Gustavo Bernardo é professor de Teoria da Literatura na UERJ.
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Resumo
A religião, como sugere a etimologia, religa as pessoas umas às outras e todas à sua origem e à sua direção na vida. Ela precisa não apenas ligar mas voltar a ligar, isto é, “religar”, porque reconhece que a história das pessoas tende a desligá-las umas das outras e, principalmente, da sua origem e do seu sentido na vida. A religião como que devolve o sentido à vida, e isso nos dois “sentidos”: tanto de significado quanto de direção.
Palavras-Chave
Deus, Ficção
Abstract
Religion, as the etymology suggests, rebinds people to each other and all of them to their origin and their direction in life. It needs not only to bind but to bind again, that is, “to rebind”, because it recognizes that the history of people tend to disconnect them from each other and, mainly, from their origin and their meaning in life. Religion acts like giving back the way to life, and that in the two “ways”: both meaning and direction.
Key Words
God, Fiction
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No princípio de tudo, encontramos a religião. A literatura, como toda a arte, nasce da religião – e, como toda filha, às vezes presta reverência à mãe, às vezes se rebela – e ainda, ao se rebelar, encontra uma maneira paradoxal de prestar reverência (como acontece na casa da gente).
A religião, como sugere a etimologia, religa as pessoas umas às outras e todas à sua origem e à sua direção na vida. Ela precisa não apenas ligar mas voltar a ligar, isto é, “religar”, porque reconhece que a história das pessoas tende a desligá-las umas das outras e, principalmente, da sua origem e do seu sentido na vida. A religião como que devolve o sentido à vida, e isso nos dois “sentidos”: tanto de significado quanto de direção.
Como a religião faz isto? Através de narrativas fundadoras. Toda religião conta uma história para nos dizer de onde viemos, para onde vamos e, afinal, quem somos. Quando se reverenciavam vários deuses, as narrativas sobre eles explicavam a nossa origem a partir do encontro ou do confronto entre esses vários deuses. Quando se passou a reverenciar um único deus, as narrativas sobre ele passam a explicar a nossa origem a partir da vontade desse deus ou do conflito entre a nossa vontade e a sua vontade.
As narrativas politeístas são forçosamente múltiplas, o que as torna mais amplas mas menos verossímeis e menos críveis. Além disso, em toda religião politeísta os deuses são demasiado humanos: eles enganam-se uns aos outros e aos seres humanos – logo, sempre podemos enganá-los um pouco ou, ao menos, driblá-los.
As narrativas monoteístas têm uma lógica interna mais restrita, apoiada sempre na vontade e no poder do deus único: isso as torna menos amplas, mas mais verossímeis e mais críveis. O deus único sempre tem mais poder do que todos os deuses antigos juntos: ele se apresenta como onipotente, onipresente, onisciente e, às vezes, benevolente. Não se pode enganar o deus único, se ele tudo vê, tudo sabe e tudo pode.
De outra parte, assim como o arco-íris mais bonito é aquele no qual conseguimos distinguir mais cores, a multiplicidade inerente às narrativas politeístas as torna mais belas – mas, por isso mesmo, moralmente mais fracas.
As narrativas monoteístas tendem naturalmente à monotonia, isto é, a ficarem presas em um único tom: o tom da voz e da vontade do deus único. Isso as torna menos belas, mas ao mesmo tempo mais verossímeis, mais críveis e moralmente mais fortes. A crença em um único deus aumenta a responsabilidade pessoal daquele que crê, o que por sua vez aumenta o poder de conexão e “religação” da própria religião. Não à toa as religiões monoteístas se impuseram no mundo e ao mundo: cada deus único é muito mais poderoso do que os muitos deuses de antigamente, o que por sua vez empresta parte desse poder a cada indivíduo e à espécie toda. Não por outra razão o pensamento humano continua perseguindo o ideal totalizante atingido há séculos pela religião, tentando formular “a teoria de tudo” que concilie o macro com o micro, ou seja, a cosmologia com a mecânica quântica. Não criaram um aparelho gigantesco, e o plantaram na Suíça, para procurar o bóson de Higgs, também conhecido como “a partícula de Deus”?
