O mais profundo leitor de Adam Smith, por Spencer Leonard

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Spencer Leonard é professor de Teoria da História no Departamento de História da James Madison University.

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Resumo

Este artigo tem como objetivo mostrar que Adam Smith é um dos principais interlocutores do Marx. De tal forma que a redução interpretativa que afirma que Marx apenas argumenta contra o liberal beira ao delírio. Hegel precursor e Smith opositor não diz bem a realidade. Smith pode até mesmo ser percebido como um inimigo do tipo de desenvolvimento que a Europa escolheu. Isso não quer dizer que Smith possa ser tomado como um pensador de esquerda. Ele possui um projeto para a liberdade e este não passa pela extinção do capitalismo. A imagem do Smith como vinculado a uma forma de teologia econômica utópica não é a que Marx possui. A imagem de Smith que mais se aproxima com a que Marx possui é a de um teórico dialético da sociedade burguesa, principalmente pela invenção do conceito de valor trabalho, um dos principais modos de análise da sociedade de exploração.

Palavras-Chave

Marx; Adam Smith; Dialética; Valor Trabalho

Abstract

This article has the objective to show Adam Smith as one of the greatest interlocutors of Marx. In the way that the interpretative reduction that says Marx only speaks against the liberal is delusionary. Hegel father and Smith enemy doesn’t show the reality. Smith even can be seen as an enemy of development model chosen by Europa. This doesn’t mean that Smith could be taken as a left thinker. He does have a project for freedom and the project doesn’t pass through the capitalism extinction. The image of Smith as attached to a utopic theology form of economy is not the one that Marx holds. The image of Smith nearest to Marx is of one dialectical theorist of the bourgeois society, most of all by the invention of the concept of value labor, one of most important ways to analyse exploitation society.

Key Words

Marx; Adam Smith; Dialetic; Value Labor

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Apesar de Marx ser certamente um pensador original, ele também é um distinto pensador da imanência. Não um inventor de utopias oponíveis a outras em respeito ao que deve ser, mas o crítico de uma dialética obscura em si. Ele tenta pegar o capital por dentro, trabalhando em suas maiores expressões.

Apesar de o fato ser de conhecimento raro, não há exagero em dizer que Adam Smith figura entre os principais interlocutores de Marx. Uma pesquisa com seu nome no Marxists Internet Archive gera mais hits do que qualquer outro, a não ser em uma busca por Hegel (onde muitos dos links são para obras de Engels). Ademais, diferente de Engels, Marx deixa de se envolver explicitamente com “aquele pensador poderoso” e suas epigones depois de 1846, quando escreve sobre Smith dos Manuscritos de Paris até o Capital. Marx também se refere explicitamente a seu outro interlocutor principal dentre os economistas políticos, David Ricardo, embora menos frequentemente do que faz com Smith.

Enquanto o cessar das referências não significa explicitamente qualquer ruptura no envolvimento de Marx com Hegel, o simples fato filológico de que Smith é um interlocutor mais presente, explicitamente evocado, é raro, quando não desconsiderado. Isto se dá por causa da oposição radical entre os compromissos assumidos pelos dois. Então, apesar de muitas desaprovações e tentativas de explicação, poucos marxistas negam a centralidade de Hegel para Marx. Com efeito, alguns – mais notavelmente Georg Lukács, Herbert Marcuse e Theodor Adorno – têm produzido contribuições críticas à compreensão que o século XX fez de Hegel.

No entanto, os marxistas não deixaram nenhum legado comparável no que diz respeito à interpretação de Adam Smith. Poucos foram longe ao afirmar que Marx teve Smith como um interlocutor, preferindo assumir que Marx argumenta contra o ‘liberal’. Isso ocorre porque o liberalismo e, na verdade, a própria concepção stalinoide da revolução burguesa, é tipicamente pensado por marxistas como um projeto da classe burguesa ao qual Marx instintivamente se opôs. Apesar de Smith ser tipicamente considerado à esquerda, como o economista nacionalista alemão, Friedrich List, o pôs – como o santo padroeiro do imperialismo do livre comércio britânico do século XIX

Muitos comentadores de esquerda zombam quando da entonação da palavra ‘burguês’, como na expressão ‘economia política burguesa’. Nessa zombaria feita até mesmo por marxistas ‘anti-stalinistas’ é possível detectar aquele stalinismo constitutivo que ao mesmo tempo ocasiona e indica a morte da esquerda em nosso tempo. Na sua incompreensão da crítica que Marx faz da economia política, para a qual o compromisso com Smith é central, os marxistas de hoje revelam mais do que acreditam fazer.

Separando a direita da esquerda

Todos estamos familiarizados com o Smith conservador e, sem dúvidas, os conservadores veem como um triunfo o fato de termos a sua imagem na nota de 20 libras. Mas na esquerda, onde está na moda a ‘crítica do iluminismo’, não há um tal objeto que sirva para uma cooptação. Com efeito, mesmo entre os marxistas que defendem um iluminismo de esquerda, poucos classificariam Smith dentro de sua estirpe radical.

