Considerações sobre a leitura berliniana de Joseph de Maistre, por Rui Bertrand Romão

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Rui Bertrand Romão é professor da Universidade da Beira Interior e pesquisador do Instituto de Filosofia da Linguagem da Universidade Nova de Lisboa.
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Resumo

Neste artigo o autor apresenta reflexões sobre a especificidade da interpretação que Isaiah Berlin, em diversos textos seus, fez de um dos pensadores que com maior assiduidade estudou durante algum tempo, Joseph de Maistre, contemplando temas, problemas e questões capazes de lançar alguma luz sobre o próprio pensamento de Isaiah Berlin.

Palavras-Chave

Isaiah Berlin, Joseph de Maistre

Abstract

In this article, the author presents reflections on the specificity of the interpretation that Isaiah Berlin, in his various writings, made of one of the greatest thinkers that with most assiduity he studied for a time, Joseph de Maistre; contemplating themes, problems and issues, which are able to shed some light on the thought of Isaiah Berlin itself.

Key Words

Isaiah Berlin, Joseph de Maistre

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Joseph de Maistre intriga Isaiah Berlin, inquieta-lo e sedu-lo. O Russo de origem (judeu letão, mas não por isso menos russo) parece sentir pelo seu quase compatriota por adopção[1] fascínio e repulsa num simultâneo frémito. Irmana-os, antes do mais, o exílio provocado pelos efeitos degenerescentes de um cumprimento distópico da prolongada planificação da Modernidade setecentista. Embora de formas bem diferentes, passaram os dois pela experiência de Revoluções, distantes uma da outra perto de uma dúzia de décadas. Comunga-os a circunstância de os fogos e as clareiras ateados e abertas por fanais hiperbolicamente iluministas haverem de algum modo esbraseado o seu pensamento.

Além desta fraternidade da condição de émigrés e da de vítimas de uma certa derivação da modernidade que os jungiam, não poucos traços comuns aproximam os dois autores e pensadores. Os testemunhos das suas personalidades sedutoras parecem não escassear. Partilhavam eles tanto o gosto pela vida social como uma diversificada curiosidade e uma apaixonada avidez de saber que frutificou na espantosa erudição que as obras de qualquer deles patenteiam. Do ponto de vista literário, une-os também, além do mais, a eloquência, a elegância da expressão, uma lucidez exemplar e o gosto do estilo. Mas afasta-os, desde logo, o temperamento intelectual e, no fundo, o próprio estilo.

Disse que ambos eram familiares de círculos mundanos e ao mesmo tempo estudiosos aplicados. Acrescento agora que creio que, se eles tinham em comum essa frequência, essa dedicação ao estudo e a conciliação das duas atividades, contrastavam os modos como as viviam. De um lado, temos um tranquilo scholar oxoniano de meados do século XX, amigo de recepções e festas em meios aristocráticos britânicos, erudito e reputado professor e brilhante conversador, mas por alguns taxado de falta de fôlego e de ausência de profundidade na exploração dos temas, no que se refere à escrita. Do outro lado está um aplicadíssimo magistrado e senador, incansável ativista político, polemista, e, a partir de certa altura, diplomata. Também ele se distinguia como conversador, deslumbrando nos salons e no mundo das cortes em que se movia, tanto mais que em ocasiões da sua vida, a própria profissão o submetia a solicitações sociais. Mas mais do que um afável palrador, era um angariador de prosélitos dotado de uma personalidade magnética. Era, como diz Pierre Glaudes «o antigo aluno dos jesuítas e adepto de lojas maçónicas habituado aos usos da vida elegante, que tem consciência de enegrecer papel em vão se não se torna mestre dos espíritos» [De Maistre (2007):111]. A vida mundana não terá muito perturbado a sua escrita, antes servindo os mesmos propósitos. De um lado, o de Berlin, está, pois, a amável sensatez, do outro, o de de Maistre, o fervoroso excesso apoiado numa solidíssima disciplina.

Não só a formação, a disciplina, o modo de conversar e a atividade os separavam. Berlin afirmou-se como empirista e incréu, judeu embora. De Maistre impôs-se como figura austera, homem de fé, além de insaciável estudioso e de polígrafo infatigável. Berlin, mesmo tendo em conta os seus rasgos intuitivos, é um pensador, em geral, razoavelmente moderado e em busca de um equilíbrio instável. Já o Conde Saboiano sobressai por uma permanente e fogosa intensidade radical. Um apresenta o recorte de um atraente e bonacheirão professor, fulgindo-lhe as idéias com espontânea naturalidade. O outro, mostra-se ora um espirituoso epigramático, ora um sardónico observador, ora um grandiloquente apaixonado, mas sempre (exceto na correspondência) um sistemático radical. A escrita daquele flui agradavelmente com nitidez e algumas cintilações, embora por vezes na errância e, de um modo geral, num tom de serena coloquialidade. Marcam a do outro a implacabilidade do raciocínio, a sedução  oratória e uma incomum densidade especulativa. Com facilidade se percebe tanto o êxito que depressa favoreceu Berlin nas ilhas britânicas, como também as ondas de reação e as fervorosas adesões (se bem que estas mais raras) provocadas por Joseph de Maistre, um pouco por toda a parte, ainda que algumas ao retardador.

