Ockham, Baskerville e a desdivinização do logos, por Pedro Luiz Lima

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Pedro Luiz Lima é pesquisador do Laboratório de Estudos Hum(e)anos.

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Resumo

Começar-se-á um estudo sobre Guilherme de Ockham a partir de um pequeno caso envolvendo conferências de Foucault lecionadas mais de seis séculos depois da morte do filósofo franciscano, não apenas, por decerto, devido a uma mera e suposta convergência no topos nominalista por parte de ambos os autores, mas porque trata-se, antes, de atentar para a maneira como a precaução de método foucaultiana, por um lado, expõe a persistência e a inquestionável validade para os nossos tempos de uma questão central ao debate filosófico medieval, qual seja, a querela dos universais. A modernidade tardia, ou a pós-modernidade para os que a ela se afeiçoam, não se apresenta, pois, expurgada de resquícios pré-modernos por excelência; e, nesse sentido, estudar o outro em relação a nossa própria época tem sua relevância garantida pela descoberta mesma de que, em termos foucaultianos, talvez o outro mais se pareça com o mesmo do que a nossa crença no progresso nos faria normalmente acreditar. Voltar à Idade Média não é, definitivamente, voltar ao obscurantismo, rumo ao encontro de um pensamento exótico já de há muito tornado obsoleto pelos raios luminosos da razão moderna. Como afirma o eminente medievalista Etienne Gilson, “a filosofia moderna não teve de sustentar luta alguma para conquistar os direitos da razão contra a Idade Média; ao contrário, foi a Idade Média que os conquistou para si, e o próprio ato pelo qual o século XVII imaginava abolir a obra dos séculos precedentes só a continuava”.

Palavras-chave:

Guilherme de Ockham, Nominalismo

Abstract

We will begin a study of William of Ockham from a small case involving the conferences Foucault taught more than six centuries after the death of the Franciscan philosopher not only, of course, due to a simple and supposed convergence in the nominalist tshared by both authors, but because, rather, we must pay attention to how the Foucaultian precaution of method exposes a persistent and unquestioned validity for our times of a central question to the medieval philosophical debate, namely, the quarrel of universals. The late modernity or, for some, the postmodernity, does not appear, therefore, free from those witch are by excellence the remains of pre-modern and, in this sense, to study the other in relation to our own time has ensured its relevance by the discovery that, in Foucaultian terms, perhaps the other most likly resembles the same then our belief in progress would normally believe. To go back to the Middle Ages is definitely not to go back to obscurity, or to mee something like an exotic that has long been obsolete by the lights of modern reason. As stated by the eminent medievalist Etienne Gilson, “modern philosophy did not sustain a fight to win the rights of reason against the Middle Ages, but, rather, the Middle Ages has won them for itself, and through the act by which the seventeenth century thought to be abolishing the work of previous centuries only continued it. ”

Key words

William of Ockham, Nominalism

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Introdução

“Para todo o pensamento ocidental, ignorar sua Idade Média é ignorar a si mesmo”.

Étienne Gilson

Em 10 de janeiro de 1979, na aula inaugural de seu curso daquele ano no Collège de France, Michel Foucault, ainda estabelecendo as conexões que o curso recém inaugurado guardaria com relação ao do ano precedente, apresenta aos ouvintes aquela que seria a sua principal precaução de método na persecução de sua pesquisa sobre as artes de governar:

Je pars de la décision, à la fois théorique et méthodologique, qui consiste à dire: supposons que les universaux n’existent pas, et je pose à ce moment-là la question à l’histoire et aux historiens: comment pouvez-vous écrire l’historie si vous n’admettez pas a priori que quelque chose comme l’État, la société, le souverain, les sujets existe?… Non pas donc interroger les universaux en utilisant comme méthode critique l’histoire, mais partir de la décision de l’inexistence des universaux pour demander quelle histoire on peut faire[2].

O que Foucault parece querer empreender, pois, neste momento da sua trajetória intelectual, é uma pesquisa histórica cujo ponto de partida residiria num esforço metodológico para despojar a história dos conceitos a priori aos quais, para alguns, cumpriria compulsoriamente enquadrá-la. Tratar-se-ia, então, de evitar o vício historicista de subordinação dos eventos aos seus conceitos ordenadores determinados de antemão – e, assim fazendo, de alcançar relações e objetos de análise que teriam, por assim dizer, se tornado pontos cegos de um enfoque sempre apto a buscar o mesmo universal nos mais díspares particulares investigados.

Não por acaso, houve quem caracterizasse Michel Foucault como um historiador nominalista[3], já que a sua preocupação central estaria não tanto em fundamentar uma relação de homologia entre conceitos a priori e a narrativa histórica quanto em fazer com que a própria história pusesse em cheque as convicções conceituais estabelecidas e suspendesse o juízo a respeito dos seus fundamentos.

Ora, mas por que começar um estudo sobre Guilherme de Ockham a partir de um pequeno caso envolvendo conferências de Foucault lecionadas mais de seis séculos depois da morte do filósofo franciscano? Não apenas, por decerto, devido a uma mera e suposta convergência no topos nominalista por parte de ambos os autores. Trata-se, antes, de atentar para a maneira como a precaução de método foucaultiana, por um lado, expõe a persistência e a inquestionável validade para os nossos tempos de uma questão central ao debate filosófico medieval, qual seja, a querela dos universais. A modernidade tardia, ou a pós-modernidade para os que a ela se afeiçoam, não se apresenta, pois, expurgada de resquícios pré-modernos por excelência; e, nesse sentido, estudar o outro em relação a nossa própria época tem sua relevância garantida pela descoberta mesma de que, em termos foucaultianos, talvez o outro mais se pareça com o mesmo do que a nossa crença no progresso nos faria normalmente acreditar.

Por outro lado, esta específica remissão a Foucault faz ainda atentar para a natureza da própria empreitada de se voltar a investigação para a Idade Média. Neste ponto, mesmo que pudessem ser inumeráveis os exemplos a demonstrar a vitalidade do pensamento medieval nos dias que correm, o que este em particular ressalta é propriamente a fertilidade de um olhar que busque ultrapassar o universal que inferioriza e impõe as trevas para um pensamento tão fecundo. Aqui, convém enfim tomar Idade Média e toda a periodização consagrada com o mesmo estranhamento que Foucault dispensa aos universais que lhe obstruem a vista. Pois, afinal, as fronteiras entre as épocas não passam de nomes e convém, evidentemente, não confundir as palavras e as coisas.

Voltar à Idade Média não é, definitivamente, voltar ao obscurantismo, rumo ao encontro de um pensamento exótico já de há muito tornado obsoleto pelos raios luminosos da razão moderna. Como afirma o eminente medievalista Etienne Gilson, “a filosofia moderna não teve de sustentar luta alguma para conquistar os direitos da razão contra a Idade Média; ao contrário, foi a Idade Média que os conquistou para si, e o próprio ato pelo qual o século XVII imaginava abolir a obra dos séculos precedentes só a continuava”[4].