Tomemos, por exemplo, o proeminente estudioso de Marx, David Harvey. Harvey descreve Smith como um ‘liberal utópico’ comprometido com uma teologia de “mercados e mão invisível em perfeito funcionamento”.[i] Porta-voz da crescente classe capitalista, o Smith de Harvey promoveu o capitalismo como um “utopismo do processo”. Com base nessa utopia liberal, nos é dito, Smith “derivou um programa político (…), deu espaço para que os mercados livres florescessem, de maneira que tudo ficasse bem com o mundo.” Tendo assim caricaturado o pensamento de Smith, Harvey, em seguida, o traz para o presente, dizendo: “isso, é claro, é a ideologia que se tornou tão dominante em alguns dos países de capitalismo avançado (…) nesses últimos 20 anos”. Finalmente, como que para colocar a questão de lado, Harvey ‘lembra’ seus leitores que “Marx construiu um ataque devastador contra o utopismo do processo em O Capital.” [ii] Aqui Harvey exprime algo parecido com o padrão de exibição de Smith: enquanto podemos nos confundir sobre a relação de Marx com a – talvez até a sua apropriação dialética da – dialética hegeliana, a crítica da economia política de Smith é um ataque, uma refutação, ou no mínimo uma crítica. Hegel é um precursor, Smith é um oponente.

Embora para a maioria da esquerda existente Smith seja considerado como pouco mais do que um porta-voz dos interesses da classe burguesa no seu e no nosso tempo, recentemente vimos emergir um pretenso Smith de esquerda – a partir dos escritos do historiador sociólogo italiano Giovanni Arrighi em seu Adam Smith em Pequim. Mas essa dotação é tão sintomática quanto a rejeição de Harvey. Porque, apesar do aspecto improvável, Arrighi sustenta que Smith nos traz um “viés anti-urbano”, dando preferência ao trabalho agrícola frente ao trabalho assalariado urbano. Mantendo um “absoluto ceticismo sobre a eficiência e a utilidade das grandes empresas”, a “esmagadora preocupação” de Smith, afirma Arrighi, é com “o estabelecimento e a preservação da capacidade do governo central de buscar o interesse nacional”.[iii] Aqui vemos um Smith útil ao propósito da anti-burguesia de Arrighi. Em vez de um dos principais defensores da extensão da liberdade do século XVIII, Smith é forçado às fileiras dos críticos descontentes da trajetória do desenvolvimento ‘natural’ da Europa.

Um forte defensor do “progresso natural da opulência (…), Smith previu a China ao invés da Europa,” Arrighi afirma, “como um modelo do tipo de desenvolvimento econômico baseado no mercado que era mais aconselhável para os governos.” Assim, reduzido seu status a um sinófilo do século XVIII, o Smith de Arrighi defende o “absolutismo benevolente, a meritocracia, e uma economia nacional baseada na agricultura”, tal como pode ser encontrado, nos é dito, até hoje na China. Uma espécie de precursor de Karl Polanyi, o estadista do bem estar social de meados do século XX, este Adam Smith sustenta o “desenvolvimento econômico como um processo embebido [embedded] no, e no limite por, um determinado ambiente físico, institucional, e social.[iv]

Um tal desenvolvimento social, institucionalmente embebido, descrito pelo Smith de Arrighi, vem tomando lugar na China desde antes da Investigação sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações. O caminho chinês, segundo Arrighi, exemplifica um padrão “natural” do desenvolvimento sócio-histórico, em oposição à forma “antinatural” de desenvolvimento baseado na indústria e no comércio externo, que Arrighi classifica como “capitalista”. O capitalismo, sobre essa ótica, é o que o ocidente primeiro buscou para superar o feudalismo e o que busca até hoje. O resultado é a sujeição da sociedade e da tradição à implacável transformação (não só na Europa, mas também naqueles lugares que são forçados a abastecer a Europa com matérias-primas). O desenvolvimento chinês, pelo contrário, tomou o curso mais “natural”, que acompanha as normas e valores tradicionais.[v]

Assim, o Smith de Arrighi é, apesar do aspecto inusitado, anticapitalista. Ao mesmo tempo, ele é um sintoma da catástrofe cultural do ocidente. Porque, embora possamos esperar sua aprovação, a forma de desenvolvimento Chinês que Arrighi celebra não requer os serviços de filósofos como Smith. Não há necessidade de autorreflexão ou de exercício de razão pública para chegar aos seus motivos. “Nenhum pensador do século XVIII teorizou a contribuição do interesse individual de uma empresa para a economia nacional”, nota Arrighi, porque tal teorização foi desnecessária.[vi] A China inconscientemente seguiu o curso do Smith anticapitalista, baseado no mercado para uma modernidade não capitalista. O caminho chinês que Arrighi tanto admira deriva do conhecimento da cultura chinesa no qual a revolução chinesa presumivelmente se baseou. Arrighi coloca Adam Smith em Pequim apenas como um observador que aprova. Em vez da agitação inquieta das sociedades dominadas pelo capital, Giovanni Arrighi prefere o desenvolvimento inconsciente, onde a busca pelo interesse nacional se dá por uma burocracia estatal embebida na tradição. Isto em um trabalho publicado, não por qualquer editora acadêmica, mas pela Verso, a líder da esquerda do nosso tempo.

Uma vez que o marxista, Harvey, é hostil a Smith e Arrighi o invoca somente para despojá-lo de seu projeto filosófico, devemos nos questionar: quem na esquerda de hoje fala de Smith como importante filósofo da liberdade no século XVIII, ou até, como fez uma geração mais velha de marxistas, como um significante exponente pré-marxiano da teoria do valor do trabalho? Levantar esta questão é o mesmo que respondê-la. Enquanto a esquerda geralmente desdenha do conceito de “liberdade”, pondo-o como reacionário, a direita, que defende o posicionamento de Smith como o fundador da economia do livre mercado, dispensa a sua teoria do valor do trabalho a tendo como algo pré-científico.

