]

Apesar do caráter não doutrinário do ceticismo Pirrônico e da apresentação da suspensão do juízo como uma afecção passiva, os céticos antigos, culminando com Sexto Empírico, formalizaram uma série de argumentos que demonstram os limites dos sentidos para acessarem a realidade e também da razão para interpretar o que nos advém pelos sentidos. Não há, para um cético, quaisquer vias de acesso a uma realidade não evidente além dos fenômenos, ou, melhor formulando para não parecer dogmático, não há por enquanto quaisquer vias privilegiadas de acesso a uma realidade não evidente além dos fenômenos (isto não impede que um dia haja).

Os argumentos sistematizados de modo a conduzir à visão da eqüipolência entre percepções díspares e demonstrar limites dos sentidos e os sistematizados de modo a demonstrar falhas performáticas da razão em seus usos são chamados, respectivamente, dez tropos de Enesidemo (P.H. I 36 a 163, D.L. IX 79 a 88) e cinco tropos de Agripa (P.H. I 164 a 177, D.L. IX 88 e 89), mas há ainda outros tropos, todos eles regularmente recorrentes, página após página, na literatura cética, e sempre com o mesmo resultado: epoché, suspensão de juízo, assentimento e crença. Esses tropos com o resultado suspensivo constituem a essência do ceticismo (sképsis, investigação) como é definido por Sexto nas Hipotiposes Pirrônicas; ela é, diz ele:

uma capacidade de trazer à oposição, de todas as formas, coisas que aparecem e coisas que são pensadas, de modo que, devido à igual força dos itens opostos e asserções rivais, nós somos levados primeiro a suspender o julgamento e depois à ataraxia (imperturbabilidade) (P.H. I 8; cp. 31-4).

Assim,

O cético, sendo um amante da sua espécie, deseja curar pelo discurso, da melhor forma possível, a presunção e a precipitação dos dogmáticos. Assim, como os físicos que curam doenças corporais têm remédios que diferem em força, e aplicam os severos aos que têm doenças severas e os médios aos que estão mediamente afetados, assim também, os céticos propõem argumentos que diferem em força, e aplicam aqueles que são mais fortes e capazes, pelo seu rigor, de fazerem escoar a doença dogmática, a presunção, em casos que o dano é causado por um ataque severo de precipitação, ao passo que emprega os argumentos medianos em casos que a doença da presunção é superficial e fácil de curar, e a quem é possível restabelecer a saúde por métodos medianos de persuasão. Assim, a adesão aos princípios céticos não hesita em propor, hora argumentos fortes em seu grau de persuasão, e outrora argumentos que parecem ser menos fortes, e ele assim faz porque supõe que a última forma é suficiente para ele realizar seu objetivo. (P.H. III 280-281).

O ceticismo é uma terapia (Sexto Empírico era médico) que pretende curar duas patologias: presunção e precipitação, que atormentam os dogmáticos, que são aqueles que afirmam que é possível conhecer a verdade (para isso deve necessariamente haver uma verdade), ou que negam a possibilidade de conhecê-la (estes são os dogmáticos negativos, Sexto Empírico os trata de modo geral como ‘Acadêmicos’, aludindo à filosofia da Academia em fase média, sob Arcesilao, Clitômaco e Carnéades):

O resultado natural de qualquer investigação é que os investigadores ou descobrem o objeto da busca, ou negam que seja possível descobri-lo e confessam-no inapreensível, ou persistem na busca. Assim, também, quanto aos objetos investigados pela filosofia, e é provavelmente por isso que alguns afirmaram ter descoberto a verdade, outros afirmaram que ela não pode ser apreendida, enquanto outros persistem investigando. Aqueles que crêem que a descobriram são os “dogmáticos”, assim são chamados, especialmente, Aristóteles, por exemplo, e Epicuro e os Estóicos, e alguns outros; Clitômaco e Carnéades e outros Acadêmicos consideram-na inapreensível, e os céticos persistem na busca. Assim, parece razoável manter que os principais tipos de filosofia são três: a dogmática, a Acadêmica, e a cética. (P.H. I 1).

