A História como ontologia do mundo: Luciano de Samósata entre a derrisão e a austeridade, por Cleber Ranieri Ribas de Almeida

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Cleber Ranieri Ribas de Almeida é professor de Teoria Política na Universidade Federal do Piauí.

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Resumo

O filósofo cínico Luciano de Samósata foi, dentre os autores da antiguidade clássica, aquele que mais influiu para a formação do cânone literário que constitui clara tradição filosófica e ficcional na modernidade, a denominada “tradição luciânica”. Escritores como Erasmus de Roterdan (Elogio da Loucura), Rabelais (Pantagruel), Swift (Viagens de Gulliver), Voltaire (Micrômegas), Quevedo (O Gatuno), Thomas Morus (Utopia) e Machado de Assis (Memórias Póstumas de Brás Cubas)[1] foram assumidamente influenciados pela tradição da sátira menipéia luciânica, e fizeram amplo uso de vários recursos discursivos e estilísticos criados ou disseminados pelo filósofo. O corpus lucianeum constitui um dos maiores legados dos antigos à posteridade e, através dele, temos acesso a um conjunto de textos que se valem da derrisão como instrumento da criação e da crítica filosófica.

Palavras-chave:

Luciano de Samósata, Cínico, Literatura

Abstract

The cynic philosopher Lucian of Samosata was, among the authors of classic antiquity, the one that most influenced the formation of the literary canon that clearly that constitutes a philosophical tradition in the fiction of modern times called “Lucianic tradition”. Writers such as Erasmus of Rotterdam (The Praise of Folly), Rabelais (Pantagruel), Swift (Gulliver’s Travels), Voltaire (Micromegas), Quevedo (The Thief), Thomas Morus (Utopia) and Machado de Assis (Posthumous Memoirs of Bras Cubas) were admittedly influenced by the tradition of menippean Lucianic satire and made extensive use of various discursive and stylistic resources created or disseminated by the philosopher. The Lucianeum corpus is one of the greatest legacies for the posterity; through him we have access to a set of texts that use the derision as an instrument of creation and philosophical criticism.

Key words

Lucian of Samosata, Cynic, Literature

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“Pois não ando a pé nem sigo a cavalo, como diz o ditado, mas semelhante a um hipocentauro”.
Dupla acusação [Luciano de Samósata]

“A sensibilidade de qualquer época do passado dá sempre a impressão de que provavelmente é mais limitada do que a nossa, pois estamos naturalmente muito mais cônscios da falta de consciência de nossos ancestrais em relação às coisas de que somos conscientes do que da falta de consciência, em nós mesmos, relativamente às coisas que eles perceberam e das quais não temos a menor idéia.” [T.S.Eliot]

LUCIANO DE SAMÓSATA: O SÍRIO SEM DEUS

O filósofo cínico Luciano de Samósata foi, dentre os autores da antiguidade clássica, aquele que mais influiu para a formação de um certo cânone literário. Seu contributo ainda permanece pouco estudado, não obstante constituir uma clara tradição filosófica e ficcional na modernidade, a denominada “tradição luciânica”. Escritores como Erasmus de Roterdan (Elogio da Loucura), Rabelais (Pantagruel), Swift (Viagens de Gulliver), Voltaire (Micrômegas), Quevedo (O Gatuno), Thomas Morus (Utopia) e Machado de Assis (Memórias Póstumas de Brás Cubas)[1] foram assumidamente influenciados pela tradição da sátira menipéia luciânica, e fizeram amplo uso de vários recursos discursivos e estilísticos criados ou disseminados pelo filósofo. O corpus lucianeum constitui um dos maiores legados dos antigos à posteridade e, através dele, temos acesso a um conjunto de textos que se valem da derrisão como instrumento da criação e da crítica filosófica.