A partir, então, deste preâmbulo inicial, o presente estudo pretenderá percorrer alguns dos traços mais marcantes do pensamento de Guilherme de Ockham, como já mencionáramos, adotando, contudo, uma estratégia analítica específica a que cumpre fazer menção. Tratar-se-á não apenas de uma análise a partir de textos do próprio Ockham e da literatura de comentadores da sua obra – com efeito, o caminho aqui esboçado intentará investigar questões-chave da sua filosofia tomando como um de seus pontos de apoio o romance O Nome da Rosa, de Umberto Eco.

Com este método heterodoxo, acreditamos ser possível formar uma imagem talvez um pouco mais rica do que a mera exegese de passagens originais e de outros intérpretes poderia suscitar. Não apenas por se tratar de uma narrativa que toma o século XIV como pano de fundo, mas sim por ter Umberto Eco reconhecidamente colocado o século XIV como protagonista da trama, seja em suas querelas filosóficas, seja nas políticas. O próprio Eco, deve-se ressaltar, faz do seu romance um esforço no sentido de aproximar os horizontes dos contextos medieval e contemporâneo, e o faz seja através do hibridismo de sua estrutura narrativa, que associa trechos em latim e momentos típicos do debate quatroccentista a uma trama de aventura à la Conan Doyle, seja na construção da identidade do seu personagem principal, um composto notável de Sherlock Holmes e Guilherme de Ockham.

A heterodoxia do método, desde já, pressupõe o caráter ensaístico desse estudo. E a própria fusão de onde se origina Guilherme de Baskerville[5] enseja, em alguma medida, a hipótese da desdivinização do logos que se pretende levantar aqui. Se o pensamento medieval nasce de certa forma marcado pelas tentativas neoplatônicas de Plotino e Filon de Alexandria na direção de uma divinização do logos, caberia então julgar em que medida o pensamento de Ockham (e o de seu alter-ego fictício Baskerville) não representaria um movimento no sentido contrário e a abertura de um espaço propriamente humano de intervenção no mundo. Em busca deste juízo, as duas seções deste estudo tratarão (1) do reducionismo ontológico e da radicalidade nominalista de Ockham na resolução que oferece ao problema dos universais; e (2) da questão do riso, central no romance de Eco, e da forma como se opõem a resolução humanista de Baskerville e a perspectiva realista teologicamente centrada de Jorge de Burgos. Não se pretende, obviamente, tomar aqui Ockham como um pensador herege ou pós-cristão; no entanto, é curioso notar que uma das referências à amizade forjada por Eco entre Ockham e Baskerville se dá com uma blasfêmia, no seguinte diálogo entre o protagonista e Ubertino de Casale:

‘Ouvi dizer que agora está perto de um amigo meu que é da cúria, Guilherme de Ockham’.

‘Conheci-o pouco. Não me agrada. Um homem sem fervor, todo cabeça, nada coração.’

‘Mas é uma boa cabeça’.

‘Pode ser, mas o levará ao inferno’.

‘Então eu o encontrarei lá embaixo, e discutiremos lógica’.

‘Cala-te, Guilherme’[6].

1. Do princípio da economia ontológica: por um primado das paixões da alma

“No princípio era o Verbo e o Verbo estava junto a Deus, e o Verbo era Deus”.

O Nome da Rosa

Uma das principais cartadas de que Ockham se utilizava para vencer os duelos argumentativos da alta escolástica era, possivelmente, a sua substituição de uma ontologia perdulária na distribuição de essências às coisas do mundo por uma outra, econômica no trato com a possibilidade de conhecimento das essências. Neste plano, seu pensamento simboliza um desafio direto às concepções medievais de uma grande cadeia do ser, a partir da qual seria possível conhecer a hierarquização ontológica definitiva do mundo. A esta compreensão estática, que mantém Deus como portador das idéias às quais os homens teriam apenas acesso indireto pela via da iluminação, Ockham quer opor uma noção dinâmica, em que um conhecimento calcado no nominalismo e no singularismo se põe como ato do intelecto humano, a partir da intuição do singular. Se em Tomás de Aquino, portanto, ainda pode-se ver seguida a missão anselmiana de subordinar a filosofia e a sua capacidade demonstrativa aos imperativos teológicos, já em Ockham o âmbito do demonstrável diminui e, com isso, problematiza-se a possibilidade de delegação teológica de tarefas à filosofia.

Para entendermos, então, esta reviravolta na relação entre fé e razão proporcionada pelo nominalismo ockhamiano, é preciso brevemente buscar as origens da lógica nominalista e alguns caminhos trilhados pela querela dos universais até alcançar o século XIV. Para que, assim, possamos em alguma medida compreender a originalidade das proposições de Ockham/Baskerville – e os adversários contra os quais tais proposições se dirigiam.

Se a influência de Pedro Abelardo (1079-1142) é evidente para qualquer leitura superficial da obra de Ockham, é preciso no entanto que recuemos um pouco mais e tomemos um dos professores de Abelardo como nosso ponto de partida. Apesar de que já em Boécio (470-525) possamos ver formuladas as questões centrais para o nominalismo abelardiano, comecemos por Roscelino de Compiègne (1050-1120).

Segundo este mestre do jovem Abelardo, não podemos identificar um universal qualquer – “homem”, por exemplo – com qualquer ente realmente existente no mundo – o indivíduo “Sócrates”. Nesse caso, o universal seria apenas um termo – vox –, sem qualquer substrato nas coisas – in rerum. E Roscelino colocaria grande ênfase no caráter arbitrário dos termos, chegando mesmo a tomá-los em seu elemento puramente físico, ou seja, na medida em que são emissões de voz – flatus vocis. Nesse sentido, é como flatulência vocal contingente que os nomes e conseqüentemente os universais aparecem. Segundo a descrição de Gilson do nominalismo rosceliniano, “por um lado, há a realidade física do próprio termo, isto é, da palavra homem tomada como flatus vocis ou emissão de voz; por outro, há os indivíduos humanos que essa palavra tem por função significar. E não há nada mais que se encontre por trás dos termos que utilizamos”[7].

A essa redução materialista empreendida por Roscelino, Abelardo responde de maneira construtiva. Há mais nos termos do que um mero sopro de voz; e precisamente o que os tornam universais é não a emissão contingente, mas antes o significado que carregam. A esta altura é preciso trocas as voces pelos sermones pois é por serem construções de entendimento dotados de sentido que os universais propriamente existem, tanto na alma do sujeito cognoscente como no ar propagado na emissão de voz. Como bem argumenta Gilson, “se Roscelino tivesse razão, toda construção gramatical correta seria logicamente válida, e a lógica se reduziria à gramática. Ora, não é esse o caso, pois é tão gramaticalmente correto dizer o homem é uma pedra quanto dizer o homem é um animal”[8].