O Smith de Marx, em um forte contraste, aparece como um teórico dialético da sociedade burguesa. Mais particularmente, Marx presta muita atenção à virada radical de Smith com relação ao passado da economia política na sua luta contra os fisiocratas e o mercantilismo. Ele sequer reduz Smith a um simples lugar na história. Quem na esquerda contemporânea pode dizer qual é a significância de Smith para Marx? Quantos refletem sobre o porquê, ao invés de tentar prever crises do sistema ou fazer discursos para trabalhadores, de Marx ter gasto três anos no início da década de 1860 trabalhando em sua história da política econômica – na qual a Smith, como a Ricardo, é reservado um lugar de prestígio – antes de dedicar-se aos rascunhos finais do volume 1 de Capital?

Embora Adam Smith seja principalmente associado com a demanda pela liberdade de propriedade, e a tradução disso para o projeto de libertação de mercados nacionais e de livre comércio internacional (tudo a ser agrupado sob a rubrica de ‘mão invisível’), nada disso é de fato peculiar de Smith. Pelo contrário, tendo a íntegra para o projeto do terceiro estado revolucionário amplamente concebida, estas eram preocupações do mainstream da economia política pelo menos desde o tempo de John Locke e Sir Dudley North no século XVII. Da mesma forma, o caráter e o potencial produtivo da divisão do trabalho, tão intimamente associado com o nome de Smith, constitui um assunto de intensa reflexão e análise quase três quartos de século antes de A Riqueza das Nações nos escritos de Sir William Petty, o homem ao qual Marx credita a fundação da economia política. A negligência do que é ficção em Smith anda de mãos dadas com a negligência da relação imanente de Marx com o liberalismo e com a própria revolução burguesa.

Revolução burguesa

Embora atribua falsamente essa visão ao Platypus, Mike Macnair acerta ao negar que a revolução burguesa tenha começado com a revolução francesa. Pelo contrário, como Marx sabia, ela começou muito mais cedo, embora não tão cedo como imagina Macnair, no tempo das cidades-estado italianas. E, novamente, embora o camarada Macnair esteja correto ao salientar que “O Capital de Marx não pode ser lido sem referência a reivindicações mais amplas (…) sobre a história antes de capitalismo plenamente desenvolvido”, o fato de que ele se opõe a uma leitura hegeliana mostra não só que ele não compreende Hegel, mas que também não compreende a importância do tratamento que Marx dá à “história anterior ao desenvolvimento completo do capital”.

A confusão de Macnair demonstra a medida na qual ele faz parte do “novo esquerdismo”, de que acusou o Platypus ao rejeitar o convite a um painel sobre a revolução burguesa no último abril. Porque Macnair acredita que colocar a questão da “necessidade de um movimento emancipatório começa pela conquista do capitalismo (…) nos termos da conquista do liberalismo” é algo, como ele coloca, “patológico” e acaba com a defesa do que ele chama de liberalismo hoje. Assim, ele afirma saber aonde uma tal compreensão nos leva: ou seja, para “o caminho seguido por Schachtmanistas, por Adorno e Horkheimer, e mais recentemente pelo Partido Comunista Revolucionário Britânico/Spiked e Eustonistas”.[vii] Pondo de lado a sua compreensão sobre Adorno e Horkheimer, está claro por que Macnair desejaria evitar a questão da construção do projeto de liberdade em favor do edifício da conquista da produtividade capitalista de escassez, como sua fé no futuro comunista baseia-se no que ele chama de “elaboradas razões teóricas para supor uma vontade proletária de coletivismo”, como se o coletivismo fosse uma negação do que existe.[viii]

Mas há razões mais fundamentais para a hostilidade de Macnair contra o marxismo hegeliano e, portanto, para a sua incompreensão da crítica de Marx à economia política. Elas derivam da sua concepção ‘pré-crítica’ de filosofia, um campo que ele toma como dividido em diversas questões de subdomínios – epistemologia, ontologia, lógica, etc. -, sobre os quais presume-se que todos os seres humanos em todos os tempos e lugares especulam diversos graus de clareza.

No entanto, como um pensador burguês, Marx rejeita essa visão da filosofia. Ele representa uma tentativa de preencher o que tomou como sendo um projeto filosófico claramente burguês. Este projeto ele concebeu – após Rousseau, Smith, Kant, Hegel e outros – em termos claramente pós-tradicionais. Com efeito, para Marx, a questão da extensão na qual a filosofia moderna se especifica em termos de sua modernidade foi crucial para seu próprio avanço, e foi nesse terreno que ele criticou seus precursores mais próximos. Assim, em última análise, para Marx a questão da imanência do pensador sobre o objeto do pensamento interpôs um distinto, de fato crucial, problema teórico. Ele incide diretamente sobre como a adequação do nosso entendimento ou o que estamos fazendo politicamente ‘aqui’ se relaciona (ou falha em se relacionar) com o que alcançamos ‘lá’. Para Marx, a questão da sociedade capitalista como liberdade em autocontradição transformou-se em como nós podemos ser bem sucedidos na mudança das circunstâncias nas quais nos encontramos, assim como em tornar as mesmas circunstancias algo palatável, mais suscetíveis a próximas transformações. Este problema teórico-prático não pode ser equiparado ao aprendizado pragmático por tentativa e erro, avançando progressivamente os conceitos de um autor até a realidade de maneira que se possa esperar que eles evoluam assintoticamente a graus mais precisos.

A relação de Marx com Smith depende precisamente de sua especificação posterior da liberdade moderna, porque, para Marx, Smith efetuou um avanço tal que a sua própria abordagem se tornou inadequada. Isto é, a dialética de Smith vai de encontro, e até mesmo provoca, a de Marx, embora por meio de Ricardo e dos teóricos ricardianos do movimento trabalhista. Marx, então, não se compromete com nenhuma crítica anacrônica a Smith, a não ser a da repetição inconsciente de seu projeto emancipatório.