Nascido em Samósata (125 -181 d.c.), província romana da Síria, Luciano escreveu sua obra durante o reinado de Marcus Aurelius, e fora reconhecido por dar continuidade a um gênero satírico criado por Menipo de Gadara, qual seja, o denominado diálogo satírico. Este gênero híbrido caracterizava-se por mesclar harmoniosamente a comédia e o diálogo filosófico, gêneros absolutamente díspares uma vez que o diálogo oriundo da tradição platônica era visto como uma espécie de sermo nobilis, isto é, uma forma filosófico-discursiva sublime, ao passo em que a comédia era considerada um gênero inferior. É bastante conhecida a autodefinição do hibridismo filosófico-literário de Luciano: segundo o sírio, o diálogo satírico seria uma espécie de estética do hipocentauro, cujo andar não seria nem a pé, nem a cavalo.

Como sabemos, a sátira menipéia era absolutamente distinta da sátira romana, a qual prevalecia no período e no contexto em que Luciano escrevia. A sátira romana, conhecida pelo adágio ridendo castigat mores (“a rir se corrigem os costumes”) tinha por princípio a exposição dramatúrgica dos vícios e maus costumes citadinos, e, através da ridicularização destes vícios, tinha-se o propósito de re-educar moralmente a população. O riso era uma forma de auto-flagelação pública e deveria deixar clara a afirmação de uma moralidade a ser preservada. O caráter cômico e derrisório dos textos de Juvenal e Horácio, por exemplo, trazia subjacente ao seu discurso uma mensagem em favor dos bons costumes. Assim, a sátira romana se enrijeceu numa forma fixa, o hexâmetro, tornando-se um gênero literário à parte, e com um caráter moral definido. Já a sátira menipéia apresentada nos textos de Luciano, ao contrário da sátira romana, não se cristalizou em formas fixas[2]. Segundo Hendrickson[3], os helenos “nunca desenvolveram uma designação específica para aquilo que chamamos de sátira, nem criaram formas fixas para sua expressão […] o único termo compreensivo que abrange a sátira em todas as suas formas e nuanças é o de riso: o riso do divertimento e da gozação, da ironia, da raiva, que penetra a máscara da pretensão”. A sátira luciânica, continuadora da tradição menipéia, caracterizava-se pela suspensão do juízo moral do narrador quanto a ação dos personagens, ou seja, na sátira do sírio havia uma ambigüidade que se negava a moralização do mundo, ambigüidade esta que se sustentava no equilíbrio harmonioso entre o cômico e o austero. O riso, neste caso, não estava a serviço de qualquer virtude ou ordem justa. Era um riso sem censura e sem “moral da história”.

Para além do caráter neutro e ataráxico do narrador, muitas das sátiras de Luciano buscavam extrapolar qualquer controle à fantasia e à imaginação na criação ficcional. Imperava nestas obras, tais como em Uma História Verdadeira, um princípio de absoluta liberdade estética em relação ao princípio da verossimilhança. Talvez por esta razão, a obra de Luciano seja vista como a precursora antiga do surrealismo e das histórias de ficção científica, narrando viagens a lua, encontros com extraterrestres e imagens de baleias aladas, entre outros. Certamente por ser um autor que cortejava a ficção do absurdo e a derrisão filosófica, Luciano jamais tenha sido levado a sério como filósofo. De fato, sua progênie é composta majoritariamente por autores adeptos de uma filosofia semi-ficcional, como Thomas Morus e Erasmus, autores que privilegiavam o tema da loucura e da alucinação criativa. A proximidade com o delírio poético fora a tônica de todo o corpus lucianeum, e sua relação com a tradição filosófica pregressa, uma permanente derrisão. Para ele, todas as tentativas de fundar o mundo sobre um fundamento filosófico deveriam ser derrotadas pelo riso. A filosofia, por uma questão de regularidade pública das formas de interação, não deveria se levada a sério.

Luciano, entretanto, à revelia de seu desprestígio à verossimilhança e ao dogmatismo, dedicou um de seus trabalhos a um tema por ele julgado de extrema relevância: o ofício do historiador. Neste texto, intitulado Como se deve escrever a História, o autor discorre acerca da peculiaridade do discurso historiográfico, distinguindo-o em relação à narrativa ficcional. Encontramos aí um filósofo com dedo em riste, repreendendo os maus historiadores e preocupado com o uso fantasioso e encomiástico da História. Alguns historiadores desconsideram completamente a importância deste Tratado, outros, em se tratando de um filósofo cínico como Luciano, qualificam-no como um “divertido pastiche de Tucídides”[4]. Fato é que, nem entre os historiadores antigos, tampouco entre os modernos, as prescrições historiográficas de Luciano foram levadas a sério. Não obstante, creio haver muitas razões para considerarmos este tratado como um texto de exceção na obra luciânica.