Com Abelardo, portanto, já percebemos a concatenação de um nominalismo mais denso que o de seu antigo mestre, porém devemos atentar para os elementos realistas que ainda persistem em sua concepção, tornando-a menos heterodoxa e amenizando os conteúdos radicais que seriam apenas propriamente evocados dois séculos mais tarde.

Por um lado, como sublinha Renato Lessa, a retirada dos universais da mente de Deus para a mente dos homens repercute em um monopólio humano da tarefa de construção de significados. Uma vez que os universais deixam de ser reflexo mundano das idéias divinas e passam a “imagens do entendimento” humanamente concebidas a fim de conferir sentido a uma infinidade de particulares contingentes, tem-se com efeito um passo decisivo no caminho de uma humanização do logos. E até, como sugere Lessa, poderíamos falar de um “equivalente abelardiano da teoria protagoreana da medida”[9] – isto é, teríamos nessa resposta à questão dos universais um retorno ao topos grego de que “o homem é a medida de todas as coisas”.

Por outro lado, todavia, a vitória de Abelardo sobre o realismo de um Anselmo ou de um Guilherme de Champeaux (este, ex-professor e também adversário filosófico direto do amante de Heloísa) não se dá sem a persistência, no argumento, de resquícios realistas. Isto porque o universal manteria, para Abelardo, um fundamento nas coisas que ele denomina como um “estado comum”. Entre os indíviduos Sócrates e Platão, pois, não haveria apenas diferença e exterioridade entre singulares, mas um elemento comum partilhado por ambos a partir do qual poderíamos tomá-los como exemplares do universal humanidade. Há, então, em meio a um mundo que parecia se constituir montaigneanamente como dessemelhança, um princípio de semelhança, e é este que garante uma construção dos universais como atos de intelecção não desprovidos de um complemento ontológico, pois que imanente à própria coisa. O universal de Abelardo, então, “não é senão uma palavra que designa a imagem confusa extraída pelo pensamento de uma pluralidade de indivíduos de natureza semelhante e que estão, por conseguinte, no mesmo ‘estado’”[10].

Este caminho intermediário, podemos vê-lo ser também trilhado, de uma certa forma, por Duns Scotus (1266-1308). Num escalonamento de realismos, talvez tivéssemos, com efeito, de alojar Scotus acima de Abelardo no quesito “graus de inscrição do universal nas coisas”. Isso porque ele atesta de forma ainda mais peremptória que o real está não apenas nas puras individualidades, na contingência dos objetos sensivelmente apreendidos, como também em um fundamento ontológico. Não temos aqui, é preciso salientar, uma mera recaída em um realismo estrito. O universal permanece como produto do intelecto; permanece, portanto, no âmbito do humano no que concerne à sua constituição. Porém, a liberdade do intelecto se submete, por assim dizer, a uma natureza comum – a hecceidade scotiana – que cumpre registrar no tratamento intuitivo dos singulares, e que respondem pelo fundamento ontológico que asseguram a não-arbitrariedade da vontade intelectiva. As palavras mantém um nexo não apenas imaginado com as coisas.

Mas enquanto o tomismo buscava demonstrar racionalmente a complementaridade entre a razão natural e a verdade revelada da fé, Duns Scotus já dava um passo na direção de Ockham, quando separava a teologia da filosofia. Porém, esta sua descrença com relação às capacidades filosóficas para assuntos sagrados o leva a atestar, talvez agostinianamente, a superioridade da verdade revelada. Com isso em vista, Gilson pode afirmar: “Santo Tomás não desesperara assim da filosofia, porque a transformara: sua obra é uma vitória da teologia na filosofia. Duns Scot desesperou da filosofia pura porque registrou-a como um fato: sua obra só podia ser uma vitória da teologia sobre a filosofia”[11].

Neste ponto, enfim, é hora de nos voltarmos para a resolução proposta por Ockham. Em primeiro lugar, e em oposição ao seu legado proto-nominalista herdado de Abelardo e Scotus, é preciso reconhecer a sua maior reserva com relação a qualquer tipo de fundamentação essencialista. Contra, portanto, o que classifica como realismo moderado de Scotus[12], Ockham defende um princípio que aqui chamaremos de economia ontológica.

Antes de tudo, tal princípio pregaria pelo minimalismo causal. Comecemos, pois, a seguir Baskerville em sua exposição ao seu Dr. Watson particular, o noviço beneditino Adso de Melk, posto que muito esclarece a respeito das concepções ockhamianas:

(…) raciocinar sobre as causas e os efeitos é coisa bastante difícil, da qual acho que o único juiz possível é Deus. Nós já penamos muito estabelecendo uma relação entre um efeito tão evidente como uma árvore queimada e o raio que a incendiou, que o remontar cadeias por vezes longuíssimas de causas e efeitos me parece tão insensato quanto o querer construir uma torre que chegue até o céu (NR, 38).

A dificuldade, propriamente humana, na concatenação de causas e efeitos conduzem à prudente busca por uma explicação que se detenha nas relações de causalidade evidentes, ou seja, postas aos sentidos. Por um lado, como diz o sherlock, “não é preciso multiplicar as causas sem que se tenha uma estrita necessidade” (NR, 95), e, por outro, Gilson se expressa com quase os mesmos termos a respeito da proliferação de seres, quando ressalta “o uso constante que Ockham faz do princípio de economia de pensamento: não se devem multiplicar os seres sem necessidade”[13].

Na narrativa de Umberto Eco, a maneira como Baskerville procede na tentativa de solucionar os misteriosos crimes ocorridos numa abadia em 1327 pode servir-nos de ilustração acurada se quisermos imaginar uma aplicação prática desta metodologia científica minimalista de Ockham. Se este se dedica “ativamente a explicar as coisas da maneira mais simples possível e a varrer o campo da filosofia das essências e das causas imaginárias que a entulham”[14], o seu outro eu, Baskerville, por sua vez, atua como um ex-inquisidor chamado a resolver um enigma prático que resiste ás pressões por uma rápida resolução em nome do alcance da verdade.

É importante, aqui, tomarmos outro personagem da narrativa como ponto de comparação, para podermos melhor vislumbrar o lugar de Ockham em meio à ortodoxia de seu tempo. Na abadia em que transcorre a trama, há um encontro marcado entre os curialistas beneditinos e os monges franciscanos, para um novo capítulo no debate sobre a pobreza de cristo e a validade moral e sagrada da doutrina franciscana. Na entourage beneditina, o responsável pela segurança é o inquisidor linha-dura Bernardo Gui; e este personagem é importante na medida em que representa o antípoda quase perfeito de Baskerville/Ockham. Gui, ao chegar na abadia, é informado dos recentes episódios trágicos e sombrios e, demonstrando suspeita eficiência, logo chega a um veredicto sobre o caso. Acusa o despenseiro e um monge, ambos ex-dulcinianos e portanto já hereges de partida por conta disto, e arranca de ambos uma confissão pública. Como parece elementar, a resolução de Gui é manifestamente equivocada, apesar de provocar a alegria do abade Abbonne, para quem um culpado inocente parece ser melhor do que nenhum culpado.