Georg Lukáks comenta a abordagem de Marx sobre a tradição do iluminismo e a economia política mais especificamente quando escreve, em História e consciência de classe:

A sobrevivência da burguesia baseia-se na suposição de que ela nunca dispõe de uma visão clara das condições sociais de sua própria existência. Um olhar sobre a história do século XIX revela um profundo e contínuo paralelo entre o crescimento gradual deste autoconhecimento e o seu declínio. No final do século XVIII, a burguesia era ideologicamente forte e intacta. A mesma coisa aconteceu ainda no início do século XIX, quando sua ideologia, a ideia de liberdade e democracia, ainda não havia sido foi posta em questão (…) Enquanto a burguesia ainda podia ter esperança – acima de tudo, uma esperança na boa fé -, a democrática liberdade burguesa e a supremacia da economia ainda poderiam um dia nos guiar à salvação de toda a humanidade. É isso, também, que atribui aos grandes pronunciamentos científicos da classe burguesa (por exemplo, a economia de Adam Smith e Ricardo) sua franqueza e a força para lutar pela verdade e revelar o que eles são sem camuflagem.[ix]

Como Marx escreveu de maneira a criticar aquele suposto economista político da classe trabalhadora, Proudhon, “categorias econômicas são apenas a expressão teórica, a abstração das relações sociais de produção (…) assim, essas ideias, essas categorias, são tão pouco eternas quanto as relações que elas expressam.[x]

A crítica de Marx a Smith depende de uma reespecificação sob novas circunstâncias da questão sobre a teoria e a prática. Não é só a simples questão de corrigir erros teóricos de Smith. Por esta razão, a divisão que se estende entre a época da sociedade burguesa e o ‘capital’, entre a ‘idade do iluminismo’ e o até agora não realizado ‘segundo iluminismo’ de Marx e Engels, pode ser iluminada através da relação entre Marx e Adam Smith. Contra Macnair, eu diria que, ao invés de se esquivar ou de criticar o liberalismo, em The poverty of philosophy, em Capital, e em outras obras publicadas em vida por Marx, ele critica o liberalismo precisamente para alcançar suas aspirações sob as novas condições que o próprio liberalismo produziu. O capitalismo industrial foi, com muito respeito à sua própria lógica, obrigado a se superar e problematizar o socialismo, mas, pela operação da mesma lógica na ausência de consciência histórica, tendia à regressão e desintegração, até ao ponto de cair abaixo do limiar da liberdade burguesa.

Ao não cumprir o projeto liberal, os marxistas não põem outro projeto proletário ou ‘coletivista’ em seu lugar. Em vez disso, eles conspiram pelo esvaziamento ou pela desintegração do liberalismo, sua transformação em seu oposto: imperialismo bonapartista, democracia de massa, liquidação do indivíduo e do autoritarismo.

Como Marx escreve em 1871:

O Império, tendo o coup d’etat como seu certificado de nascimento, o sufrágio universal [masculino] como sua sanção e a espada como seu cetro, professo a repousar sobre o campesinato, a grande massa de produtores não diretamente envolvidos na luta do capital e trabalho. Ele professou a salvação da classe trabalhadora quebrando o parlamentarismo e, com isso, a subserviência indisfarçável do governo com as classes de proprietários. Ele professou salvar as classes proprietárias mantendo sua supremacia econômica sobre a classe trabalhadora; e, finalmente, ele professou unir todas as classes ao fazer reviver para todos a quimera da glória nacional. Na realidade, essa era a única forma de governo possível no momento em que a burguesia já havia perdido, e a classe trabalhadora ainda não tinha adquirido a faculdade de decisão (…) Sob sua influência, a sociedade burguesa, [é] liberada das preocupações políticas (…) o poder de estado, aparentemente voando acima da sociedade, foi ao mesmo tempo ele mesmo o escândalo maior do que a sociedade e o viveiro de todas as suas corrupções (…) O imperialismo [pos-1848] é, ao mesmo tempo, a mais aviltada e a última forma do poder de estado (…) quando adulto, o estado da sociedade burguesa finalmente tinha se transformado em um meio para a escravização do trabalho pelo capital.[xi]

Regressão Intelectual

A economia política burguesa não é simplesmente a economia política escrita pela ou para a burguesia. Como Marx nunca se cansou de demonstrar, os pensadores vulgares de sua época não apenas falharam em ir além de seus antecessores: eles retrocederam o nível que haviam alcançado. Longe de disporem do benefício da visão retrospectiva e certamente não sendo gênios da classe dominante, Marx considerou os então chamados de economistas políticos liberais na época do imperialismo muito abaixo da crítica. Ele escreveu sobre o mais importante dentre eles:

John Stuart Mill, com sua usual lógica eclética, entende como manter ao mesmo tempo a visão de seu pai, James Mill, e a oposta. Quando (…) ele se anuncia como o Adam Smith de seu tempo, não sabemos com o que devemos nos espantar: se com a ingenuidade do homem ou com a do público que o aceitou de bom grado (…), ele tanto se assemelha a Adam Smith quanto o General Williams de Kars o faz com o Duque de Wellington.[xii]

E outra vez sobre John Stuart Mill e a regressão característica da economia política tardia:

Ricardo nunca se preocupa com a origem da mais-valia. Ele a trata como algo inerente ao modo capitalista de produção, modo que, a seus olhos, é a forma natural de produção social. Sempre que ele discute a produtividade do trabalho, busca nela não a causa da mais-valia, mas a que determina a magnitude desse valor. Por outro lado, sua escola proclamou abertamente que a produtividade do trabalho era a causa da origem do lucro (…) No entanto, a escola de Ricardo simplesmente se esquivou do problema; eles não o resolveram. Na verdade, estes economistas burgueses instintivamente viram, e com razão, que é muito perigoso agitar muito profundamente a questão candente da origem da mais-valia. Mas o que pensar de John Stuart Mill, que, meio século depois de Ricardo, solenemente afirma superioridade sobre os mercantilistas, repetindo desajeitadamente as evasões lamentáveis dos primeiros difamadores de Ricardo?