Dadas tais aproximações e essas divergências (de que só algumas mencionei), não espanta que Berlin, ao falar de de Maistre, não poucas vezes tenda a autobiografar-se, quer em movimento simétrico quer por impulso de dissimetria. O historiador Angus Norman Wilson numa fina recensão publicada no Times Literary Supplement a livros em torno de Berlin, chega mesmo a observar que «talvez haja uma parte de Maistre em Berlin, quando lemos que “Maistre possuía um encanto social considerável tal como um agudo sentido do que o envolvia [e que] impressionou fortemente a sociedade da capital russa como um polido e espirituoso cortesão e como um arguto observador político”» [Wilson (2009): 3]. Poderemos porventura ousar ir um pouco mais longe do que Wilson. Nesta frase respigada de «O Ouriço e a Raposa» [Berlin (1999): 248], Berlin parece rever-se num de Maistre por ele representado também à sua imagem  e similitude. Haverá então uma parte de Berlin nesta sua figuração de de Maistre. Mas se aqui o comentador tende a projetar-se na personagem sobre que escreve, aproximando-se dela por uma atração que frisa as afinidades intuídas, e apontando para uma identificação, já outros passos de textos seus indiciam uma forçosa necessidade de demarcação. Poderia nascer ela do sentimento, ou quiçá do pressentimento, de uma indesejável semelhança estendida para lá do admissível com uma personagem sobre a qual pesava um tão forte anátema nos sectores bem pensantes oitocentistas e novecentescos. Acaso ela poderia provir de uma repugnância mais ou menos sincera (mas com um não sei quê de pose artificiosa) de certas facetas do autor comentado por parte de um leitor que não se desvinculava da aceitação de outros aspectos seus. Seja como for,  considerando o caso de Berlin e da reação emocionada que de Maistre nele causa, este parece uma espécie de mestre espiritual que, à laia de um espelho, reflete para quem nele olha o que o escrutador talvez nunca quisesse ver quer de si mesmo quer do mundo. Terá funcionado ele para Berlin como um refletor que lhe deu a ver o segredo de uma malquista auto-revelação? Ou, pelo contrário, constituiu ele para o seu comentador uma espécie de repelente ou uma fonte de alergia?  Estaríamos tentados a responder “ambas as coisas”, de tal modo Berlin dá sinais ora de uma ora da outra atitude.

Em todo caso, a leitura que Berlin faz aí de de Maistre acaba por corresponder ao que alhures ele observa a propósito da biografia que Maurois escreveu sobre Disraeli [“O seu livro – A Vida de Disraeli – revela mais sobre o seu autor que sobre o biografado” – Berlin (1997): 161n.], ou do discurso de Dostoievsky acerca de Pushkin [“… em relação ao célebre discurso de de Dostoievsky sobre Pushkin … qualquer leitor com discernimento raramente terá considerado que lança luz sobre o génio de Pushkin, mas antes sobre o do próprio Dostoievsky” – Berlin (1999): 212]: dizem-nos mais os primeiros sobre si próprios que sobre aqueles que formam o objeto da sua atenção, mais mostram do sujeito que lê que do objeto lido. E isto, acrescentamos nós, apesar da incontável informação que os comentadores possam carrear. Se assim não fosse, teria acaso Berlin a necessidade de tão enfaticamente iniciar o seu principal estudo sobre de Maistre com a apresentação de um padrão normalizado de interpretações deste último a insistir numa leitura uniformizada, a que a sua pretende contrapor-se? E precisaria ele num mesmo escrito de explicitar com tanta ênfase quanta a que aí põe o abismo que cava entre de Maistre como homem doce e irónico e de Maistre enquanto pensador cujo «mundo moral e político [se acha ] repleto de pecado, crueldade e sofrimento» [Berlin (2003): 158]?

O ensaio em questão intitula-se “Joseph de Maistre and the Origins of Fascism” e foi pela vez primeira dado à estampa em 1990, como capítulo inédito, e por sinal o mais extenso, da coletânea The Crooked Timber of Humanity. Chapters in the History of Ideas, editada por Henry Hardy. Terá tido, segundo este, uma longa gestação. Principiada a sua redação  « nos anos 40, se não antes» [Hardy (2003) : x], frisa o prefaciador, apenas foi concluída ela pelos anos 60 para submissão à revista Journal of The History of Ideas. Concebido e composto o estudo ao longo de duas ou mais décadas,  concluído e submetido para publicação, foi rejeitado e posto de parte por carecer de revisão. Esta, segundo Hardy, terá sido empreendida só nos anos 80 para publicação no livro em que veio a lume em 1990. Não estamos aqui, pois, perante apenas uma mera «gestação longa» [Ibid.], mas face a um atribulado e, até mesmo, poderemos cismar,  um bem torturado e arrastadíssimo parto intelectual.

Mais adiante trataremos também do que se pode respigar da leitura berliniana de de Maistre alhures. Concentremo-nos por ora nesta sua peça central encarada por si mesma. O texto tem oitenta e quatro páginas na edição que compulsámos, a segunda, de 2003. Não parecerá muito longo para outros autores. Mas para os padrões de Berlin, que em vida (a par de numerosas coletâneas de escritos breves) apenas publicou como trabalhos extensos com dimensão de um livro uma monografia sobre Karl Marx e o ensaio “O Ouriço e a Raposa” (vindo a lume em 1953 como livro autônomo de pouco mais de 80 páginas), sem dúvida que o é[2].