Ora, o que a atuação de Bernardo Gui deixa claro é a sua manifesta recusa em determinar indutivamente as causas e os atos relacionados ao crime. Enquanto a lógica de Baskerville, Ockham e Sherlock Holmes é radicalmente indutivista, a de Gui é manifestamente dedutivista: toma-se a causa como certa, a heresia e a atuação ardilosa do demônio, e a partir daí passa-se a conformar os fatos a essa norma fundamental deduzida. Ou seja, fé e razão permanecem não apenas entrelaçadas, como também é a crença no demônio que instrui os caminhos da razão. Supõe-se, ainda, uma ordem universal sob a qual se organizaria o cosmos, e se investiga como se a ordem estivesse nas coisas. Mas é precisamente contra esta suposição a priori de uma ordem das coisas que se volta a economia ontológica de Ockham. Convém que o ouçamos então falar através de Baskerville:

Os loucos e as crianças dizem sempre a verdade, Adso. Meu amigo Marsílio pode ser melhor do que eu como conselheiro imperial, mas como inquisidor eu sou melhor. Melhor até do que Bernardo Gui, Deus me perdoe. Porque a Bernardo não interessa descobrir os culpados, porém queimar os acusados. E eu ao contrário encontro o deleite mais jubiloso em desenredar uma bela e intrincada intriga. E será ainda porque no momento em que, como filósofo, duvido que o mundo tenha uma ordem, consola-me descobrir, se não uma ordem, pelo menos uma série de conexões em pequenas porções dos negócios do mundo (NR, 380).

A suposição de ordem é, pois, signo de uma interferência nefasta de objetos de crença teológicos em uma (des)ordem de acidentes e singularidades por trás dos quais supor uma harmonia equivale a perder de todo a capacidade mesma do conhecimento. Chegamos, assim, da economia ontológica à resolução ockhamiana da querela dos universais.

Em sua recusa por um registro para além do empírico onde se situariam as tão almejadas essências, Ockham restringe a possibilidade do conhecimento à platitude fenomênica. Como se dá, então, a “eliminação dos universais” de que falam Boehner e Gilson?[15]

Como já vimos, Ockham quer se afastar do realismo moderado de Duns Scotus, visando alcançar as bases para um nominalismo estrito, e o faz a partir de um, por assim dizer, individualismo metodológico radical. As coisas e tudo aquilo que se presta à observação são singularidades, e é precisamente nessa sua qualidade de singular que o observador deve se ater em sua pretensão de conhecimento. As argumentações lógicas de Ockham são esclarecedoras neste ponto.

Uma vez que as coisas são todas unas, e que o universal é exatamente aquilo que pode ser predicável de mais de uma coisa, segue daí que é impossível que o universal possa subsistir in rerum. Nas próprias palavras de Ockham, “chamando-se de universal aquilo que não é numericamente uno, digo que nenhuma coisa é universal, a não ser empregando-se abusivamente o vocábulo”[16]. A continuação do argumento é interessante; apesar da modernidade de suas idéias, é preciso não esquecer que se trata de um pensador cristão da alta escolástica – e, assim sendo, Ockham usa um exemplo propriamente cristão para provar o ponto nominalista. Sobre os problemas suscitados com a inscrição do universal no individual, Ockham defende que

tal universal não poderia ser constituído por alguma coisa totalmente exterior à essência do indivíduo; logo, seria da essência do indivíduo, e por conseqüência o indivíduo se comporia de universais, e assim o indivíduo não seria mais singular do que universal. Igualmente, segue-se que alguma coisa da essência de Cristo seria miserável e condenada, pois que aquela natureza comum que existisse realmente em Cristo existiria também em Judas e seria condenada; logo, existiria no Cristo e no condenado, isto é, em Judas. Isto, porém, é absurdo[17].

A mistura entre universal e essência revela-se, portanto, problemática, até mesmo para a conservação da pureza de Jesus Cristo. E, assim, o universal aparece como predicado possível de mais de uma coisa, o qual pode apenas se situar como construto daquele atributo humano abelardiano responsável pelas imagens do entendimento – só que, aqui, a confusão originária desta imagem não é amenizada pelos estados comuns ou pelas naturezas comuns de Scotus. O universal, enquanto predicado, está apenas na proposição; e “uma proposição só pode estar na mente ou na palavra falada ou escrita”[18].

O que decorre, então, da resolução ockhamiana? Ora, por um lado, um empirismo radical – caracterizado por Adso de Melk como “deseducada empiria” (NR, 24) – a partir do qual apenas as coisas em sua singularidade são objetos de evidência, e só se pode demonstrar racionalmente via indução. Por outro lado, uma vez que as coisas não carregam consigo essências identificáveis no seu âmago, sendo cada uma em relação a outra uma individualidade inconciliável, depreende-se também uma noção representativa do conhecimento. Em outras palavras, já que as coisas nada nos falam a respeito de suas relações essenciais e de quaisquer conexões íntimas, o conhecimento passa a lidar, basicamente, com proposições, com signos das coisas – quando não com signos de signos das coisas.

Identifica-se, assim, uma possível tensão entre as repercussões empiristas e outras nominalistas de sua filosofia. Sigamos aqui, mais uma vez, Baskerville. Em um dado momento de seus diálogos com seu companheiro de investigação Adso, a explicação para a noção de ciência verdadeira é a seguinte:

a idéia é signo das coisas, e a imagem é signo de uma idéia, signo de um signo. Mas da imagem reconstruo, se não o corpo, a idéia que dela tinha outrem. (…) a verdadeira ciência não deve contentar-se com idéias, que são justamente signos, mas deve buscar as coisas em sua verdade singular. E portanto me agradaria remontar dessa marca de uma marca ao unicórnio individual que está no início da cadeia (NR, 307).

Nesse sentido, a coisa singular, marco inicial de todo o processo de conhecimento, é o que interessa em última instância ao investigador, podendo as idéias e os signos, relativos às idéias, funcionarem mais para despistar do que para propriamente levar ao conhecimento verdadeiro.

Este empirismo radical na busca pelas coisas singulares como única base segura para o conhecimento esbarra, contudo, num obstáculo intransponível. Na medida em que as coisas são singulares distintos, carregam consigo uma opacidade essencial. Isto é, tal como apregoa o nominalismo em sua recusa dos universais in rerum, as essências não são cognoscíveis. Há, pois, no cerne do conceito de epistemologia nominalista uma precariedade e uma falibilidade intrínsecas – a evidência e a demonstração requerem a coisa, porém os homens são os únicos operadores do entendimento e restam definitivamente incapazes de alcançar a coisa nela mesma, se detendo nas proposições sobre a coisa. Assim sendo,

os complexos conhecidos pela ciência natural não são compostos por coisas sensíveis nem por substâncias, mas por intenções ou conceitos da alma comuns a tais coisas. E por isso, propriamente falando, a ciência natural não é acerca das coisas sujeitas à corrupção e à geração, nem acerca das substâncias naturais ou das coisas móveis, porque nenhuma delas é sujeito ou predicado em nenhuma conclusão conhecida pela ciência natural. Com efeito, falando com rigor, a ciência natural trata das intenções da alma comuns a tais coisas e que precisamente as representam[19].