A despeito de cientistas e religiosos, porém, o que conseguimos observar da natureza nos mostra um mundo que não se esgota numa explicação só ou numa narrativa apenas. O que conseguimos observar de nós mesmos, por exemplo, quer como indivíduo quer como espécie, mostra-se sempre irredutível a uma perspectiva única, seja ela psicanalítica, biológica, sociológica, filosófica ou mesmo teológica. Talvez essa circunstância explique os resquícios do politeísmo nas próprias religiões monoteístas, como o culto à Virgem e aos santos, ou o sincretismo pragmático entre o monoteísmo explícito do cristianismo e o politeísmo mais ou menos disfarçado do candomblé e de outras religiões afro-brasileiras.
Além disso, o monoteísmo mostra-se cada vez mais longe do seu ideal lógico: se realmente há um único Deus, agora grafado com a devida inicial maiúscula, deveria haver uma única religião e uma única igreja que lhe rendesse homenagem, como aliás pretendia a igreja católica ao se denominar “católica”, do grego “katholikós”, ou seja, “universal” – literalmente, “uma única versão”. Pela mesma razão, diversas igrejas pentecostais também usam o adjetivo “universal”, já devidamente traduzido para língua vulgar. Todavia, nenhuma igreja é ou pode ser realmente universal. Calcula-se o número de religiões monoteístas no mundo na ordem de dezenas de milhares. Depois que Friedrich Nietzsche, à esquerda, e Augusto Comte, à direita, “mataram” Deus no século 19, ele não só não morreu como ainda se multiplicou por muitos mil, mostrando, no mínimo, que ainda há necessidade de narrativas múltiplas e polifônicas.
Como viram, creio que religião também é literatura, isto é, a religião também pode ser lida como uma narrativa ou um conjunto especialmente rico de narrativas. Também creio que desse modo não desvalorizo nenhuma religião, se entendo o sentimento religioso como antropologicamente necessário.
Mas: será que posso dizer o contrário, ou seja, que a literatura também possa ser vista como religião? Com as devidas mediações e modalizações, sim.
Karl Marx afirmou não apenas que a religião é o ópio do povo, mas também que a religião é o lugar do espírito em um mundo sem espírito. O fundador do marxismo reconhecia portanto a necessidade do que chamou de “espírito”, ou seja, de tudo aquilo que não se reduz à matéria e que transcende o nosso corpo. Entretanto, tanto Marx quanto os livre-pensadores do século 19 entenderam que as religiões estabelecidas se comprometiam tão seriamente com os poderes estabelecidos que acabavam deixando o espírito de lado para manter esse compromisso e, consequentemente, seu poder. Tornava-se imperativo cuidar do espírito por outra via que não a religião. Dizendo de maneira um pouco irônica: o sentimento religioso seria coisa muito séria para ficar na mão da religião.
A alternativa institucional para o espírito, enunciada timidamente por Marx mas bem claramente por Nietzsche, seria a arte. Dentre todas as artes, pela importância do verbo na sociedade histórica, a arte verbal da literatura podia compor a linha de frente. Esta seria uma segunda razão para a criação, justamente no século 19, da disciplina “literatura” na escola – a primeira residia na valorização simbólica da língua-pátria e, por via de consequência, da própria pátria.
A educação ocidental tende a ser cada vez mais laica, apesar da resistência heroica das escolas confessionais. Tenta-se impingir por lei o ensino do criacionismo, como no país fundamentalista da América do Norte, mas por aqui a lei não “pega” como lá. Mesmo as escolas confessionais precisam admitir professores que não comunguem da mesma fé, ou que não comunguem de fé alguma. Décadas atrás, por exemplo, fui professor de um renomado colégio de jesuítas admitindo-me ateu para o padre que me entrevistava (meus agradecimentos e meus aplausos para o padre e para o colégio em questão).