O título do ensaio indicia, desde o primeiro momento, a tese nuclear que Berlin ao longo de todo ele pretenderá explanar. A enunciação de «Joseph De Maistre and the Origins of Fascism» dá a entender uma relação, articulando o autor do final do século XVIII e primeiro quartel da centúria seguinte com o fenómeno político do século XX. Recorde-se que o texto estava destinado a um público minimamente familiarizado com aquele e com este. Todavia, o leitor, baseado apenas no título e desconhecendo ainda o que se lhe seguirá, pode interrogar-se sobre qual o tipo de relação que o ensaísta pretende estabelecer entre o Conde saboiano e o movimento político italiano liderado por Mussolini, ao qual correspondem uma doutrina e uma ideologia políticas que exerceram  influência e precipitaram acontecimentos noutras partes da Europa e do Mundo, e cujo desenrolar culminou em não poucas tragédias individuais e coletivas.

O par de epígrafes que se interpõem entre o título e o início do texto propriamente dito revela-se já elucidativo quanto ao caráter da relação que Berlin pretende realçar. Trata-se a primeira epígrafe de uma quadra de um poema anti-monárquico de Victor Hugo, em que se associa  a propósito de de Maistre a defesa da realeza ao elogio do carrasco: « Um rei é um homem eqüestre/ Personagem singular,/ À margem do qual de Maistre/ Escreve: Rei, leia-se: Carrasco » [Berlin (2003): 91].

A segunda epígrafe consiste numa citação do próprio de Maistre: « Mas não é tempo de insistir sobre estas matérias, o nosso século ainda não está maduro para tratar delas … ».

Assim, temos, de um lado, uma opinião depreciativa acerca de de Maistre, sugerindo que a sua concepção de monarquia implica, pelo autoritarismo excessivo que comportaria, uma implacável repressão. Do outro lado, aparece respigado dos textos do Saboiano, não sem profunda ironia,  um trecho que, tomado em si mesmo e isolado, aparenta mostrar-se virado para o futuro, já que o seu autor aí exibe autoconsciência profética.

Estas epígrafes fazem, pois, com que se releia o título à luz de dois juízos: a doutrina de de Maistre envolve a idéia da necessidade de um exercício violento da autoridade, e acha-se ela provida de um caráter prenunciador e, ainda mais, prefigurador. O título do texto berliniano passa então a poder dizer que de Maistre é um teórico precursor do fascismo, no que este teve de mais negativo e negro.

Sem dúvida que Berlin era um pensador de grande finura e que se trata de um autor cujas obras se acham repletas de observações agudas e subtis. A circunstância de deixar para as epígrafes, curiosa e significativamente acasaladas neste caso, o papel de esclarecimento do sentido do título não destoará inteiramente dessa finura do seu espírito e da sua habitual ironia. Notam-se aqui, porém, ressaibos de uma atitude mais consentânea com um ato de acusação do que própria de um estudo de natureza científica. O teor do que Berlin pretende veicular torna-se então fácil de adivinhar: Joseph De Maistre pelas suas doutrinas encontrar-se-á, de algum modo, na génese do fascismo.

Antes mesmo de prosseguirmos com mais pormenores na explanação da tese berliniana sustentada ao longo deste escrito, convém apontar que o seu texto não se irá mostrar esclarecedor quanto à delimitação do que o Autor entende por fascismo. O título por falar precisamente de origens dava, à partida, a idéia de que Berlin estaria a pensar propriamente, ao referir fascismo, no fascismo italiano stricto sensu. De resto, temos aqui de levar em linha de conta que em qualquer das datas previstas para publicação do artigo, anos 60 ou final dos 80, o termo, normalmente brandido como uma acusação e não utilizado descritivamente, possuía indelevelmente uma forte carga depreciativa e um tom emocional (já afastado do objeto histórico adequadamente designável como fascismo), que permitia por vezes um emprego lato e algo indefinido do vocábulo para se aplicar a certas ideologias e práticas políticas, normalmente conotadas com a chamada extrema direita, e por vezes, até, com uma simples direita conservadora. Este emprego alargado e nebuloso, amiúde ele mesmo contaminado de sentido ideológico,  prima pela falta de rigor histórico e teórico e impõe-se pelo seu cariz pejorativo. Espera-se encontrá-lo num texto de intervenção política ou quiçá numa peça jornalística, não num artigo de uma publicação como o Journal of The History of Ideas. George Orwell, num seu famoso texto de 1944, originalmente publicada na sua coluna As I Please do jornal Tribune, e posteriormente intitulado «What is fascism?»,  descreve com eloqüência a latitude do  uso do vocábulo no seu tempo bem como a vagueza, a flutuação e a imprecisão das noções com ele conotadas. O escritor galês, depois de dar exemplos da aplicação no seu tempo do epíteto «fascista» a grupos tão díspares como os de conservadores, socialistas, comunistas, trotskistas, católicos, pacifistas, belicistas e nacionalistas,  escreve: « É fácil de ver que, tal como se usa, o vocábulo fascismo é quase inteiramente desprovido de sentido. Em conversa, é claro, ainda é mais selvaticamente usado do que na escrita. Já o ouvi aplicado a agricultores, a lojistas, ao Crédito Social, à punição corporal, à caça à raposa, à tauromaquia, ao Comité de 1922, ao de 1941, a Kipling, a Gandhi, a Chiang Kai-Shek, à homossexualidade,  aos programas de rádio de Priestley’s, aos albergues de juventude, à astrologia, às mulheres, aos cães, e a que mais sei lá eu » [Orwell (1944)][3].  O futuro autor de 1984 mais tarde conclui o artigo defendendo um uso do termo « com alguma circunspecção sem o degradar ao nível de um palavrão » [Ibidem].