João Kennedy Eugênio[5] aponta-nos duas razões fundamentais. A primeira é que os excertos satíricos de Como se deve Escrever a História são de caráter moralizante, mais próximos à tradição romana. O historiador, segundo Luciano, deve buscar a verdade, narrar o que aconteceu sem afetações ou simpatias. O sírio repreende os maus historiadores como Heródoto, o “Pai da História” e também o “Pai da Mentira”. Estes contadores de estória estariam acostumados a engrandecer desproporcionalmente os acontecimentos que lhe interessam. Luciano, porém, elogia os bons historiadores, parcimoniosos e justos na narração dos fatos. Para Kennedy, a paródia e o pastiche apresentados neste tratado são instrumentos de exposição dos erros e exageros dos maus historiadores, ou seja, são elementos discursivos utilizados com fins normativos.

A segunda razão pela qual devemos considerar o tratado de Luciano sobre a história com um texto sério radica em seu caráter político. Sabemos que o período em que o filósofo escreve fora um tempo de expansão do Império Romano, e como tal, marcado por uma historiografia eminentemente encomiástica. A adulação, o panegírico e o encômio grassavam por toda a literatura romana, seja na poesia de Píndaro, seja na historiografia de Valério Máximo[6]. Luciano, sírio inserido num mundo de cultura helenística, propunha uma história justa[7] e livre em relação ao poder imperial, uma história que não se intimidasse com o poder dos generais e chefes. André Lopes[8], por esta razão, definiu o tratado como um panfleto político anti-romano. Luciano Canfora, neste mesmo diapasão, afirma que Como se Deve Escrever a História era — assim como a tradução hebraico-grega feita por Flávio Josefo do livro a História da Guerra Judaica — um opúsculo contra a “mentirosa historiografia filo-romana” a qual “floresceu a partir da euforia provocada pelas vitórias de Lúcio Vero”[9].

O propósito deste artigo é, feita esta brevíssima apresentação do autor, levantar algumas hipóteses sobre as razões que conduziram Luciano de Samósata a conceder um tratamento austero e edificante ao ofício do historiador, colocando o discurso historiográfico no centro de suas preocupações filosóficas.

LUCIANO E A BUSCA DE UMA DIMENSÃO ONTOLÓGICA OBJETIVA

Wallace Stevens afirmou certa vez que “a realidade é um clichê do qual nós escapamos pela metáfora”[10]. Se levarmos tal assertiva às últimas conseqüências, reconheceremos nela um dos elementos centrais dos tropos pirrônicos: a premissa segundo a qual o encouraçamento da vida ordinária em determinado padrão de realidade é uma construção social, esteja ela fundada em princípios filosóficos, esteja ela lastreada pelo uso dos sentidos publicamente compartilhados. Uma tal dimensão ontológica objetiva cria uma realidade unicista e incontroversa de validade pública capaz de gerar acordos entre os partícipes do mundo social acerca da verossimilhança de determinadas assertivas. A metáfora aí seria uma heterotopia do real.

É certamente neste ponto que detectamos uma inflexão no pensamento e na postura derrisória de Luciano de Samosáta: porque o tratamento dedicado a filosofia clássica assume tal menosprezo hilariante, como no Hermotímio, ao passo em que sua abordagem do problema da verossimilhança historiográfica impõe uma leitura normativa e austera da questão. Numa palavra, por que o modelo historiográfico luciânico não admite a metáfora[11], expelindo-a para a circunscrição fictícia? Qual o papel da história no encouraçamento público de um padrão de realidade ou mesmo de uma ordem justa?