A burguesia de hoje já não produz filósofos. Frederic Bastiat não é o Adam Smith dos nossos dias, não mais do que foi John Stuart Mill. Pela mesma razão, nenhum tipo de economia política jamais fora escrita na Alemanha.

Como Marx escreveu em seu prefácio à edição alemã de Capital:

[Antes de 1848] a economia política, na Alemanha, [era] uma ciência estrangeira (…) [havia] circunstâncias históricas que impediam, na Alemanha, o desenvolvimento do modo de produção capitalista e, consequentemente, o desenvolvimento, no país, de uma sociedade burguesa moderna. Assim, o solo donde brota a economia política estava em repouso. Esta ‘ciência’ teve que ser importada da Inglaterra e da França como um artigo ready-made; seus professores alemães permaneceram colegiais. A expressão teórica de uma realidade externa foi transformada, em suas mãos, em uma coleção de dogmas, interpretado por eles em termos mesquinhos de negociação do mundo ao seu redor sendo, portanto, mal interpretada (…).

Desde 1848, a produção capitalista se desenvolveu rapidamente na Alemanha, e neste momento encontra-se em pleno florescimento, cheia de especulações e de burla. Mas o destino é ainda pouco favorável para nossos economistas profissionais. No momento em que eles eram capazes de lidar com a economia política de maneira simples, as condições econômicas não existiam. E tão logo estas condições vieram a existir, eles o fizeram sob circunstâncias que os privaram de investigação mais real e imparcial dentro dos limites do horizonte burguês.[xiii]

A história moderna da Alemanha começou e está indissoluvelmente ligada à idade do imperialismo, à idade da vulgaridade do liberalismo.

Macnair, em resposta a Chris Cutrone nas páginas do Weekly Worker, reclama quando Cutrone afirma que “o que os radicais da Segunda Internacional compreendem por ‘imperialismo’ não tinha a ver com (…) as relações centro-periferia”, retorquindo que “esta afirmação é um lugar-comum de algum lugar na historiografia (…) O problema é que isto não sobrevive ao confronto com as fontes primárias.”[xiv] Mas o texto citado acima, no qual Marx expressa sua própria concepção do imperialismo é extraído de um dos textos mais conhecidos de Marx, a Guerra Civil na França. Este foi um texto estudado por todo e qualquer um que se autodenominasse marxista na segunda internacional, para que quando pensadores mais tarde desenvolvessem uma teoria do imperialismo no final do século XIX e início do século XX, eles não o fizessem por ignorância. Eles a compreenderam como uma categoria referente ao tempo histórico, especificamente à época do pós-1848, não menos do que o espaço global das relações centro-periferia.

Desde então, com a publicação maciça dos artigos de Marx no New York Herald Tribune, com sua preocupação com o esvaziamento do liberalismo na Grã-Bretanha e seu império, a continuidade sobre o tema do imperialismo entre o 18 Brumário (em que Marx apresenta a categoria de bonapartismo) e a Guerra Civil na França é ainda mais claramente instanciada. Certamente, como foi demonstrado, a degradação intelectual evidente na economia política do pós-1848 é uma preocupação central de Marx no período de escrita do Capital. Ambos, Capital e a Guerra Civil na França elaboram o reconhecimento de Marx de que, na ausência ou na rendição do socialismo proletário, o liberalismo não continua simplesmente. Em vez disso, o próprio capitalismo se desintegra, e o que tinha sido o liberalismo torna-se algo vulgar e autoritário. Estas não são questões pelas quais o significado de dicionário das palavras ‘imperialismo’, ‘autoritarismo’ ou ‘vulgar’ nos ajudará a navegar.

Então, a questão para a qual tento apontar a partir dessa discussão entre Marx e Smith não é uma questão de ‘filosofia’, como o camarada Macnair coloca em seu artigo, ‘Against philosopher kings’, no qual a desunião da filosofia é oposta à unidade a ser atingida através de um consenso programático. Porque, se a questão é mudar o mundo, a tarefa filosófica permanece sendo uma de tomar como histórico o mundo no qual nos encontramos. E este é um mundo que, diante da ausência de uma tal consciência histórica, como Hillel Ticktin argumentou recentemente, pode entrar em uma crise aparentemente interminável. Como Ticktin disse sobre a condição na qual a autocontradição da liberdade, da história em si, permanece não reconhecida e indomada, “a solução lógica para a crise – isto é, situação na qual a classe trabalhadora não toma o poder – é a desintegração. Vemos isso de maneira muito óbvia hoje: seja nas revoltas [de Londres], no que está acontecendo com a UE, ou com os Estados Nacionais, ou com as economias ao redor do mundo, a desintegração é a lógica do estado atual do capitalismo”.[xv]

Além disso, como Jack Conrad salientou ao discutir o artigo de Tickctin, todas as instituições – partidos políticos, sindicatos, etc. – através das quais a classe trabalhadora afirmou-se no passado ou afirma-se hoje estão podres até o caroço. A questão não é simplesmente sobre a relativa fraqueza do movimento trabalhista em comparação aos tempos passados, assim como para chegar a um acordo sobre esta situação é preciso mais do que simplesmente aprender com os erros do passado.