Ora, no ensaio de Berlin sobre que tem recaído a nossa atenção reencontramos justamente um emprego da noção de fascismo deste tipo. Pela vez inicial em que surge no texto, parece ele, mais ou menos, corresponder ao histórico fascismo italiano (encarado, porém, numa já discutível globalidade demasiado abrangente), mas, depois, vai-se tornando cada vez mais impreciso e lato, e acaba por enfim vir a ilustrar à perfeição o uso selvático em conversa do termo, a que se refere Orwell.

Mas vejamos qual a tese central da leitura berliniana de De Maistre. Resumamo-la assim[4]. Todos os intérpretes de De Maistre, vendo nele um prócere contra-revolucionário, um teórico reacionário que defende com veemência o Ancien Régime e os valores de antanho perorando contra a Modernidade, estão errados. Citemos o próprio Berlin: «Os historiadores soem incluir Maistre entre os conservadores[5]. Dizem-nos que ele e Bonald representam a forma extrema da reação católica: tradicionalista, monárquico, obscurantista, rigidamente apegado à tradição escolástica medieval, hostil a tudo quanto era novo e vivo na Europa pós-revolucionária, vãmente em busca de uma antiga, pré-nacionalista e grandemente imaginária teocracia medieval» [Berlin (2003): 100]. Isto, segundo Berlin, aplica-se a De Bonald não a De Maistre. Este era completamente diferente do outro: «A sua luz era não menos seca, o seu cerne intelectual igualmente duro e gelado mas as suas idéias […] eram mais ousadas, mais interessantes, mais originais, mais violentas, na realidade, mais sinistras do que quaisquer alguma vez sonhadas dentro do limitado horizonte legitimista de De Bonald» [Berlin (2003): 102]. Ele não estaria virado para o passado mas voltado para um futuro ainda algo distante. Nas palavras de Berlin: « Aos olhos dos seus contemporâneos, talvez aos seus próprios, ele parecia contemplar calmamente o passado clássico e feudal, mas o que ele viu ainda mais claramente verificou-se ser uma visão arrepiante do futuro» [Ibid.].

De Maistre seria, portanto, nada mais e nada menos que um profeta. Um profeta, porém, de quê? Do que houve de mais sinistro, terrível e horroroso no século XX. Pela sua cosmovisão de um pessimismo extremo, pela sua recusa do iluminismo, pela sua concepção de poder, pelo seu irracionalismo, pela sua cegueira dogmática,  pelo seu realismo « violento, raivoso, obcecado, selvaticamente limitado » [Berlin (2003): 167], ele teria prefigurado o ideário fascista. Não só terá sido a pitonisa do fascismo como a sua fonte, porquanto, segundo Isaiah Berlin: « […] a teoria política de De Maistre foi uma influência dominante nas idéias reacionárias, obscurantistas e por fim fascistas nos anos que se [lhe] seguiram » [Berlin (2003): 134]. E noutro passo: « O século XX estava destinado a assistir ao mais risco florescimento e à mais impiedosa aplicação da sua doutrina » [Berlin (2003): 155]. Refere-se aqui o ensaísta em concreto à « política [de de Maistre ] de deliberado retardamento das ciências e das artes liberais » [Ibidem ].

Creio que estas citações do texto de Berlin mostram à saciedade que a sua leitura de de Maistre se caracteriza por um tom claramente mais panfletário que histórico ou científico e por uma linguagem  hiperbólica consentânea com o intento de levar a cabo uma virulenta pintura. Mas selecionar apenas fragmentos de tal texto significa amenizá-lo, de tal forma o todo se afirma por uma extravagante violência.  Em todo o caso, parece inegável, pelo que as citações feitas ilustram, que Berlin procede a uma nítida diabolização de de Maistre. E tanto assim é que, a certa altura, declara que o autoritarismo sustentado por de Maistre nada tem que ver com o da tradição precedente, como quase todos os comentadores anteriores defendiam, mas que, em vez disso, aproxima-se «a passo rápido dos mundos dos ultra-nacionalistas germânicos,  dos inimigos do Iluminismo, de Nietzsche, Sorel e Pareto, D. H. Lawrence e Knut Hamsun, Maurras, D’Annunzio [e do ] Blut und Boden […]» [Berlin (2003): 126]. Recordemos neste ponto que, de uma ou de outra maneira todos os autores citados se acham, em alguma fase ou por algum aspecto, conotados ou com o fascismo italiano ou com o nazismo, e ponha-se ênfase na circunstância de Blut und Boden, cuja tradução literal é «sangue e terra», designar uma doutrina racista nazi. Berlin procede aqui a uma amálgama de autores e correntes doutrinais ou ideológicas que não ajuda na clarificação do pensamento do autor que é objeto da sua investigação. Em vez disso, infelizmente deparamos aqui com um exemplo do libérrimo emprego conversacional da palavra fascismo nos anos 40 descrito por Orwell.