Dogmáticos, envolvidos na busca pela felicidade recorrem às mais diversas metodologias e teorias filosóficas. Quando prestam adesão a uma escola, vivem de acordo com teoréticas que afirmam garantir-lhes o alcance da felicidade, mas tudo que conseguem obter é o tipo de felicidade parcial e incompleto que uma filosofia dogmática pode oferecer. Para exemplificar, tomemos os casos do Epicurismo e do Estoicismo: ambas escolas ‘pregam’ um tipo de felicidade que se constitui basicamente em ‘seguir os ditames da natureza’. Mas esse ideal ético que as norteia só pode ser alcançado através de uma Física, que é a ciência que pretende conhecer a natureza, onde os parâmetros do conhecimento científico são oferecidos pela Lógica. Eis a famosa tripartição da filosofia tão corriqueira no período Helenístico: 1- Física (ciência da natureza) à 2- Lógica (os parâmetros para o conhecimento)à 3- Ética (viver de modo mais natural possível[17]). Mas Estóicos e Epicuristas, ambos alegando viver vidas naturais, viviam de modo antagônico, como uma mesma natureza poderia então oferecer diferentes e mutuamente excludentes formas de vida? A resposta é que nenhuma das duas escolas aspirava verdadeiramente uma vida vivida pelos ditames da natureza, somente vidas guiadas por teoréticas filosóficas oriundas de suas peculiares interpretações da natureza. Essas filosofias, para Sexto Empírico, só alcançavam a felicidade conforme definida pelos seus próprios dogmas e não há um critério geral que indique que um dogma é melhor que outro, somente há critérios próprios a cada uma das escolas que demonstram aos adeptos das próprias escolas (e não aos adversários) que a escola é a melhor e mais eficaz quando se trata de encontrar a felicidade, uma típica circularidade.[18] Os buscadores da felicidade que enveredassem pelas teias das filosofias dogmáticas só poderiam esperar viver falsas felicidades, em suma, seriam infelizes. A imperturbabilidade estaria perdida.

Urgiria o ceticismo como uma possibilidade de atingir a imperturbabilidade, porque a quietude poderia, sim, ser alcançada, mas quando os buscadores cessassem a busca e suspendessem o juízo. Mas se assim é, haveria dois tipos de pessoas envolvidas no esquema cético, o buscador que pretende encontrar respostas filosóficas que o conduziriam à felicidade; e os que já estiveram enveredados em uma busca similar e que por ventura descreveram métodos pelos quais os buscadores vindouros pudessem mais facilmente ser levados à suspensão e à imperturbabilidade, é o que fizeram Enesidemo de Cnossos[19], Agripa[20] e Sexto Empírico, no caso do último o ceticismo chega a ser prescritivo.

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[1] Ver: ‘HUME, D. Carta de um cavalheiro a seu amigo em Edimburgo. In: Sképsis, n° 1, 2007’.

[2] Todas as citações neste parágrafo são da carta citada na nota anterior.

[3] Green apud, ‘STROUD, B. O Ceticismo de Hume: instintos naturais e reflexão filosófica. In: Sképsis, n° 3- 4, 2008’.

[4]POPKIN, Richard. História do Ceticismo: de Erasmo a Spinoza. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2000’.

[5] Bayle citado na obra de Popkin mencionada na nota acima.

[6] ‘ SPINOZA, B. Ética.  São Paulo: Editora Autêntica, 2009’.

[7] Ver: ‘BEISER, F. C. The Fate of Reason: German Philosophy from Kant to Ficht. Londres: Harvard University Press, 1987’.

[8] ‘Sexti empirici Opera, recensuit Hermannus Mutschmann… addenda et corrigenda adiecit I.Mau, Leipzig, 1958’.

[9] Ver: ‘FLORIDI, L. The Diffusion of Sextus Empiricus’s Works in the Renaissance. In: Journal of the History of Ideas, Vol. 56, n° 1. University of Pennsylvania Press’; e ‘POPKIN, R. Sources of Knowledge of Sextus Empiricus in Hume’s Time. In: Journal of the History of Ideas, Vol. 54, n° 1, 1993. University of Pennsylvania Press’.

[10] Ver: ‘ANNAS, J. Hume e o Ceticismo Antigo. In: Sképsis, n° 2, 2007’.

[11] Ver: ‘GAZZINELLI, G. G. A Vida Cética de Pirro. São Paulo: Edições Loyola, 2009’.

[12] Citado da terceira edição da edição Selby-Bigge, com texto revisto por P. H. Nidditch (Oxford, 1975). Uma das revisões de Nidditch devolve a palavra ‘somente’ à primeira sentença da passagem citada. A tradução é minha, de Alexandre Skvirsky e Rogério Soares da Costa e foi publicada como parte da tradução de ‘BURNYEAT, M. F. Can the Sceptic Live his Scepticism?; In BARNES, J; SCHOFIELD, M; BURNYEAT, M. (orgs.). Doubt and Dogmatism, Studies in Hellenistic Epistemology. Oxford: Claredon Press, 1980.’ Publicado como ‘Burnyeat, M. F. Pode o Cético Viver seu Ceticismo?’, pela revista ‘Trilhas Filosóficas’: http://www.uern.br/outros/trilhasfilosoficas/conteudo/N_04/II_2_trad_Brito.pdf

[13] Para mais ver: ‘CICERO. On Academic Scepticism, tradução, introdução e notas de Brittain, C. Cambridge: Hackett Publishing Company, 2009.’ E também: ‘LAÉRCIO, Diógenes. Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres, traduzido por Kury, Mário da Gama. Brasília: Editora UnB, 1987’, doravante abreviado como D.L.Para uma discussão atual sobre as críticas à vida cética no debate Academia x Stoá ver: ‘STRIKER, G. Sceptical Strategies. In: BARNES, J; SCHOFIELD, M; BURNYEAT, M. (orgs.). Doubt and Dogmatism, Studies in Hellenistic Epistemology. Oxford: Claredon Press, 1980’.