Não é por isso que devemos interrogar a história da esquerda. Homens e mulheres muito mais sábios do que somos ou podemos ser, dada a nossa condição histórica, têm compreendido melhor do que nós poderíamos esperar aprender com documentos do passado em seus detalhes. Assim, tão admirável e necessário como o projeto de estudo histórico (eu mesmo sou um historiador por profissão), é a questão de compreender não simplesmente como evitar a repetição de erros do passado, mas a regressão/repetição no núcleo de nossa condição completamente despida de precedentes. Nem mesmo a recuperação das ideias de Marx – do Marx que reconheceu o potencial de regressivo, desintegrador, do capital; que reconheceu, ou seja, que a sociedade liberal estava apodrecendo por dentro e só poderia ser preenchida com e através do socialismo – são de assistência imediata. Isso ocorre porque, à medida que nos falta toda a continuidade com o projeto de emancipação humana começado primeiro com a revolução burguesa, não está claro que nós vivemos naquilo que Marx chamou de “capital”. Nem o liberalismo nem a sua herança por Marx e pelos marxistas seriam relevantes, apesar de o Platypus dedicar-se à investigação da possibilidade de que eles possam novamente (e finalmente) assim serem.

Teoria do valor-trabalho

Para retomar, portanto: para Marx, a contribuição fundamental de Adam Smith para o pensamento moderno reside no seu reconhecimento de que “o trabalho (…) é o padrão final e real a partir do qual o valor de todas as mercadorias pode em todos os momentos e lugares ser estimado e comparado”.[xvi] Aqui começamos a perceber o que Marx entendia como crucial sobre Smith. Isso geralmente passa despercebido, porque poucos marxistas de hoje tentam pensar a partir da teoria do valor-trabalho. É aqui que Marx celebra a façanha de Smith em 1859, no primeiro rascunho de Capital, conhecido por Grundrisse:

O descarte de cada especificação limitadora da atividade de criação de riqueza – não só do trabalho industrial, comercial ou agrário, mas do trabalho em geral – foi um grande passo dado por Smith. Com a universalidade abstrata da atividade de produção de riqueza agora temos a universalidade do objeto definido como riqueza, não o produto como tal coisa ou, novamente, o trabalho como tal coisa, mas o trabalho como passado, o trabalho objetivado.[xvii]

Smith não só aprofundou significativamente o conceito de trabalho, mas alterou a própria categoria de ‘valor’. Ou seja, o valor em Smith não é meramente uma medida, mas uma forma de riqueza, com efeito, uma forma de liberdade humana. Historiador profundo de seu próprio tempo, Smith compreendeu algo essencial sobre as transformações sociais pelas quais passava. Ele aprofundou o projeto de superação do feudalismo para reconhecer nele nada menos do que a auto emancipação da escravidão dos trabalhadores europeus.

No estado [medieval] da Europa, os ocupantes da terra (…) foram todos ou quase todos escravos; mas a escravidão era de um tipo mais suave do que a conhecida entre os antigos gregos e romanos, ou mesmo em nossas colônias das Índias Ocidentais. Eles deviam pertencer mais diretamente à terra do que ao seu senhor. Poderiam, portanto, ser vendidos com ela, embora não separadamente. Eles poderiam se casar, desde que com o consentimento de seu senhor (…) Se ele mutilasse ou matasse qualquer um deles, estava sujeito a alguma sorte de castigo, embora pequeno. Não eram, todavia, capazes de aquisição de propriedade. Tudo o que adquiriam era adquirido para o seu senhor (…) Esta espécie de escravidão ainda subsiste na Rússia, Polônia, Hungria, Boêmia, Morávia e outras partes da Alemanha. Somente foi gradualmente abolida por completo no oeste e províncias do Sul da Europa.[xviii]

Assim, Adam Smith dá expressão a uma sociedade ao mesmo tempo dedicada à conclusão de sua própria emancipação através do trabalho assalariado e postada à beira da industrialização. Um desenvolvimento que acabará por aprofundar, desestabilizar, e ameaçar sua emancipação. Assim como a história está determinada a desenvolver forças de produção adequadas ao trabalho abstrato, Smith apreende a generalidade abstrata do trabalho como emancipação da casta-servidão. Ele então parte para a generalização do trabalho assalariado como a universalização da libertação do costume e tradição. Nada menos do que a sociabilidade livre trazida por indivíduos trabalhadores pode ser considerada como uma reversão do feudalismo. Marx não podia, mas concorda, embora exija que o projeto vá além.

A proclamação da emancipação da escravidão pelo trabalho feita por Smith foi, como Marx comentou em Anti-Dühring, “não [meramente] a expressão das condições e requisitos de [sua] época, mas a expressão da razão eterna; as leis da produção e troca, descobertas [pela economia política] não foram as leis de uma forma historicamente determinada dessas atividades, mas leis eternas da natureza; elas foram deduzidas da natureza do homem”.[xix] A auto emancipação da escravidão feudal na Europa ocidental foi uma declaração de oposição a todas as formas até então existentes da sociedade de classe. Foi, nesse sentido, “eterna”. No calor da luta da humanidade por sua própria emancipação da servidão feudal, a economia política (novamente de acordo com Anti-Dühring) desenvolveu “as leis do modo capitalista de produção e suas correspondentes formas de troca em seus aspectos positivos: ou seja, os aspectos em que eles favoreceram os objetivos gerais da sociedade”.[xx]

Smith viveu uma época de expectativa sobre generalização do trabalho assalariado e teoricamente agarrou esta perspectiva como necessária e desejável. Expressou assim, conceitualmente, que pela primeira vez fora alcançada a “verdade prática como uma abstração” na sociedade.