Mas Berlin, não contente em afastar de Maistre do mero tradicionalismo ou mesmo do reacionarismo, enfim, de toda a ligação com o passado, para, virando-o rumo ao futuro, assimilá-lo a pensadores, de uma ou de outra maneira, conotáveis com o fascismo ou com o nazismo, na sua representação luciferina do pensamento político e da Weltanschauung do pobre Conde de Maistre, chega ao extremo de o considerar como o pai de todos os totalitarismos do século XX, quer de direita quer de esquerda: «Na prática, se não na teoria, […] a visão profundamente pessimista de De Maistre é o coração dos totalitarismos, tanto de esquerda como de direita, do nosso terrível século» [ Berlin (2003): 127]. Se assim é, parece que as visões otimistas da humanidade e do seu destino, essas, não terão nada que ver com nenhum tipo de totalitarismo. Que dizer, então, das utopias amigas do iluminismo que degeneraram em feroz totalitarismo? Será que a circunstância de Berlin haver feito um aceno à distinção entre teoria e prática torna possível a inclusão da globalidade dos totalitarismos na descendência do Saboiano? Quererá isto dizer que o pessimismo é tendencial se não essencialmente totalitário e que o primeiro e  mais extremo pessimismo do mundo foi o de de Maistre?

Ainda que, por concessão, admitíssemos a hipótese implausível adiantada por Berlin quanto a de Maistre haver sido o primeiro teórico profundamente pessimista de um determinado tipo, teríamos a maior dificuldade em estabelecer com o mínimo rigor a ligação da sua teoria às práticas totalitárias surgidas no século XX, e afastar estas de qualquer derivação, ainda que ínvia, da Revolução francesa. Prová-lo já não seria tão-só difícil mas de todo impossível. O problema nem sequer é simplesmente encontrar traços nos escritos dos pioneiros teóricos ou práticos de qualquer totalitarismo do século XX da reivindicação de de Maistre como sua figura inspiradora, mas o de mostrar uma real conexão, e, uma vez ela mostrada, provar que é a que realmente determina a essência caracterizadora do totalitarismo, em toda a sua especificidade. De resto, começara Berlin por anunciar que as raízes do fascismo mergulhavam  na doutrina de de Maistre. Depois, já estende a descendência do saboiano a todo o tipo de totalitarismo.

Seja como for, para Berlin, de Maistre não se acha na génese do totalitarismo apenas pelo mero teor da sua doutrina, lida como ele a lê, ou treslê, mas também pelo próprio estilo de exposição das idéias e pela sua mesma idiossincrasia mental. Como os extremos se tocam,  e como os Saint-Simonianos tinham anunciado como projeto a tentativa de reconciliação das idéias contrapostas de Voltaire com as de de Maistre, Berlin, contradizendo a sua anterior apresentação de de Maistre como arqui-inimigo do Iluminismo, descortina em tal projeto um sinal mais de visionária  identificação dos horrores políticos da vigésima centúria. Só que para Berlin, ao invés do que se passava com os discípulos de Saint-Simon, o fulcro do prenúncio não reside propriamente na conciliação das idéias, mas, antes, nas afinidades de atitude[6]: «Os sistemas totalitários modernos [diz Berlin e eu interrogo-me sobre o qualificativo, porquanto se existem sistemas totalitários que precisam de ser ditos modernos é porque o autor que o diz acha que os haverá pré-modernos, o que não aparenta ser factual e historicamente rigoroso, já que o conceito apenas surgiu com Mussolini e antes não seria pensável] nos seus atos senão no seu estilo de retórica combinam os perfis de Voltaire e de de Maistre; herdaram, em particular, as qualidades que os dois têm de comum » [Berlin (2003): 159]. Contrapondo-se as idéias de um e de outro, as mentes possuem a mesma configuração: «Nem Voltaire nem o seu inimigo são culpados de qualquer grau de moleza, vagueza ou auto-indulgência, seja do intelecto seja da sensibilidade, nem as toleram nos outros » [Ibid.]. Dir-se-ia que Berlin apresenta aqui um parti-pris favorável aos atributos que recusa tanto a Voltaire como a de Maistre. Em relação a este último, creio que assistimos claramente neste ponto à demarcação autobiográfica por parte de Berlin que acima mencionei. Curiosamente, o que ele nos mostra como dureza pré-fascista conotável com intolerância (adrede e provocatoriamente imputada ao mesmo paladino da tolerância que foi Voltaire) corresponde ao exercício do que normalmente se chama  auto-disciplina. E mesmo que a brandura pudesse ser resgatada como qualidade intelectual por conotações de relacionamento com os outros e com o mundo, não se vislumbra com facilidade por que motivos a vagueza e ainda mais a auto-indulgência, tanto ao nível do intelecto como ao da sensibilidade,  tenham de ser assim valorizadas. Porventura, se nos situássemos de um ponto de vista estritamente estético (como em grande parte se situa Barbey D’Aurevilly), poderíamos quiçá compreender o esboço de tal atitude. Mas não aparenta ser essa a perspectiva berliniana. Além do mais, a própria simetria perfeita nos dois autores acusados registada entre o intelectual e o sensível, apesar da separação que necessariamente a referência dual pressupõe, levanta suspeitas. Não será que indicar a dureza, a precisão e a exigência  intelectuais difere de apontar os atributos sentimentais eventualmente análogos? E que é que o rigor, a exigência e a gravidade têm de atual ou potencialmente fascista? Não serão antes elas justamente virtudes setecentistas mais voltadas para o passado clássico que defeitos a mirar práticas políticas novecentescas?