Nessa educação laica, as aulas de artes para crianças constituem o espaço de exercício do espírito. Quando as crianças se transformam em adolescentes e começam a ser preparadas para o mercado de trabalho, acabam as aulas de arte mas ainda resta o espaço das aulas de literatura para este exercício do espírito, permitindo aos alunos tanto serem mais do que si mesmos, através dos personagens dos romances, quanto cultivarem a fé no invisível, isto é, naqueles seres que só existem na imaginação dos escritores e dos leitores.
Ainda que a Lucíola do José de Alencar exista apenas no papel, ela pode ensinar muito mais sobre a paixão e o medo da paixão do que um pastor, um professor ou um psicólogo poderiam fazer. E a paixão, como sabemos, é um ser imaterial, logo, um personagem do nosso espírito – ora protagonista, ora antagonista, ora tão somente um narrador…
Um dos sentimentos mais importantes para aquele que crê em um deus é o da revelação. Em determinado momento, que pode ser tanto de extrema dor quanto de extrema alegria, o crente sente que Deus se revela a ele precisamente através do acontecimento. A comoção do momento é tão forte que a vida passa a fazer sentido. Na verdade, o sentido da vida parece ser recebido de Deus e se resume no nome de Deus. Esse sentimento não deve e não costuma ser menosprezado pelos ateus – muitos explicam respeitosamente sua não crença dizendo que não foram contemplados com a revelação.
Sinto algo parecido quando visito uma igreja antiga vazia, a ponto de com frequência me comover e chorar. Infelizmente, a mesma igreja cheia de gente, durante o culto, já tem o efeito contrário: me “descomove”. Com isto quero dizer também que não fui contemplado com a revelação divina, mas que talvez gostasse de ter sido…
Felizmente, a literatura faculta sentimento semelhante, que pode funcionar como um substitutivo da revelação. Esse sentimento não nega nem prejudica o sentimento religioso da revelação, mas como que o recria quer para quem não foi contemplado quer para quem sente sua fé enfraquecida. Trata-se do sentimento da epifania. O termo deriva do grego “epipháneia”, que significa “manifestação”. Originalmente, é um acontecimento religioso. As epifanias correspondem a aparições a partir das quais os profetas, os xamãs, os bruxos e os oráculos interpretam as mensagens de divindades ou de mundos além deste mundo. Os ventos, os raios e as tempestades, por exemplo, são a epifania, isto é, a manifestação reveladora de Iansã. Chama-se epifania também à festa cristã que celebra o momento em que Jesus se dá a conhecer.
Em arte, a epifania corresponde à súbita sensação de compreensão da essência de algo, como se encontrássemos a última peça do quebra-cabeças da vida. Essa sensação súbita não acontece quando assistimos a uma aula ou lemos um ensaio como este, mas sim quando assistimos a um filme ou lemos um romance. É como se “tudo” ficasse claro e fizesse sentido de repente. Não mais do que de repente os fragmentos incoerentes do mundo se arrumam e os impulsos contraditórios da alma se harmonizam.
Porém, se tentamos explicar esse sentido para alguém, ele como que escapa entre as palavras. Precisamos persegui-lo de novo, relendo aquele romance ou tomando um outro da estante. A sensação da epifania é psicologicamente necessária, não importa que não dure tanto quanto gostaríamos – que simplesmente aconteça já nos dá vontade de repetir, eufóricos, a frase do poeta português: tudo vale a pena se a alma não é pequena.
Claro, a sensação da epifania pode ser tão valorizada que se torna um clichê kitsch, levando-nos a só querer ler ou adotar livros que “mudem a vida” da gente e dos alunos. Nesse caso, falamos da literatura como “ó, a literatura, que maravilha!”, ou seja, de maneira pomposa, acrítica e falsa. Mas esse tipo de deturpação do sentimento também acontece nas religiões estabelecidas.
Importa que a literatura de algum modo realiza nossas necessidades religiosas – logo, sim, a literatura é também religião, vale dizer, religação. Importa que continuemos religiosamente procurando o sentido “de tudo”. Como não o achamos, inventamos deuses. Como os deuses não bastam, inventamos o Deus único. Como o Deus único ainda não basta, não apenas o multiplicamos, através das múltiplas religiões, como inventamos personagens e narradores para contar a história dos personagens – a ponto de o próprio Deus comparecer muitas vezes como personagem, isto é, como ficção.