Como Marx reconheceu:

A indiferença em relação a qualquer tipo específico de trabalho pressupõe uma totalidade muito desenvolvida de tipos reais de trabalho, da qual nenhuma é mais predominante (…) a abstração do trabalho [de Smith] como tal não é meramente o produto mental de uma totalidade concreta de trabalhos. A indiferença em relação a trabalhos específicos corresponde a uma forma de sociedade em que os indivíduos podem facilmente mudar de um trabalho para outro, e onde o tipo específico é uma questão de oportunidade para eles e, portanto, de indiferença. Não só a categoria ‘trabalho’, mas o trabalho na realidade, tornaram-se aqui os meios de criação de riqueza em geral, e deixaram de ser organicamente vinculados a certos indivíduos em qualquer forma específica.[xxi]

O capitalismo é a primeira totalidade emergente ou modo de produção; em sentido filosófico, a primeira sociedade. Não porque ele quebra com a longa história da coletividade humana como uma amálgama de castas, ranques ou propriedades, mas porque na essência do capitalismo está a liberdade, embora uma liberdade que, na realização precisa de seu conceito, entra em contradição com o próprio. É isso que distingue o capitalismo, não só de todas as sociedades (de classe) até então existentes, mas de toda a pré-história humana.

Adam Smith foi além de sua visão sobre o significado filosófico do capitalismo como sociedade na qual cada pessoa é, de algum modo, um comerciante, ao desenhar uma distinção entre trabalho produtivo e improdutivo.

Como Marx observa no componente histórico do Capital no volume 4, “O trabalho produtivo [na Riqueza das Nações] é definido do ponto de vista da produção capitalista, e Adam Smith aqui encontrou o cerne da questão (…) [Ele] define trabalho produtivo como o trabalho no qual há troca direta de capital”.[xxii] Smith reconhece que o trabalho não é qualquer atividade produtiva, mas esse “trabalho produtivo” (re)constitui uma relação social. Trabalho aqui não tem nenhuma concepção moral ou religiosa de atividade útil ou meritória, oposto da ociosidade. Nem o valor que ele produz vem da circulação – como com as exportações dos monetaristas, que podem levar dinheiro para a sua nação manufatureira. Nem é o trabalho produtivo identificável com um determinado tipo de trabalho – por dizer, o trabalho agrário dos fisiocratas, suposto naturalmente fértil de valor. Pelo contrário, o trabalho produtivo tem lugar na – e através da – relação contínua entre trabalho-poder e seu produto, capital. Esse produto consome e existe independentemente da mercadoria do trabalhador, trabalho-poder, produzindo, assim, maior valor do que a mercadoria consumida, o valor do trabalho-poder. O trabalho é como esta sociedade se reproduz – porém, acrescentou Smith, nem todos que trabalham estão realizando o trabalho. Até o capital na concepção de Smith não é ainda o ‘capital’, tal como o trabalho em Smith, mesmo duro, não é alienado.

Não só o fato de a sociedade enraizar-se no trabalho proletário, mas a sua apreensão, representam, sem dúvida, para Marx, uma conquista revolucionária da época. Em consequência da revolução britânica do século XVII, o feudalismo foi largamente superado, o que implicou “a dissolução de todas as relações pessoais fixas (históricas) de dependência na produção”.[xxiii] Logo em seguida foi colocada a questão da liberdade, e Smith deliberadamente herdou a revolução do século XVII a fim de levá-la adiante. Desde então, para Smith, o que Marx reconheceu em sua carta de 1843 a Arnold Ruge foi entrando em foco: A sociedade pós-feudal tornara-se o objeto “filosófico” e por sua razão a filosofia havia mudado; havia se tornado “mundana”. Em 1844, no início do engajamento de toda a sua vida com Adam Smith e a economia política em geral, Marx sabia que o velho escocês havia feito uma descoberta fundamental:

A comunidade dos homens, ou a manifestação da natureza dos homens, sua complementação mútua cujo resultado é a espécie-vida, uma vida verdadeiramente humana, é concebida pela economia política sob a forma da troca e comércio. A sociedade… É uma série de trocas mútuas. Ela é precisamente este processo de integração mútua. A sociedade, diz Adam Smith, é uma sociedade comercial.[xxiv]

Se na e pela revolução proletarizante da humanidade a humanidade não se emancipou, mas se sujeitou à dominação do capital, Marx e Engels foram rápidos em escrever no manifesto comunista, “O Capital não é pessoal, [mas sim] um poder social”. A burguesia não é o obstáculo fundamental para a emancipação dos trabalhadores.

Para os intérpretes para os quais os textos de Marx representam alguma forma de análise sociológica ou econômica, suas repetidas digressões, mesmo que contínuas, na economia política, devem parecer enigmáticas – desnecessárias (e aparentemente intermináveis) interrupções da exposição. Isto é, se Marx estava simplesmente elaborando sua própria teoria e categorias, longas inserções detalhando minúcias sobre a história da economia política seriam estilisticamente inoportunas, se não gratuitas. Ainda, isso é óbvio, a maioria dos marxistas lê tais passagens, notas e comentários, no Capital de Marx, como sendo somente isso – uma interrupção – reconhecendo no máximo a bravura da exibição de suas polêmicas proezas, como se Marx tivesse a necessidade de refutar economistas políticos que escreveram meio século ou até um século antes dele. Intérpretes como David Harvey, como já vimos, aparentemente tomam como compreensível que ele devesse escrever três volumes completos sobre as teorias passadas sobre a mais-valia simplesmente para atacá-las como equivocas, se não deliberadamente enganosas. Ainda assim eles permanecem curiosos para saber por que Marx negligenciou a escrita de algo mais sobre a oferta e demanda.[xxv] Aparentemente, tais intérpretes Imaginam que preocupação de Marx com a história do pensamento econômico político foi de alguma forma ditada pela luta do intelectualismo proletário contra a mistificação capitalista. Mas isto não apenas oculta a generosidade com intelectuais da estatura de Smith, faz perder de vista o aspecto crítico do projeto do Capital, o corpus central da elaboração da dialética marxista. Refiro-me ao método de Marx, pelo qual ele pretende apropriar criticamente o projeto de emancipação humana universal que ele encontra no coração da economia burguesa de política.