Para apontarmos alguns índices que responderiam a tais indagações devemos recorrer inicialmente à historiografia clássica, sobretudo Heródoto, Tucídides e Políbio. Sabemos que ao relatar as ações e os feitos dos homens, o objetivo comum destes historiadores era evitar que os vestígios de tais atos se apagassem com o tempo. Nestes termos, os motivos[12] das ações desencadeadoras dos fatos ocupavam o lugar central das narrativas históricas: para Heródoto importava o motivo do conflito entre Helenos e Bárbaros, para Tucídides, focalizando os motivos do embate entre Atenas e Esparta, importava tão-somente a narrativa do grandioso e do magnífico em recusa do anódino, para Políbio, as razões da decadência grega e da ascensão romana. Estando a serviço das gerações subseqüentes como um estoque de exemplos providenciais — Tucídides — ou em favor de uma memória cívica que emula o esquecimento —, a História constituir-se-ia numa estratégia de fixação do tempo. A consciência da extensão e da profundidade do passado, além da preocupação com porvir, conduziu ao reconhecimento da História como um artifício anti-corrosivo à ação temporal. A elaboração de cronologias, a confecção de ciclos temporais, a demarcação de datas, a mobilização de calendários, a perscrutação de documentos, anais e monumentos, constituiam artifícios humanos próprios do conflito entre memória e esquecimento.

Por outro lado, como assinala Domingues[13], as linhas de causalidade e conexão entre os fatos históricos não implicariam, como se pode deduzir da historiografia iluminista moderna, na elaboração de determinadas leis capazes de conferir identidade e unidade aos fenômenos sem eliminar-lhes a multiplicidade.

A primeira hipótese para respondermos as indagações sobrescritas é a seguinte: a história na postulação luciânica é o lócus de construção da dimensão ontológica objetiva que permite aos agentes do mundo ordinário viverem o cotidiano sem interrupções filosóficas e auto-questionamentos desnecessários[14]. O papel da história é, portanto, reter níveis de certeza social, os quais são demolidos pela perquirição filosófica. A filosofia, desta forma, só poderia ser objeto de derrisão, uma vez que levada a sério, ela povoaria o mundo com contingências desnecessárias ou com enfermidades dogmáticas. Daí que, somente o discurso histórico é portador, na bibliografia luciânica, de prescrições normativas: isto ocorre porque tal discurso é considerado como o núcleo fundacional de uma ordem pública justa e capaz ela própria de estabelecer critérios para o julgamento da verdade. Para comprovarmos tal hipótese utilizaremos como exemplo dois textos de Luciano.

O primeiro, Filósofos em Leilão, ou como preferem alguns tradutores, O Mercado das Vidas, descreve um ambiente no qual diferentes filósofos propõem seu modo de vida às pessoas no amplo mercado autopromocional e competitivo dos dogmas filosóficos, recrutando alunos e inculcando-os quanto a superioridade deste ou daquele método. O segundo texto — Hermotímio — relata ironicamente a discussão entre dois indivíduos, o primeiro, Hermotímio, epígono de uma escola filosófica, e o segundo, Licínio, o cético que o interroga ao vê-lo passeando pelas ruas e murmurando as lições de seu mestre. Licínio indaga-o para aonde iria naquele passo apressado. Em resposta, Hermotímio afirma estar indo a casa do mestre. “Há quanto tempo frequentas a casa do mestre?”, indaga Licínio. “Há vinte anos”, responde. Licínio interroga exclamativo se após vinte anos tal aprendizado filosófico não estaria concluído, ao que Hermotímio prevê que em vinte anos contados a partir dali, sua formação estaria completa. Mais adiante, o epígono explica que iniciou sua formação filosófica aos quarenta anos, estando, portanto, aos sessenta, na metade do aprendizado. Foucault[15], adverte acerca da correlação entre esta divisão temporal e o modelo quatripartite da vida humana apontado por Pitágoras: do nascimento aos vinte anos o homem é criança, dos vinte aos quarenta adolescente, dos quarenta aos sessenta adulto, e a partir dos sessenta idoso. Ao longo da narrativa percebe-se o tom derrisório de Licínio, o cético, quanto a considerar princípios filosóficos como guias da vida ordinária na busca pela felicidade. O diálogo encerra-se com o cético ironicamente pedindo a Hermotímio que o guie.