E o próprio Baskerville, que víamos atrelar a ciência ao conhecimento da coisa, atesta, como Ockham acima, o primado da representação no conhecimento, agregando um elemento teológico importante:

Repara, estou falando de proposições sobre as coisas, não das coisas. A ciência tem a ver com as proposições e os seus termos, e os termos indicam coisas singulares. Entende, Adso, eu devo acreditar que a minha proposição funcione, porque aprendi com base na experiência, mas para acreditar deveria supor que nela existem leis universais, contudo não posso afirmá-las, porque o próprio conceito de que existam leis universais, e uma ordem dada para coisas, implicaria que Deus fosse prisioneiro delas, enquanto Deus é coisa tão absolutamente livre que, se quisesse, e por um só ato de vontade, o mundo seria diferente (NR, 202).

Se o cerne da ciência natural, como líamos, reside propriamente nas intenções da alma na medida em que estas representam as coisas, então se tem como complemento o que agora é destacado por Baskerville, qual seja, que as verdades da proposição permanecem sempre dependentes de uma experiência incapaz de fornecer uma base segura para a formação de verdades perenes. Estas, com efeito, são inatingíveis por uma ciência fadada a conviver com uma opacidade intermitente a tornar contingente a relação das palavras com as coisas, do homem com o mundo. A relação entre o pensamento e o mundo não é, portanto, de homologia. Não capturamos as ordens do mundo e delas deduzimos princípios e proposições. O homem se impõe sobre o mundo para conhecê-lo; aproximando-nos talvez da própria epistemologia kantiana, podemos afirmar que o sujeito não se subjuga ao objeto, muito pelo contrário.

A liberdade humana que se depreende desta concepção de conhecimento vai, como nos revela o argumento baskervilliano, se coadunar perfeitamente com a liberdade plena de Deus. Aqui é crucial destacar esta maneira como, no pensamento de Ockham, o argumento da potência absoluta divina não constrange uma apreensão desdivinizada do logos. Muito pelo contrário, é exatamente na medida em que Deus é livre que, em primeiro lugar, não é possível enquadrar Seus desígnios nos moldes de uma ordem a priori ou de universais constrangedores e, em segundo lugar, a ciência humana deve prevalecer sempre aberta a novos incrementos e novas proposições, posto que se não há ordem a decodificar, tampouco há um fim possível para o conhecimento.

A potência divina absoluta permanece, pois, ao lado de uma concepção separatista do binômio fé/razão. Nada se demonstra com o auxílio da fé e sem a evidência empírica, assim como à convicção da fé nenhuma demonstração pode dar qualquer auxílio, pois que entre a revelação e o conhecimento não se põe qualquer ponte. Frisando tal separatismo, Ockham afirma:

it is absurd to claim that I have scientific knowledge with respect to this or that conclusion by reason of the fact that you know principles which I accept on faith because you tell them to me. And, in the same way, it is silly to claim that I have scientific knowledge of the conclusions of theology by reason of the fact that God knows principles which I accept on faith because he reveals them[20].

Do nominalismo empirista de Ockham, podemos afirmá-lo sem risco de oxímoro, advém, uma separação entre filosofia e teologia que não repercute, como em Scotus, na “vitória da teologia sobre a filosofia”. O princípio de economia ontológica autonomiza ambas; e, para a interpretação de Gilson, há em Ockham “um sentimento vivíssimo da independência absoluta de um filósofo enquanto tal e uma tendência extremamente acentuada a relegar todo o metafísico ao domínio do teológico, e um sentimento não menos vivo da independência do teólogo que, certo das verdades da fé, dispensa facilmente o socorro caduco da metafísica” [21].

Tal noção de conhecimento e filosofia que entrevemos remete, portanto, a um sujeito cognoscente finalmente ativo – tal como a alusão a Kant acima deixara a entender. A desdivinização do logos traz o homem para a atividade plena do conhecer, sem ontologias alheias a subordiná-lo. Nesse sentido, podemos acompanhar a construção de algumas belas imagens a ilustrar esta gnoseologia ockhamiana. Para o próprio filósofo, “o sujeito da ciência é o próprio intelecto, porque toda ciência é acidente dele”[22]. Nessa mesma linha, Boehner e Gilson tomam o universal como acidente da alma[23] – e é, em última análise, a uma paixão da alma que o ato do intelecto pode vir a conhecer. Deste ponto, pode-se notar de passagem, poderíamos retirar bons argumentos para as batalhas departamentais a serem travadas contra a miopia hiper-realista dos pretensos defensores da objetividade da teoria política.

Deixando esta querela de lado, insinua-se, em fins desta seção de nosso estudo, uma hipótese de leitura nominalista do desfecho de O Nome da Rosa. Como se sabe, a despeito de toda a agudeza do seu potencial de observação e de toda a perspicácia de suas induções, o Ockham em traje de Sherlock batizado de Guilherme de Baskerville por Umberto Eco não consegue evitar que muitos monges morram e que a abadia termine o romance como ruína após o incêndio fulminante da maior biblioteca da cristandade. Apesar de desvendar muitos detalhes exitosamente no que diz respeito às mortes dos monges, Baskerville não consegue cumprir sua missão, ou seja, pôr as mãos no culpado antes deste resolver se entregar. É apenas quando o Jorge Luís Borges travestido de um realista cego nomeado de Jorge de Burgos se apresenta e confessa seus crimes que nosso Sherlock vem a conhecer todo o ardil dos assassinatos que ocorriam à sua volta.

Cabe suspeitar, portanto, que uma das mensagens da séria tragédia rocambolesca composta por Eco esteja precisamente nessa incapacidade demonstrada pelo protagonista. Se não há propriamente uma vitória do vilão, certamente não há nada a se comemorar pelo lado do herói, o que talvez manifeste apenas que este conhecimento, tal como concebido por Ockham, tem na falibilidade um de seus principais caracteres. E tal, evidentemente, não denuncia mera fraqueza, mas antes a necessidade de uma relação dos homens com o mundo que está sempre por construir – e nunca chega ao happy end.

2. Do riso e da liberdade da imaginação

“Legiões têm vivido a se perguntar se Cristo riu ou não. A coisa não me interessa muito. Acho que nunca riu porque, onisciente como devia ser o filho de Deus, sabia o que faríamos nós cristãos”.