Através da apropriação do aparato categórico da teoria do valor-trabalho, Marx trabalha em maior detalhe o que ele denomina como sua teoria do fetichismo. Uma maneira de colocar o ponto polemicamente no que diz respeito a certos comentadores do século XX é dizer que, ao completar e processar cientificamente a teoria do valor-trabalho, Marx não passa a ferro suas contradições, mas em vez disso permite que essas contradições se revelem dialeticamente: Ou seja, como formas necessárias de aparência – formas de aparência cuja realidade deve ser superada na prática se o capitalismo deve ser confinado na lata de lixo da pré-história. Em Capital, Marx não se compromete com a construção de uma teoria própria, para não gerar um aparelho categórico próprio. O que ele chama de “economia política da classe trabalhadora” é simplesmente a economia política burguesa totalmente realizada. Este Marx indica, como seu ponto de partida, a forma da mercadoria, que adota a partir do primeiro capítulo do, já com meio século de idade, tratado de Ricardo sobre a economia política. Um trabalho que Marx compreende como sendo simultaneamente uma longa tentativa de apropriação de Smith e como a base da economia política (reconhecida ou não) do socialismo que prevaleceu em seu tempo.

Conclusão

Karl Korsch argumentou há oito décadas que a crítica de Marx à economia política pressupõe que, tal como é constituída politicamente através da revolução liberal-democrática e socialmente através da revolução social, a sociedade burguesa é constituída subjetivamente através do esforço deliberado para a compreensão da (não) liberdade social (através da economia política e, num sentido diferente, da filosofia moderna). O que Marx veria como a subjetividade da forma da mercadoria, a expressão mais alta do que é a economia política, foi conquistada através da luta revolucionária, o coração no qual repousa a filosofia moderna, a economia política. Para compreender a natureza da liberdade que foi conquistada, assim, para a humanidade (e a falta que esta liberdade cria), esta filosofia singularmente moderna da economia política (e com isso esta revolução moderna) devem ser submetidos à crítica. Muitas vezes, a atividade emancipatória da subjetividade é reconhecida na narrativa heroica liberal da ascensão da modernidade através da revolução científica, no enfraquecimento e privatização da religião, etc., mas o capitalismo como liberdade não poderia ter surgido estritamente da reflexão sobre a natureza e o divino. Ele deveria contemplar a liberdade na sociedade, e tinha que fazê-lo cientificamente.

Que o pensamento de Smith seja inadequado para o capitalismo moderno é, por assim dizer, problema nosso, não dele. E, neste ponto, o mesmo pode ser verdade com relação ao leitor mais profundo de Smith, Karl Marx.

Tradução: Hugo Arruda

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[i] D. Harvey. A companion to Marx’s Capital. New York: 2010, p.52.

[ii] D. Harvey. Spaces of hope. Berkeley: 2000, p.175.

[iii] G. Arrighi. Adam Smith in Beijing. London: 2007, pp.60, 55, 64.

[iv] Ibid pp.69, 328, 49.

[v] Ibid. p.65 inter alia.

[vi] Ibid p.328.

[vii] M. Macnair, ‘No need for party?’ Weekly Worker. May 12 2011.

[viii] M. Macnair, ‘Theoretical dead end’ Weekly Worker. May 19 2011.

[ix] G. Lukács. History and class-consciousness: studies in Marxist dialectics translated Cambridge MA 1971, p225.

[x] K. Marx, The poverty of philosophy. New York: 1992, pp.80-81.

[xi] K. Marx, ‘The civil war in France’, in K Marx and VI Lenin The civil war in France: the Paris Commune. New York: 1993, p56.

[xii] K. Marx. Capital Vol. 1. New York: 1976, p221, note 31.

[xiii] Ibid pp.95-96.

[xiv] M. Macnair, ‘The study of history and the left’s decline’ Weekly Worker June 2 2011.

[xv] H. Ticktin, ‘The theory of capitalist disintegration’ Weekly Worker September 8 2011.

[xvi] A. Smith. An inquiry into the nature and causes of the wealth of nations Vol 1. Indianapolis: 1981, p51.

[xvii] K. Marx. Grundrisse. New York: 1973, p104.

[xviii] A. Smith. Wealth of nations Vol 1, pp.386-87.

[xix] F. Engels, ‘Anti-Dühring’, K Marx and F Engels CW Vol 25, p139. Note-se que este capítulo sobre a história da economia política é geralmente reconhecido como tendo sido rascunhado por Marx.

[xx] Ibid p138.

[xxi] K. Marx, Grundrisse New York 1973, pp104-05.

[xxii] K. Marx, ‘Theories of surplus value’ Capital Vol 4, Moscow 1969, p157.

[xxiii] K. Marx Grundrisse New York 1973, p156.

[xxiv] K. Marx, ‘Comments on James Mill Éléments d’économie politique’, MECW Vol 3, p217.

[xxv] Ver, por exemplo, Harvey’s 2011 Deutscher Memorial Prize Lecture, ‘History versus theory: a commentary on Marx’s method in Capital’, disponível em www.youtube.com/watch?v=90yDWg6z0Gk&feature=related.