No entanto, os ateus diriam que Deus sempre foi uma ficção. Aliás, ateu que se preza não gosta muito de ser chamado de ateu, preferindo a expressão “não crente”. O termo “ateu” sugere a descrença apenas em um deus, enquanto o termo “não crente” engloba a descrença em deuses, super-heróis, fadas do dente, duendes de jardim, amigos imaginários e, naturalmente, no Papai Noel. Para o não crente, Deus é apenas um super-hiper-amigo-imaginário. Dentre os não crentes, alguns concedem que esse super-hiper-amigo-imaginário seja uma ficção necessária para a maioria, enquanto outros o entendem como uma ficção não só desnecessária como também perniciosa.
Entre os não crentes que consideram a ficção de Deus uma ficção negativa, encontramos o cientista Richard Dawkins, autor de Deus, um delírio, o filósofo A. C. Grayling, autor de Against all Gods (ainda sem tradução no Brasil), e os romancistas José Saramago, autor de O Evangelho segundo Jesus Cristo, e Philip Pullman, autor de O bom Jesus e o infame Cristo.
Entre os não crentes que consideram a ficção de Deus uma ficção necessária, ou ao menos a religião como uma necessidade humana intransponível, encontramos o crítico marxista Terry Eagleton, autor de O debate sobre Deus, o filósofo Alain de Bottom, autor de Religião para ateus, e o filósofo André Comte-Sponville, autor de O espírito do ateísmo.
A discussão entre esses dois grandes grupos, dos quais apresentei apenas poucos exemplos relevantes, contempla talvez a principal aporia da modernidade, e ainda deve ser balizada pelos importantes pensadores e escritores que defendem a própria existência de Deus, sustentando que Ele não é e não pode ser de modo algum uma ficção. Entre esses pensadores, destacam-se a teóloga Karen Armstrong, autora de Em defesa de Deus, o filósofo G. K. Chesterton, autor de Ortodoxia, e os romancistas C. S. Lewis, autor de As Crônicas de Nárnia, e Graham Greene, autor de Fim de caso.
Nas obras dos romancistas acima, crentes ou não crentes, Deus comparece de variadas maneiras. Ainda que eu me defina como não crente, gosto mais do Deus do católico Graham Greene, no romance Fim de caso. Nesse romance, a história toda é narrada pelo personagem Maurice Bendrix, que não acredita em Deus, mas acaba convencido de sua existência por conta de algumas intervenções e alguns milagres. Essas intervenções divinas são bem irônicas, tornando o conflito entre Maurice e Deus especialmente rico. Em 1999, o romance de Greene foi levado ao cinema por Neil Jordan, com Ralph Fiennes no papel de Maurice.
Em outros romancistas, que não se definem tão claramente como crentes ou não crentes, a presença do personagem Deus é mais complexa. É o caso de João Guimarães Rosa: apesar de se dizer uma pessoa profundamente religiosa, no seu romance Grande Sertão: Veredas a grande questão para o protagonista não se encontra na existência ou na bondade de Deus, mas sim se o narrador, Riobaldo Tatarana, fez ou não fez o pacto com o Diabo. O Diabo é na verdade o grande personagem de Guimarães Rosa.
Deus também está fortemente presente na ficção do judeu Franz Kafka, ora como um pai agigantado e aterrorizante, ora como o próprio sistema, profundamente impessoal e cruel. O Deus de Kafka suscita tantas interpretações que muitos consideram o escritor um profeta, enquanto outros tantos o veem como o príncipe dos hereges.