Em ambos os casos, como em outros que podemos detectar na vasta obra de Luciano, há uma postura de desqualificação cognitiva da filosofia como instrumento de condução de modos de vida. Isto ocorre porque, diante do mercado plurívoco de verdades e princípios filosóficos, o homem ordinário não pode estabelecer critérios incontroversos de julgamento sobre o verdadeiro ou o justo. A questão, neste ponto específico conduzir-nos-á aos limites propostos por Luciano em seu Como se deve escrever a História no qual o autor propõe-se definir os limites entre historiografia e ficção, verdade e fabulação. Conforme assinala Lopes[16], a técnica crítica de Luciano divide-se em (a) uma crítica cômica que ridiculariza os modos equívocos e enviesados do registro histórico, indicando como não se deve proceder ao narrar os fatos e, por outro lado, (b) numa postulação normativa e construtiva de como se deve relatar eventos. A questão subjacente a tal distinção na postura crítica do autor é: por que Luciano, o escarnecedor cético das postulações filosóficas, o histrião derrisório das pretensões de verdade compõe, ao tentar demarcar o lugar do discurso historiográfico, um texto normativo que prescreve modos e princípios a serem seguidos pelos leitores na ação de narrar eventos? A segunda hipótese que sustentamos incide sobre o problema da demarcação do discurso histórico como um lugar propício, naquele período histórico de hegemonia romana, a contrapor-se às injustiças da historiografia encomiástica, ocupada com as láureas e elogios aos generais e heróis de guerra. O papel do discurso histórico para Luciano estrangulava os preceitos dos historiadores clássicos quanto a reter o sussuro da musas portadoras da memória: ao historiador importava a afirmação de uma história justa para com seus partícipes, recusando a narrativa enviesada dos eventos que deveriam ser relatados por uma verdade imparcial, cega as diferenças. Neste contexto, o historiador deve narrar a história do presente com vistas ao porvir, porque a história é um instrumento — certamente o mais profícuo — para a ação política. Os falsos historiadores, encomiásticos e aduladores, “negligenciando contar o que ocorreu gastam seu tempo no elogio dos chefes e generais, elevando os nossos até as nuvens e depreciando os do inimigo além de toda a medida”[17]. O historiador imparcial e objetivo deve prezar pelas virtudes cínicas: não ter medo, ser incorruptível, livre, franco e verdadeiro. Deve, portanto ser um homem que:

não admita nem omita nada por ódio ou por amizade; que a ninguém poupe, nem respeite, nem humilhe; que seja juiz equânime, benevolente com todos até o ponto de não dar a um mais do que o devido; estrangeiro nos livros, sem cidade, independente, sem rei, não sem preocupando com o que achará este ou aquele, mas dizendo o que se passou[18].

Em seu método historiográfico, Luciano, portanto subsume a beleza retórica e poiética aos critérios da verdade e da utilidade (chresimon). A função da história, como recurso de ação política é “partir dos acontecimentos verdadeiros e evidentes, e demonstrá-los […] a história tem uma única tarefa e um único objetivo — a utilidade — e isso deriva apenas da verdade”[19]. Assim é que, embora recuse o panegírico e o encômio no discurso histórico, admite o elogio e a censura se estes mantiverem-se “suportados pela evidência” e se forem declinados “na hora propícia”[20]. Esta brecha de licenciosidade assume, outrossim, uma conotação política, uma vez que o elogio é um recurso da eloqüência retórica capaz de dar vivacidade e poder de persuasão ao narrador em relação a um auditório. Isto não implica, conforme salienta Lopes[21], que a história Luciânica seja um desdobramento da retórica, como o quer Cícero. Pelo contrário, Luciano recusa a retórica epidítica auto-referente da tradição sofista: ele vislumbra uma história capaz de ação, ou melhor, capaz de despertar a audiência para os eventos relevantes. A história desprovida de retórica assemelha-se aos anais, os quais nada mais são que catálogos cronológicos; por outro lado, a história demasiado poetizada com encômios, fabulações e exageros ultrapassa as fronteiras da objetividade e desqualifica-se como um gênero poético degenerado. Tais limites entre poesia e história evidenciam que, para Luciano, o equilíbrio entre liberdade retórica na apresentação dos fatos e censura quanto ao controle da imparcialidade narrativa é fundamental na constituição de uma história justa e verdadeira.