Guilherme de Baskerville

Tornemo-nos, pois, a Jorge de Burgos. O velho cego a quem todos os segredos da biblioteca jamais passavam desapercebidos é, com efeito, não apenas o vilão da trama. Juntamente a ele e suas vilanidades, o que temos representado é a mais alta expressão de uma crença fundamentalista a que, como sabemos, vai se opor a figura de Baskerville como bastião da liberdade da filosofia.

A referência ao escritor argentino Jorge Luís Borges é, todavia, curiosa. Muito provavelmente, trata-se de uma alusão ao conservadorismo célebre de suas posições políticas elitistas; o que não apaga a relação de oposição quase diametralmente perfeita entre o escritor real e o conservador fictício no que concerne aos poderes da nomeação. Enquanto Borges é um dos que mais se destacam na literatura do século XX por sua utilização das palavras para fins fantásticos, com uma exploração notável dos limites da autonomia das palavras com relação às coisas; por seu turno, Burgos parece detestar as palavras, a ponto de fazer morrer para proteger a humanidade dos poderes do nome. A despeito disso, então, e uma vez que não estamos dispostos a recobrar a intenção de autores – tal como a mais estéril história dos conceitos o faria –, vejamos em que medida a oposição entre Burgos e Baskerville no que diz respeito ao problema do riso pode nos servir como ilustração adequada do movimento ockhamiano de desdivinização do logos. Com este intuito, cumpre notar, a presente seção se valerá, mais do que a precedente, de referências ao romance a que se nos parece imprescindível remontar.

Em certo sentido, pode-se colocar a questão do riso no cerne da narrativa de O Nome da Rosa. Isto porque os crimes ao redor dos quais gira toda a trama estão diretamente relacionados a um livro misterioso supostamente desaparecido, mas que se encontra dentre os tesouros da preciosa biblioteca da abadia. Trata-se do segundo livro da Poética de Aristóteles, a Comédia, e o risco que, aos olhos de Jorge de Burgos, tal livro oferece a seus leitores é diretamente proporcional à intensidade com que, na trama, se busca tocar as páginas contendo as palavras do Filósofo.

Evidentemente, não se escolhe Aristóteles na escolástica à toa; trata-se da grande autoridade filosófica a partir da qual o próprio Doutor Angélico, Tomás de Aquino, construiu o seu sistema teológico-filosófico. Nesse sentido, as lições de um Aristóteles não são palavras ao vento, não são meros flatus vocis; e, assim sendo, vejamos porque os ensinamentos a respeito da função do riso são perigosos para Burgos, a ponto de fazerem-no matar para manter o silêncio em torno da comédia.

Em mais de uma ocasião no decorrer da narrativa, acompanhamos Burgos desvelar a sua ojeriza ao riso e àqueles que riem. Evidentemente, Baskerville se situa como antagonista nesses diálogos, incitando o velho cego a manifestar todo o realismo ou, se preferirmos, o anti-nominalismo de sua cosmovisão. Assim é que, tal qual podemos notar no diálogo abaixo (iniciado por Burgos), sobrevém do tema do riso uma dissonância quanto às noções por assim dizer humanistas de Ockham/Baskerville; e, não por acaso, tudo começa pela disputa a respeito do riso ou não de Cristo:

‘As comédias eram escritas pelos pagãos para levar os espectadores ao riso, e nisso faziam mal. Jesus Nosso Senhor nunca contou comédias nem fábulas, mas apenas límpidas parábolas que alegoricamente nos instruem sobre como alcançar o paraíso, e assim seja’.

‘Pergunto-me’, disse Guilherme, ‘por que sois tão contrário em pensar que Jesus jamais tenha rido, pois acho que o riso é bom remédio, como os banhos, para curar os humores e as outras afecções do corpo, em particular a melancolia’.

‘Os banhos são boa coisa’, disse Jorge, ‘e o próprio Aquinate os aconselha para remover a tristeza, que pode ser má paixão, quando não está voltada para um mal que possa ser removido através da audácia. Os banhos restituem o equilíbrio dos humores. O riso sacode o corpo, deforma as linhas do rosto, torna o homem semelhante ao macaco’.

‘Os macacos não riem, o riso é próprio do homem, é sinal de sua racionalidade’, disse Guilherme.

‘Também a palavra é sinal da racionalidade humana e com a palavra se pode ofender a Deus. Nem tudo aquilo que é próprio do homem é necessariamente bom. O riso é sinal de estultice. Quem ri não acredita naquilo de que está rindo, mas tampouco o odeia. E portanto rir do mal significa não estar disposto a combatê-lo e rir do bem significa desconhecer a força com a qual o bem se difunde a si próprio’ (NR, 130).

Há que se ressaltar, aqui, a maneira como o riso se associa à palavra, na passagem final da fala de Burgos, no que ambos têm de arriscado para uma conformação passiva do fiel aos mandamentos divinos. O logos deve se manter preso pelas normas morais condizentes com as Sagradas Escrituras, pois contém em si o perigoso potencial da blasfêmia e da heresia. O riso, por sua vez, é dentre as manifestações da racionalidade uma das mais perigosas para a ortodoxia do velho crente, na medida mesma em que distancia os homens das coisas e sinaliza com a sua autonomia.

A razão, evidentemente, deve, no credo de Jorge de Burgos, se subordinar aos ditames da verdade revelada. Não apenas não há independência da filosofia com relação à teologia – o que se apregoa é a funcionalização de uma filosofia já reconhecidamente perigosa a esta altura da Escolástica, que cumpriria domesticar.

E é apenas por admitir o potencial transformador do riso, das palavras e do conhecimento, que é preciso dirimir a dúvida pela autoridade da fé. Nesse sentido, a verdade passa a objeto de contemplação:

O ânimo é sereno somente quando contempla a verdade e se deleita com o bem realizado, e da verdade e do bem não se ri. Eis porque Cristo não ria. O riso é incentivo à dúvida”.

“Mas às vezes é justo duvidar”.

“Não vejo razão para isso. Quando se duvida deve-se recorrer a uma autoridade, às palavras de um padre ou de um doutor, e acaba qualquer dúvida. A mim me pareceis embebido de doutrinas discutíveis, como as dos lógicos de Paris. Mas São Bernardo soube bem intervir contra o castrado Abelardo que queria submeter todos os problemas ao crivo frio e sem vida de uma razão não iluminada pelas escrituras, pronunciando o seu é assim e não é assim. Certamente quem aceita essas idéias perigosíssimas pode também apreciar o jogo do insipiente que ri daquilo de que somente se deve saber a verdade única, que já foi dita de uma vez por todas. Rindo, o insipiente diz implicitamente ‘Deus non est’ (NR, 131).

A verdade que convém a uma alma serena não se presta, certamente, às incertezas e aos percalços que marcam o caminho acidentado das contingentes verdades nominalistas. A razão não iluminada que Burgos remete à Abelardo é, com efeito, o logos desdivinizado que identificamos como uma das conseqüências da noção de conhecimento ockhamiana. A autoridade se põe, enfim, contra a lógica, e insipiente é aquele incapaz de reverenciar uma verdade transcendental que não admite reparos, posto que é absoluta.