A tirada berliniana que culmina a caracterização do acasalamento dos inimigos irmãos, Voltaire e de Maistre, merece ser sublinhada: «Eles representam a luz seca contra a chama  tremeluzente, eles opõem-se implacavelmente a tudo o que é túrbido, nebuloso, efusivo, impressionista, [opõem-se] à eloquência de Rousseau, Chateaubriand, Hugo, Michelet, Bergson, Péguy» [Berlin (2003): 159]. Pouco depois desta heteróclita listagem, aparece outra mais breve, mas porventura ainda mais surpreendente: « Marx, Tolstoi, Sorel, Lenine são – quanto ao molde das suas mentes não quanto às idéias – os seus verdadeiros sucessores » [Ibid.]. Esta junção de referências, sob certo ponto de vista credível, tem todo o ar de constituir uma daquelas associações sobretudo destinadas a impressionar os ouvintes e os interlocutores. Em qualquer dos casos, não  parece haver nada de especificamente moderno, e que não se possa encontrar em período anterior, na configuração intelectual dos referidos quatro autores que constitua, por contraposição, um elo de ligação entre a parelha Voltaire-de Maistre e o fascismo. Aparentemente, os seus nomes (três dos quais associáveis, eles sim, a totalitarismos do século XX) até terão sido mais escolhidos por causa das idéias que pelo molde mental, embora Berlin frise que aquelas não vêm ao caso. De resto, estranha que Berlin passe em silêncio os evidente elos a ligarem Voltaire a de Maistre: ambos possuíram uma sólida educação jesuítica e tiveram formação jurídica. Foi graças à conjugação dos génios respectivos com o apoio fornecido por essa educação e por tal formação que o verbo de cada qual conheceu grande eficácia e as idéias deles foram propaladas com vigor. A outros fatores mais poderá isso ter-se devido. Entre eles, porém, decerto não se conta o que Berlin sugere: o terem eles engendrado uma família  intelectual destinada a degenerar no fascismo e em totalitarismos de espécie vária.

De resto, o que para Berlin aos dois une é a dureza, a secura e a cáustica mordacidade que eles revelam em seus escritos. Mas não serão estes traços comuns a uma infinita multidão de autores, desde a Antiguidade, que polemizam encarniçadamente?

Nem o conteúdo da doutrina de de Maistre nem o seu estilo de pensamento e a sua maneira de se exprimir escapam, pois, à censura levada a cabo por Berlin. Não quer isto tudo dizer que, argutíssimo leitor, Berlin não revele neste seu escrito acerca de de Maistre observações incisivas e de fino recorte. Mas, infelizmente, acham-se diluídas num todo nada convincente, já que o sentido geral da sua interpretação surge forçado assenta num alicerce intuitivo pouco sólido e a argumentação que o defende apresenta-se pouco convincente.

Tão-pouco o desenvolvimento que Berlin dá à exposição da sua tese se apresenta com muita consistência. Vimos que ele começara por desdizer as leituras mais correntes de de Maistre, para lhes contrapor a sua. A eventual originalidade  desta residia em frisar que de Maistre se distinguia dos demais contra-revolucionários coevos não apenas por não se limitar ao saudosismo reacionário do Ancien Régime  e à argumentação concomitante, como também e sobretudo, por apontar para o futuro sinistro (adjetivo dos que mais vezes aparece neste texto berliniano a qualificar de Maistre) do fascismo. Vimos como a tese vai variando graças à demasiada abrangência e à indefinição do conceito de fascismo apresentado. Berlin não só sublinha o caráter profético de de Maistre como põe ênfase em que é ele, na concretude da sua determinação, que o torna interessante como o iniciador de uma linhagem  teórica que culmina nas práticas totalitárias do século XX.

No entanto, se Berlin pretende destacar-se dos demais comentadores de de Maistre, na realidade, à parte a específica e extravagante consideração de de Maistre como o primeiro protofascista, a sua leitura não prima pela originalidade. É que na apresentação da figura e das teorias do Saboiano, ele reitera os aspectos de lenda negra que os seus detratores já antes dele haviam realçado, contestando leituras mais abonatórias, minimiza o assento escolástico e tradicionalista do Autor, deprecia-lhe a fé bem como as concepções do foro teológico,  e repete lugares-comuns estafados dessa imagem deprecatória.

Bastará aqui mencionarmos três desses lugares-comuns que Berlin glosa.

Um deles já de passagem referimos. Trata-se do realce dado ao elogio da figura do carrasco por de Maistre. Tal faceta é inegável, mas, ao invés do que os adversários de de Maistre se comprazem a propagar, semelhante e desenvolvido louvor, em que o autor revela um singular poder de análise, nada tem que ver com uma apologia do uso político da violência e da crueldade ou do castigo pelo castigo, antes serve uma explanação filosófica e teológica da relação entre a justiça humana e a divina.  Após transcrever um dos mais célebres textos, de admirável recorte literário, do primeiro diálogo das Soirées de Saint- Pétersbourg, ou Entretiens sur le Gouvernement Temporel de la Providence [De Maistre (2007): 470-471], Isaiah Berlin não apenas salienta a quota-parte de crueldade na concepção de punição de de Maistre como frisa a adesão simultânea e paradoxalmente racional e arrebatada a essa concepção, dominada por uma espécie de terrorismo autoritário, e que ela se integra perfeitamente bem no quadro global do pensamento do autor: « Isto não é uma mera meditação sádica sobre crime e castigo, mas a expressão de uma convicção genuína, coerente com o resto do pensamento apaixonado mas lúcido de Maistre, de que os homens só podem ser salvos através de serem assolados pelo terror da autoridade » [Berlin (2003): 118]. O problema é que sem a imposição pela força da punição, a qual por essência  tem de ser temida, sob risco de deixar simplesmente de ser punição caso o não for, a justiça queda inerte. De resto, há que sublinhar que nada de sádico há na meditação de de Maistre. Pelo contrário, palpita nela um agudo sentido do sofrimento humano, ainda que submetido a uma visão da necessidade da justiça e à concepção filosófico-teológica da subordinação do humano ao divino.