A conclusão desta segunda hipótese é a de que o discurso histórico localiza-se numa zona intermediária de uma tríplice fronteira onde as fabulações mitopoéticas (Hesíodo e Homero), a discursividade vazia da retórica epidítica e o dogmatismo filosófico, não adentram. O problema de Luciano é, portanto, um problema de demarcação do discurso histórico verdadeiro, capaz de salvaguardar-se da degeneração fabulista, da retórica erística[22] e da patologia dogmática da filosofia. Devemos neste ponto ressaltar dois aspectos das estratégias retóricas luciânicas: a paródia caricatural e a sutileza irônica. Em seu História Verdadeira o sátiro de Samósata extrapola ao ridículo os excessos de fabulação mitopoética próprios da narrativa versificada. O propósito do autor neste aspecto não é, como podem deduzir alguns intérpretes, ridicularizar Homero, mas ridicularizar aqueles que tratam a poesia homérica como documento historiográfico. Assim, Luciano quer levar esta mixórdia de gêneros narrativos às últimas conseqüências, parodiando fabulações e exponencializando a liberdade imaginativa. Por outro lado, considerando o contexto histórico em que escrevia, Luciano preferiu, através do diálogo satírico por ele criado, ironizar aduladores e escolas filosóficas erísticas de sua época, ao invés de “por a cabeça a prêmio” redigindo panfletos abertos contra a historiografia filo-romana. Sabe-se que a euforia da hegemonia romana conduziu a uma deturpação encomiástica da narrativa histórica, e Luciano reconheceu neste ponto um sintoma da decadência. O caráter sutil de sua crítica é, certamente, aquele que mais tenha produzido uma progênie, sobretudo na literatura ocidental.

Se a história é portadora de um fundamento ontológico objetivo, soerguido fora do alcance do relativismo epistemológico, então cabe-nos indagar quais instrumentos o historiador utiliza para assegurar a validade cognitiva dos fatos que relata. Enquanto Tucídides afirma ser possível tão-somente uma história contemporânea narrada e testemunhada pelo agente cognoscitivo, para Heródoto, o historiador pode conhecer tanto como testemunho quanto como auscultador da memória pública. Para Luciano o instrumento de cognição do historiador é, igualmente, o olhar, que não obstante, assume uma denotação gorgiana: o historiador deve ser capaz de “ordenar os acontecimentos de forma bela e mostrá-los da maneira mais clara possível”[23]. O elemento gorgiano neste aspecto incide na condição de árbitro exercida pelo historiador que seleciona e julga quais eventos são relevantes. Ver é, portanto, interpretar.

A terceira hipótese que sustentamos quanto a indagação do papel da história no encouraçamento público de um padrão de realidade, e por conseguinte, de uma ordem justa, incide na invenção de um gênero narrativo-retórico híbrido por Luciano. Como sabemos este gênero é o diálogo cômico-satírico cuja característica híbrida reside no fato de que o diálogo de origem platônica sempre assumiu um caráter austero, heurístico e apolínico, ao passo em que a tragédia cômica sempre assumira um caráter dionisíaco. O sátiro de Samósata ousou combinar tais gêneros ainda que entre eles, do mesmo modo em que ocorrera entre a história e o elogio (ou a história e o plasma), houvessem duas oitavas de distância. Ao arrancar esta máscara trágica do diálogo platônico, Luciano antecipando-se a deterrence inimiga autoacusa-se de não andar nem a pé nem cavalo, mas tal qual um hipocentauro, heteróclito de gêneros narrativos imiscíveis. Interroga-se, entretanto, por que esta liberdade e esta ousadia aplicadas a hibridização dos gêneros (diálogo e sátira) não fora levada a cabo na distinção entre verdade histórica e elogio, ou melhor, história e plásma. A história como agente norteador da noção de justiça e verdade não poderia estar exposta a experimentos uma vez que o discurso histórico seria o bastião de um padrão rarefeito de realidade, num mundo povoado pela mixórdia e pela plurivocidade dogmática.