Deus não é propriamente um personagem para Machado de Assis, a não ser no conto “A igreja do diabo”, ultra-irônico desde o título. Mas é citado muitas vezes em todos os seus romances, junto com referências à Bíblia. Essas citações também são fortemente irônicas, até porque Machado altera sutilmente os versículos bíblicos que traz para a sua narrativa. O escritor brasileiro nunca se declarou ateu, não crente ou agnóstico, mas a sua ironia demolidora, voltada com frequência contra a igreja do seu tempo, associada às suas últimas palavras, nos autoriza a vê-lo como não crente. Aos 69 anos, à beira da morte, uma amiga lhe pergunta se pode chamar o padre para ministrar a extrema-unção. Machado de Assis lhe responde, com dificuldade mas com coerência: “melhor não; seria hipocrisia”.
Para encerrar esse brevíssimo levantamento de Deus como personagem, lembro primeiro que o diretor Kevin Smith recorreu à cantora Alanis Morrisset para representar o próprio Deus em Dogma, seu filme de 1999. Deus se apresentava como uma jovem travessa e sorridente que, quando abria a boca para falar, destruía tudo em volta, mostrando que a voz de Deus, ou da Deus, é poderosíssima!
Depois, lembro que o cartunista Laerte, um cordialíssimo não crente, produziu uma longa série de tiras com Deus como personagem. Seu Deus é desenhado do modo como o catecismo católico nos acostumou a ver desde criança: como homem, velho e branco – ou seja, tudo o que domina. Entretanto, seu Deus é tudo menos onipotente, onipresente, onisciente, arrogante e prepotente. Ao contrário, o Deus de Laerte é divertido, gentil e cheio de dúvidas. Vejamos apenas dois exemplos.
Nessa primeira tira, um homem chama por Deus com um ponto de exclamação, olhando para cima. Como não é atendido, chama por Deus em cima de uma escada, já com dois pontos de exclamação. Como continua sem ser atendido, chama por Deus em cima de uma escada em cima de outra escada, já com três pontos de exclamação. No quarto quadrinho da tira, o homem está em cima de três escadas, uma sobre a outra, para tentar falar com Deus ou alcançá-lo, já desapareceu até da vista do leitor, quando o próprio Deus aparece lá embaixo, perguntando apenas “quê?”, mas sem gritar, isto é: sem ponto de exclamação nenhum. Graças ao uso metalinguístico da borda dos quadrinhos e ao efeito cômico, produzido quando o personagem chama aos berros alguém que deveria estar “lá em cima” mas que na verdade se encontra muito próximo e às suas costas, lá embaixo mesmo, o desenho permite uma interpretação religiosa bem interessante: Deus não está “lá em cima”, mas sim conosco, onde estamos; não é necessário gritar por Deus, assim como Deus não precisa gritar para se fazer ouvir.
Essa interpretação se reforça na segunda tira de Laerte. A tira não é propriamente engraçada, mas comovente.
Uma mulher pergunta para Deus, mas de costas para Ele: “por que isso aconteceu?”. “Isso” pode ser qualquer tragédia ou perda pessoal, daquelas que, quando acontecem, perguntamos “por que logo conosco”, ou pior: onde estava Deus que “deixou” que o mal acontecesse? A mulher da tira explicita essa sensação ao perguntar diretamente a Deus: “não dava pro Senhor ter impedido?”. A resposta de Deus é sucinta: “não”. Mais desalentada do que magoada, a mulher pergunta novamente: “se não posso contar com o poder da sua mão, com o que posso contar?”. A resposta de Deus é ao mesmo tempo cômica e doce: “com o ombro”. No último quadrinho, silêncio, para podermos ver e sentir melhor o momento em que a mulher se abraça a Deus para se encostar no seu ombro.
O Deus de Laerte resolve o velho dilema teológico: ou bem Deus é onipotente, ou bem Deus é benevolente. Ele não pode ser ambas as coisas, caso contrário o mal não existiria. Ele não pode ser sequer apenas onipotente, caso contrário seria arbitrariedade pura. O Deus de Laerte definitivamente não é onipotente, o que lhe permite ser benevolente. O Deus de Laerte não sabe por que o mal aconteceu e nem pode impedi-lo, mas oferece seu ombro divino como consolo.
Não, não é pouca coisa.