O segundo lugar-comum da lenda negra de de Maistre partilhado por Berlin que vamos aqui mencionar também tem que ver com um alegado culto da violência. Consiste ele em encarar de Maistre como um mero apologista e glorificador da guerra por si mesma e a todo e qualquer custo. De Maistre mais do que propriamente glorificar a guerra, antes, concebe-a como uma lei do mundo, na realidade, absolutamente horrível para o homem,  a qual apenas se compreende pela sua inserção numa ordem divina, a transcendência sacralizando-a e divinizando-a.

Um terceiro cliché acerca de de Maistre não se mostra exclusivamente cultivado pelos seus detratores porquando alguns dos seus apreciadores e seguidores cedo se valeram dele. Trata-se de encarar o Saboiano como um profeta de tudo e mais alguma coisa. Vimos já que Berlin apresentava de Maistre a ter-se a si próprio como tal na segunda epígrafe do seu ensaio. Se o mesmo autor se reconhecia profeta, mais tarde, desde 1851, esse reconhecimento consagrou-se com a inclusão por Barbey D’Aurevilly de de Maistre entre as figuras de Les Prophètes du Passé. Assim, em meados do século XIX a interpretação de de Maistre como visionário crítico da modernidade tornara-se já comum. Em contrapartida, Berlin propunha-se como inovador e distinto dos anteriores estudiosos e comentadores de de Maistre. A tentativa vem a mostrar-se gorada até porque a força nuclear da sua tese principal assenta em grande parte neste lugar-comum (no século XX) de transformar de Maistre em pitonisa. Curiosamente, o próprio Berlin mostra consciência do abuso interpretativo que consiste no alargamento exagerado dos dons proféticos do conde saboiano por forma a abarcar quase tudo quanto se lhe seguiu, porquanto, com irónica eloquência, ele denuncia a leitura de de Maistre como precursor dos mais díspares movimentos, idéias, eventos e doutrinas modernas, dando entre outros os seguintes exemplos: « Só porque ele [de Maistre] falou da divindade da guerra, parece a J. Dessaint un Darwiniano antes de Darwin. Porque ele virou do avesso pontos de vista aceites, comparam-no ao teólogo protestante herético D. F. Strauss; porque concedeu importância ao nacionalismo, é um precursor do Risorgimento italiano, do Presidente Wilson e da doutrina da autodeterminação » [Berlin (2003): 168]. O leitor poderá então acrescentar a estes exemplos um mais: só porque de Maistre falou da necessidade da punição, mantinha uma cosmovisão trágica da relação entre o humano e o divino e apresentou uma concepção pessimista do homem, um comentador [Berlin] fez dele o primeiro teórico fascista e o prefigurador de todos os totalitarismos.

Não é este o único texto de Berlin onde ele se ocupa de de Maistre. Dos demais, dois se destacam também como relevantes: um corresponde à transcrição de uma palestra radiofónica de 1953, que veio a ser publicada primeiro, em 1994, em versão adaptada como introdução a uma tradução inglesa das Considérations sur France, e depois a título póstumo em 2002 como o capítulo «Maistre» de Freedom and its Betrayal. Six enemies of Human Liberty; formam o outro passagens do célebre ensaio do mesmo período [1951-1953] «O Ouriço e a Raposa ».

O texto radiofundido consiste no que parece de alguma maneira  uma versão mais curta do ensaio grande sobre de Maistre, acontecendo que certas frases chegam a ser idênticas num e noutro lado. Todavia, apesar de pontos em comum, incluindo a partilha da mesma tese nuclear (se bem que apenas esboçada em traços gerais e com variantes na palestra), o efeito global  de cada um dos dois textos apresenta-se bem diverso um do outro. Talvez, na palestra, a circunstância de as idéias serem formuladas de maneira muito condensada, o seu encadeamento se subordinando ao fluxo conversacional, e a de aí Berlin procurar transmiti-las em tom ameno acessível a uma audiência radiofónica dos anos 50 do século XX diluam os aspetos mais crus da tese central de Berlin sobre de Maistre.

Constitui esta apresentação de de Maistre como um de “seis inimigos da liberdade” uma exposição sedutora de um autor pouco conhecido da maior parte do público destinatário, suscitando o interesse por diversas facetas originais da sua obra singular. A idéia berliniana de que o ultraconservadorismo de de Maistre prenuncia  o fascismo surge decerto já com clareza, embora seja ainda enunciada com alguma moderação: «Em certo sentido […] Maistre é uma espécie de precursor e de pregador antecipado do fascismo, e é isso que o torna tão interessante» [Berlin (2002): 153]. Conquanto ele de alguma maneira haja preparado para esta conclusão os auditores desde o início da palestra, Berlin apenas explicita a idéia no final e desta maneira mitigada, já que aqui emprega fórmulas restritivas que atenuam consideravelmente a apresentação de de Maistre como precursor do fascismo. De resto, como ponto de fecho de uma palestra, uma apresentação de Maistre que vai contra a corrente das mais divulgadas e aceitas interpretações dele no final do século XIX e no princípio do XX, levada a cabo por autores não tanto interessados na sua controversíssima lenda negra como em encará-lo como a figura emblemática de um tradicionalismo radical e vencido da História, e que traz à atualidade um pensador que a maioria dos comentadores qualificava como irremediavelmente retrógrado, não deixa de ter o seu quê de atraente. É uma conversa em que o Autor defende que por detrás da máscara clássica» de de Maistre, por detrás do seu legitimismo monárquico e «do seu tomismo ortodoxo, […] há um Maistre um pouco mais selvático, muito mais romântico, muito mais aterrador» [Ibidem]. Berlin aponta aqui, à laia de uma mera sugestão hermenêutica de que quer convencer a audiência, uma familiaridade que ele entrevê entre certas facetas do pensamento de de Maistre e a ideologia fascista, não expõe (como o fará mais tarde) uma relação histórica que se propõe demonstrar, por assim dizer, cientificamente.