[14] Não só para Sexto. Céticos mais antigos que ele, como Arcesilao (ver sobre isto especificamente Cicero, Acad. II 24-25, 31-32, 37, 99; Plutarco, Contra Colotes II 22 e; Sexto Empírico M VII 158), já eram confrontados com este problema que persiste.

[15] (i) Outlines of Pyrrhonism, ou Esboços Pirrônicos. Que se divide em três livros; (ii) Contra os Professores, ou Adversos Mathematicos. Composto por seis livros, respectivamente: Contra os Gramáticos; Contra os Retóricos; Contra os Geômetras; Contra os Aritméticos; Contra os Astrólogos; Contra os Músicos. (iii) Contra os Dogmáticos, ou Adversus Dogmáticos. Composto por cinco livros, respectivamente: Contra os Lógicos, em dois livros; Contra os Físicos, em dois livros; Contra os Éticos. Doravante, respectivamente, de acordo com o índice de Janácek: P.H., M., e, à parte as pertinentes críticas de Barnes, M.

[16] Este ‘caminho’ resultando em suspensão do juízo e imperturbabilidade foi designado, de acordo com a terminologia cética, skeptiké agogé (a grosso modo, metodologia cética). E consiste esquematicamente das seguintes etapas: investigação e busca pela doutrina filosófica que possa conduzir à felicidade (sképsis) à percepção do conflito entre as teorias das diferentes escolas ou das contradições internas da própria escola (diaphonía) à percepção do caráter mutuamente excludente das doutrinas filosóficas, posto que possuem um igual peso lógico ou doutrinário (isostheneia) à incapacidade de escolher uma doutrina ou conjunto de doutrinas em detrimento de outras (aporia) à suspensão do juízo (epoché) à imperturbabilidade (ataraxía). Sobre isto ver especificamente P.H. I, 25- 30.

[17] O ideal moral da vida feliz como vida vivida por parâmetros criados pela própria natureza surge como uma alternativa de superar a dicotomia recorrente no período Clássico entre nómos e phýsis.

[18] O caso mais exemplar: o sábio Estóico é aquele que vive de acordo com os ditames de afecções que o persuadem como verdadeiras, mas ele só pode discernir entre uma afecção verdadeira e uma falsa por ser um sábio Estóico e sendo um sábio Estóico ele poderá viver de acordo com os ditames de afecções que o persuadem como verdadeiras, assim ad infinitum.

[19] Enesidemo, após uma ruptura com a Academia, será o homem responsável pela fundação, ou de qualquer forma pelo reavivamento, do Pirronismo no primeiro século a.C. Os Esboços Introdutórios ao Pirronismo de Enesidemo foram presumivelmente o primeiro trabalho a carregar tal título, e sabemos algo sobre ele através de uma referência feita por Diógenes Laércio (D.L. IX 78). Ele compilou a classificação dos vários tropos ou vias pelas quais as impressões sensíveis geram convicções ou persuasões, e a partir disso usa estes modos para tentar destruir, sistematicamente, as crenças tão arraigadas através da demonstração de que cada um destes modos produz crenças conflitantes ou igualmente persuasivas e que não são confiáveis para nos pôr em contato com a verdade. O resultado será, sempre, a epoché sobre o que é a verdade (D.L. IX 84). Com Enesidemo, a vida do cético será também uma vida sem crenças (adoxastous) e esta é uma característica fundamental do Pirronismo sob inovação de Enesidemo, isto gera problemas além dos tratados aqui.

[20] Outra importante e obscurantíssima figura do hall cético. Obscuro porque sobre ele nada se sabe, restam dele somente cinco tropos que, se comparados com os de Enesidemo, referem-se mais à estrutura formal dos raciocínios e silogismos do que aos componentes fenomênicos destes. Os tropos como um todo, assim, formam uma rede em que se é possível escapar no âmbito fenomênico, fugindo das armadilhas se não criadas pelo menos compiladas por Enesidemo, não será possível escapar no âmbito formal: esta é a rede cética conforme disposta em Sexto Empírico em P.H.