Burgos retira, pois, da dúvida insubordinada que não identifica a verdade na autoridade o potencial de negação de Deus. Porém, como vimos, a desdivinização do logos não pressupõe a recusa da teologia e o abandono da crença em Deus. Ockham não deixa de ser um pensador cristão, a despeito da sua excomunhão – causada, deve-se dizer, antes pela sua fuga de Avignon em 1328 do que pela condenação das suas idéias. De todo modo, Baskerville não poderia deixar de responder à pesada insinuação do velho Burgos, e o faz lembrando que a razão não deixa de ser obra do Criador e, como tal, se põe a fins por Ele próprio designados:

Deus quer de nós que exercitemos a nossa razão em muitas coisas obscuras sobre as quais a escritura nos deixou livres para decidir. E quando alguém vos propõe acreditar numa proposição, vós deveis primeiro examinar se ela é aceitável, porque a nossa razão foi criada por Deus, e aquilo que agrada à nossa razão não pode não agradar à razão divina, sobre a qual sabemos, contudo, somente o que, por analogia e sempre por negação, inferimos dela pelos procedimentos de nossa razão. E então vede que às vezes, para minar a falsa autoridade duma proposição absurda que repugna à razão, também o riso pode ser um instrumento justo (NR, 132).

É possível sugerir, a partir destes diálogos que tomam o riso como objeto, uma familiaridade entre o personagem construído por Eco e o pensamento de Pedro Damião, um típico defensor da teologia contra a filosofia do século XI. Tal como em Ockham, o que se tem é um separatismo entre razão e fé – sendo que, desta feita, é no sentido da desvalorização da razão que o argumento se direciona.

A fé é autárquica e não carece da razão filosófica em seu auxílio; muito pelo contrário, esta parece apenas destinada a minar os fundamentos sólidos da crença cristã. Assim como vimos Burgos opor a lógica de Abelardo contra a razão iluminada das Escrituras, também Pedro Damião faz um interessante ponto nesse sentido: “Queres aprender gramática? Aprende a declinar Deus no plural!”[24]. Se, por um lado, o riso e a liberdade da imaginação a ele associados insinuam para Jorge uma negação de Deus, por outro, a lógica e os ensinamentos da gramática fazem Damião neles enxergar a semente da heresia.

Na medida em que a própria filosofia cristã é devedora de uma aproximação entre teologia e filosofia, tal como articula Gilson, podemos concluir com o medievalista que:

o teologismo puro de são Pedro Damião equivale a uma negação radical da filosofia cristã, pois sua essência é eliminar a filosofia em benefício da teologia. A vida do cristão tem uma só finalidade: obter sua salvação. Obtém-se a salvação pela fé. Aplicar a razão à fé é dissolvê-la. Portanto só resta proibir ao cristão a busca do conhecimento racional, como sendo uma empreitada perigosa para a obra da sua salvação. Em suma, foi o diabo que inspirou aos homens o desejo da ciência, e foi esse desejo que causou o pecado original, fonte de todos os nossos males[25].

Se, então, para Ockham o seu princípio de economia ontológica leva à afirmação de um conhecimento por definição falível e fadado a uma procura sempre irresoluta pela verdade, em Damião e também em Burgos, por outro lado, trata-se de uma noção fechada de verdade. E a proximidade entre o teólogo do século XI e o sábio cego do século XIV de Umberto Eco se revela tanto mais estreita, na medida em que enquanto um quer proibir a busca do conhecimento racional, cabe ao outro propor o próprio trabalho do conhecimento não como busca (ativa), mas como custódia (passiva) de uma verdade já alcançada:

A custódia, digo, não a busca, porque é próprio do saber, coisa divina, ser completo e definido desde o início, na perfeição do verbo que exprime a si mesmo. A custódia, digo, não a busca, porque é próprio do saber, coisa humana, ter sido definido e completado no arco dos séculos que vai desde a pregação dos profetas à interpretação dos padres da igreja. Não há progresso, não há revolução de períodos na história do saber, mas, no máximo, contínua e sublime recapitulação… Ora, meus irmãos, qual é o pecado de orgulho que pode tentar um monge estudioso? O de entender o próprio trabalho não como custódia mas como busca de alguma notícia que não tenha sido ainda dada aos humanos…” (NR, 385).

A ordem do mundo está, assim, para Jorge de Burgos, já de há muito definida e a perfeição do verbo que exprime a si mesmo exige uma realidade das coisas compreendida em sua transparência, frente à qual a nomeação, atributo humano por excelência, deixaria de remeter a um ato de liberdade do intelecto, ou à paixão da alma ockhamiana, para passar a designar diretamente as essências.

Fosse, no entanto, a relação dos homens com o mundo pautada neste princípio da transparência e, como defende Jorge, bastaria “dizer peixe para nomear o peixe sem ocultar-lhe o conceito debaixo de sons mentirosos” (NR, 113). Entretanto, como o nominalismo de Ockham/Baskerville bem nos informou, é a opacidade que regula tal relação – e onde não há verdade pré-estabelecida, tampouco há mentira nas palavras e nas imagens apaixonadamente fabricadas a fim de driblar uma contingência incontornável.

Conclusão

“O diabo não é o príncipe da matéria, o diabo é a arrogância do espírito, a fé sem sorriso, a verdade que não é nunca presa de dúvida. O diabo é sombrio porque sabe por onde anda, e andando, vai sempre por onde veio”.

“As únicas verdades que prestam são instrumentos para se jogar fora”.

Guilherme de Baskerville

Para terminarmos em sintonia com o início, podemos sintetizar aquilo que foi tratado ao longo deste estudo a partir de uma nova alusão a Michel Foucault. Assim como Umberto Eco, no romance que de certa forma conduziu este trabalho até aqui, traz um Jorge Luís Borges disfarçado para sua trama, Foucault também recorre ao argentino para introduzir aquela que é talvez sua grande obra, As palavras e as coisas. Seria, pois, a partir de um texto borgeano e de uma de suas fantásticas taxonomias que Foucault haveria tirado seu próprio impulso original para mergulhar nos campos epistemológicos de que se ocupa no livro. Mas vamos, sem mais delongas, ao próprio Foucault:

Este texto de Borges fez-me rir durante muito tempo, não sem um verdadeiro mal-estar difícil de vencer. Talvez porque depois vinha a suspeita de que existe uma desordem pior do que a do incongruente e da aproximação do que não concorda entre si: a desordem que faz cintilar os fragmentos de um grande número de ordens possíveis na dimensão, sem lei nem geometria, do heteróclito; e importa entender esta palavra no sentido mais próximo da etimologia: as coisas apresentam-se nessa série ‘deitadas’, ‘colocadas’, dipostas’ em sítios a tal ponto diferentes que se torna impossível encontrar para elas um espaço acolhedor, definir, sob umas e outras, um lugar comum a todas[26].