Destarte, Aníbal Fernandes em seu prefácio a O parasita ou o papa-jantares enfatiza que a irreverência luciânica no ataque a princípios filosófico-retóricos consagrados em sua época, deve ser reconhecida não somente através de seu elemento cético, lugar comum na leitura do sírio, mas também através de seu elemento construtivo no qual valores são ironicamente ridicularizados e expostos de forma caricatural para tacitamente serem ofuscados por outros princípios de justiça e verdade:

Em Luciano, como noutros, a chamada “irreverência” (protetora máscara contra a dureza dos homens) não raro oculta e desfigura todas as nobrezas de um idealismo, essas que sonham as mais belas formas da sociedade. Por isso alguns há que em nome do realismo descem o rosto e lançam um olhar ao rés do mundo, apontando daí o sentido político da vida, e outros se expõem num vôo planado e provocador cuja eficácia repousa na sua máscara transfiguradora, muita vez um riso que não reflete menos indignação e não exige linhas menos rigorosas ao comportamento humano.[24]

Aníbal argumenta que a educação moral luciânica, neste sentido, ocorre pela via tragicômica, tal qual podemos perceber em O sonho ou o Galo, e ainda, em Lukius ou o burro, obras nas quais o homem passa por um processo de metarmorfose cuja função é expor o próprio homem a sua estupidez, “oferecendo-lhe uma oportunidade rara de avaliar o mundo sob uma perspectiva privilegiada que é simultaneamente humana (pela razão) e animal (pelo suporte orgânico)”, conduzindo-nos a uma descrença ética quanto a valores consolidados acerca da superioridade da espécie humana[25]. Tal procedimento tragicômico de educação moral é, não raro, desqualificado por parte da crítica que o acusa de frivolidade e superficialidade irônica no tratamento de temas nobres[27]. Esta técnica é, outrossim, invertida e aplicada em sua crítica sutil do Elogio, utilizando um tom solene para abordar seriamente temas não-nobres, como uma mosca (O Elogio da Mosca), desqualificando tal modelo retórico — o Elogio — através de seu uso eficaz e pertinente na abordagem de um objeto chulo. O mesmo procedimento crítico é utilizado para expor o caráter sofismático e relativista da lógica como instrumento de aferição e validação de valores morais. N’O Parasita, Luciano convece-nos silogisticamente que o parasitismo é o mais nobre dos valores éticos, conduzindo o leitor, a um só tempo, ao riso e a constatação do absurdo de determinadas pretensões éticas universais.

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[1] As apropriações intertextuais de Machado de Assis em Memórias Póstumas de Brás Cubas em relação ao Diálogo dos Mortos, entre outros textos de Luciano de Samósata, são exaustivamente mapeadas no já clássico O Calundu e a Panacéia: Machado de Assis, a sátira menipéia e a tradição luciânica. O primeiro autor a perceber a influência de Luciano sobre Machado de Assis foi José Guilherme Merquior (Cf. Merquior, 1997).

[2] Apesar disso, a sátira menipéia se vale muito da paródia e do pastiche. O recurso à paródia é visto por alguns autores, como Enylton Sá Rego, como uma negação da mimeses aristotélica. Segundo Jacyntho Lins Brandão, Luciano de Samósata seria o responsável por uma forma distinta de tratamento da mímesis em relação à tradição aristotélica: enquanto para o estagirita a contraposição entre poesia e história ocorria em termos do factual ante o verossímil, em Luciano a oposição se daria entre o discurso verdadeiro e o discurso do psêudos (alétheia-pseûdos), isto é, o discurso entendido mais como alteridade em relação ao verdadeiro, criando o terreno próprio da ficção, em contraposição a uma lógica aristotélica binária do discurso inverossímil enquanto negação da verdade.

[3] Hendrickson Apud Enylton Rego,1989.

[4] Bompaire apud André Lopes, 2002.

[5] João Kennedy Eugênio. 2005.

[6] O diagnóstico de Luciano é de que, o desastre da Armênia, a guerra contra os bárbaros e as contínuas vitórias romanas criaram uma onda encomiástica na historiografia: “ não há quem não escreva sobre História […] e todos se converteram em Heródotos, Tucídides e Xenofontes”. Durante a guerra contra os partos, movida por Marco Aurélio e Lúcio Vero, muitos letrados se apresentavam como historiadores, buscando a benevolência do Império. Essa prática, repetida por muitos, estava reduzindo a narrativa histórica à mera louvaminha.

[7] Assim Luciano define a História Justa: “Assim, é preciso que também a história seja escrita com a verdade, visando à esperança futura, mais que com bajulação, visando ao prazer dos presentes elogios. Aí você tem o cânon e o prumo de uma história justa. Se alguns aprumarem com ele, estará bem e o que está escrito é oportuno”.

[8] Lopes. idem, 2002, p. 49.

[9] Canfora apud Lopes, 2002, p. 49.

[10] “Reality is a cliché from which we escape by metaphor”

[11] A recusa da linguagem metafórica em Luciano, no tratamento da narrativa histórica, evidencia-se numa prescrição: o historiador deve fazer com que “a expressão permaneça em terra, pois o maior perigo para a expressão é o de tornar-se louca e ser arrastada ao delírio poético”. Como se deve escrever a História.

[12] Tais motivos devem ser compreendidos como fatores causais dos fatos presentes imputando nexos entre os acontecimentos. Assim, segundo Le Goff, poder-se-ia distinguir a atividade dos cronistas, também interessados em narrar acontecimentos, da atividade do historiador. Deve-se ressaltar que, embora considerassem tais nexos causais, estes historiadores admitiam o acaso como uma variante do desencadeamento histórico. Destarte, a narrativa histórica poderia ser interpretada como um projeto de abolição do acaso. Tucidides cria que necessidade e acaso seriam os motores da história. Políbio, a quem Maquiavel recorreu, punha no primeiro plano da causalidade histórica a noção de Fortuna.

[13] Ivan Domingues, O Fio e a Trama, p.75-76.

[14] É precisamente neste aspecto, entre outros como a ataraxia, que podemos interpretar o ceticismo luciânico: os assuntos da vida ordinária não podem ser regulados pela agenda dos filósofos. Este caractere pirrônico é denominado por Renato Lessa como insulamento da vida comum.Cf. Renato Lessa, Veneno Pirrônico p. 124. Por outro lado, sua postura ataráxica, ou seja, a suspensão de juízo quanto a verdades filosóficas é resumida em um excerto autobiográfico enfatizado por Lopes: “Aos quarenta anos Luciano abandonou a retórica e recorreu ‘à academia ou ao liceu para andar por aí com essa pessoa, o Diálogo, conversando calmamente sem sentir necessidade de elogio ou aplauso’”. Ibidem. p.17.

[15]Michel Foucault, A Hermenêutica do Sujeito, p.113-115.

[16] André Leme Lopes, Como se deve escrever a história verdadeira:Verdade, história e ficção segundo Luciano de Samósata.

[17] Cf. Como se deve escrever a História. Mimeo.

[18] Como se deve escrever a História. Mimeo.

[19] Como se deve escrever a História. Mimeo

[20] Como se deve escrever a História. Mimeo

[21] ibidem. p.67.

[22] Embora Lopes opere com a distinção aristotélica de retórica, utilizamos aqui a distinção proposta por Platão entre Erística, Antilógica e Dialética.

[23] Como se deve escrever a História. Mimeo

[24] Aníbal Fernandes, “Este Luciano, ou a literatura executada como um assassinato” in O parasita ou o papa-jantares.

[25] Esta proposição metamórfica implica não apenas numa pulverização das perspectivas morais pela variedade de ângulos e idiossincrasias como pode denotar uma recusa do antropocentrismo.

[26] Ibidem. Segundo Fernandes, para citarmos um único exemplo, Eudoro de Sousa, no livro Lukius ou o burro Luciano explorou somente o lado ridículo de um sortilégio malogrado e das subseqüentes aventuras de um mago-aprendiz. Mas o autor do Lúcio latino [Apuleio em seu O asno de ouro] quis trazer a superfície do acontecer um dos abismais enigmas do ser ”.