O objetivo deste estudo, nesta mesma direção, era precisamente o de atestar a maneira como a filosofia de Ockham implode também este lugar comum de que fala Foucault ao retirar os universais das coisas e colocá-los nos nomes humanamente atribuídos. Na medida em que isola a verdade da fé das conclusões da razão natural, Ockham dá um importante passo no sentido de emancipar o pensamento filosófico[27] e, a nosso juízo, desdivinizar o logos após a conciliação Escolástica deste com a teologia e os desígnios supra-mundanos. É, pois, precisamente por Ockham se opor a tal conciliação nos termos tomistas, por exemplo, que se pôde dizer que “Ockham le philosophe a eu pour tâche essentielle de montrer le peu de solidité des synthèses du savoir édifiées par les théologiens de la fin du XIIIe siècle” [28].

Contra a Escolástica, portanto, coube a Ockham afirmar, tal como Foucault seis séculos depois, o primado da desordem das coisas frente a uma suposta ordem divinamente estabelecida e supostamente cognoscível. Como Baskerville já nos mostrara em nosso passeio por O nome da rosa, por um lado, a intuição e o conhecimento via demonstração exigem a recusa de pseudo-essências e a busca pela verdade nos próprios singulares que substantivamente se apresentam ao investigador. Por outro, o contato com as coisas exige a nomeação e a construção de um sentido para uma realidade exterior em si mesma desprovida de uma ordem interna. Nos dois passos, contudo, caminhamos rumo à afirmação da contingência nos intercâmbios entre sujeito e mundo. A precariedade é, portanto, a marca do conhecimento ockhamiano e de um mundo agora desprovido da sobrecarga ontológica sobre ele imposta por tantos pensadores do medievo. O logos está livre das amarras que o prendiam a uma autoridade justificada teologicamente – e a constituição do mundo volta a ser um problema, dada a reinstauração da desordem.

Infelizmente, nosso espaço aqui não nos permitiu explorar a relação, no pensamento ockhamiano, entre a sua noção de conhecimento e as suas posições e práticas políticas. Mas como a querela entre Baskerville e Burgos exposta na segunda seção acima deixa entrever, a recusa de uma interpolação autoritária por sobre a liberdade imaginativa tão bem simbolizada no riso nos indica que a sua escolha pela dissociação entre o poder papal e o secular não está de todo alheia às indagações filosóficas que o perturbavam.

Se, então, como Gilson afirma, “num pensador da Idade Média, o Estado está para a Igreja assim como a filosofia está para a teologia e como a natureza está para a graça”[29], Ockham talvez possa ser melhor interpretado se tomado como um daqueles que concorre para a distensão de um pensamento acostumado a funcionalizar o Estado, a filosofia e a natureza para fins teológicos.

Como lição deste império do nome proposto por Ockham fica, enfim, não apenas a sensação de que a continuidade entre as épocas é maior do que corriqueiramente se supõe; não apenas a precaução no tomar as ordens e hierarquias como contingentes – mas, sobretudo, o imperativo de desmistificar os saberes estabelecidos dos pretensos doutores cuja empáfia na posse de suas verdades definitivas deveria causar nada mais do que o riso daqueles que percebem o oxímoro em tratar uma verdade qualquer como definitiva. Pois no cerne mesmo da verdade reside um ato intelectivo do sujeito, ou uma paixão da alma, para falarmos com Ockham – e o que nos resta é partilhar da confiança abelardiana de que o nome da rosa subsistirá mesmo depois de terem arrancado todas as rosas.

Bibliografia

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Rajchman, John. Foucault: A liberdade da filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987.

[1] Michel Foucault, Naissance de la Biopolitique (Paris: Gallimard/Seuil, 2004), p. 5.

[2] John Rajchman, Foucault: A liberdade da filosofia (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987), p.47.

[3] Etienne Gilson, A filosofia na Idade Média (São Paulo: Martins Fontes, 2001), p. 947.

[4] O nome do protagonista espelha, ele mesmo, a fusão de que falamos: uma mistura entre Guilherme de Ockham e O cão dos Baskervilles, célebre trama protagonizada por Sherlock Holmes e Dr. Watson. Poderíamos dizer, em linguagem própria, que o nome espelha a própria intenção da alma do seu autor, Umberto Eco.

[5] Umberto Eco, O Nome da Rosa (Rio de Janeiro: O Globo, 2003), pp. 61-62. De agora em diante as referências a O Nome da Rosa aparecerão entre parênteses no corpo do texto, com a abreviatura NR e o número da página.

[6] Etienne Gilson, A filosofia na Idade Média, p.289.

[7] Ibid., p. 347.

[8] Renato Lessa, Imagens do Entendimento, p. 2.

[9] Etienne Gilson, A filosofia na Idade Média, p. 348.

[10] Ibid., p. 755.

[11] Philoteus Boehner e Etienne Gilson, História da Filosofia Cristã (Petrópolis: Vozes, 2007), p. 539.

[12] Etienne Gilson, A filosofia na Idade Média, p. 798.

[13] Ibid., p. 798.

[14] “Pela eliminação dos universais, Ockham despovoa a natureza de todas as entidades míticas, tornando-a ao mesmo tempo mais sóbria e mais interessante; doravante, o pesquisador irá ocupar-se, não já com o universal invisível, mas com a coisa individual, visível e imediatamente verificável”. In: Philoteus Boehner e Etienne Gilson, História da Filosofia Cristã, p. 549.

[15] Guilherme de Ockham, Obras Selecionadas. In: Os Pensadores (São Paulo: Abril Cultural, 1979), p. 361.

[16] Ibid., p. 362.

[17] Ibid.

[18] Ibid., p. 351.

[19] Guilherme de Ockham apud Alfred J. Freddoso, Ockham on Faith and Reason. In: The Cambridge Companion to Ockham (Cambridge: Cambridge University Press, 1999), p. 334.

[20] Etienne Gilson, A filosofia na Idade Média, p. 807.

[21] Guilherme de Ockham, Obras Selecionadas (Os Pensadores), p. 350.

[22] Philotheus Boehner e Etienne Gilson, História da Filosofia Cristã, p. 540.

[23] Pedro Damião apud Etienne Gilson, A filosofia na Idade Média, p. 286.

[24] Etienne Gilson, O Espírito da Filosofia Medieval (São Paulo: Martins Fontes, 2006), p. 8.

[25] Michel Foucault, As palavras e as coisas (Lisboa: Presença, s/d), pp.5-6.

[26] Etienne Gilson, A filosofia na Idade Média, p. 836.

[27] Georges de Lagarde apud Arthur Stephen Mcgrade, The political thought of William of Ockham (Cambridge: Cambridge University Press, 2002), p. 32.

[28]Etienne Gilson, A filosofia na Idade Média, p. 308.