Destarte, pode-se dizer que se a maior parte das noções do artigo posterior estão já contidas neste texto, elas nele se acham em comparação bastante suavizadas.

Algo de parecido mas porventura ainda refletindo uma maior mitigação se passa com «O Ouriço e a Raposa,  onde Berlin trata de de Maistre por causa da leitura que faz dele Leo Tolstoi e da influência que neste teve. A tese berliniana sobre de Maistre aparece lá esboçada com contornos tão moderados que só quem antes haja lido o estudo «Joseph de Maistre and the Origins of Fascism»  é que percebe a sua presença embrionária através de subtis apontamentos quase infraliminares. Infelizmente, a impressão  de obra bem acabada que «O Ouriço e a Raposa» a uma primeira leitura deixa, vem, após se conhecer bem o estudo mais desenvolvido que se centra em de Maistre, a de certa maneira esbater-se, porquanto revelam-se então mesmo aí fraquezas que inicialmente não se suspeitava lá se acharem. Por exemplo, uma observação como esta, dita en passant, não parece mais que uma impressão de leitura: «Quer o teor quer o tom dos seus escritos estão mais próximos de Nietzsche, de d’Annunzio e dos arautos do fascismo moderno do que dos respeitáveis monárquicos do seu tempo, tendo suscitado tumultos na época, tanto entre os legitimistas como na França Napoleónica »  [Berlin (1999): 248]. Trata-se de um dito que se dilui numa apresentação de de Maistre regida por uma visão mais tradicional deste. Como Berlin neste texto não vai a ponto de querer demonstrar essa nota de leitura como uma séria tese de historiador, ela não sobressai aos olhos do leitor desprevenido, tanto mais que acaba por se subordinar à interpretação de de Maistre como defensor de um «específico catolicismo ultramontano» »  [Berlin (1999): 272].

Em todo o caso, poder-se-á dizer, parafraseando o título do livro de Cioran que engloba um ensaio sobre de Maistre (e que se intitula precisamente Exercices d’admiration [Cioran (1995): 1519-1559]) que  em «O Ouriço e a Raposa» pela primeira vez Berlin publica um seu exercício de repulsa por de Maistre, sendo que em tal repulsa ainda parece palpitar, como acontecia no caso da palestra radiofônica, não pouca admiração pela figura do Saboiano.

Todavia, no texto vindo à estampa em 1990 a repulsa admirativa cede o lugar a uma exibição de ódio em que razão e desrazão se interpenetram. Não poderemos, assim, concordar com A. N. Wilson quando diz que Berlin no último ensaio sobre De Maistre requenta o que havia dito quatro décadas antes e que isso nos faz cismar que «Berlin […] não tinha exatamente feito muito durante esses anos todos» [Wilson (2009) : 3]. Embora Berlin, a avaliar pelos textos entretanto por ele publicados, não se tenha mostrado quanto a de Maistre capaz de aprofundar grandemente na via primeiro encetada e com abundante argumentação a sua pesquisa desde 1953 até 1990, nem tão-pouco de arranjar novas idéias ou teorias acerca desse autor, dificilmente poderemos considerar o estudo que publicou em derradeiro lugar perfeitamente indistinto dos que antes divulgara. O tom é diverso, tal como a construção do novo escrito que, ao contrário dos seus antecessores, põe a nu todas as suas fraquezas.

Tem, porém, de se conceder a Wilson que a idéia de base parece, no fundo, a mesma. Tal se deve, em grande parte, a que o núcleo da tese de Berlin ligando de Maistre à génese dos totalitarismos do século XX possui cariz intuitivo. Consiste num lampejo. Poderão alguns até julgar que tem virtualidades para cintilar durante algum tempo. Mas, tomada em si mesma e na sua explanação circunstanciada, bem considerada e analisada,  a tese revela-se uma hipótese que se acha condenada à extinção (por isso, quando foi explicitada sem ambages e desenvolvida com alguma extensão, mostrou a sua inconsistência). Dir-se-ia que ela despontou quer no recolhimento de uma leitura ou no seio de uma meditação quer na excitação de uma troca coloquial. É o que por vezes sucede com determinadas fórmulas ou idéias. O crivo do juízo tem, depois, de se exercer sobre elas, para apurar da sua qualidade e das suas potencialidades e decidir se elas devem ou não ser ampliadas ou reformuladas circunstanciada e pormenorizadamente. Rejeitam-se umas por completo ou em parte. De outras conserva-se o todo ou, então, alguns elementos, que serão devidamente reelaborados e apoiados com consistência em argumentos sólidos. Cabe a outras ainda uma função apenas inspiradora ou o destino de despoletar um processo de metamorfoseamento da sua substância para conduzirem a algum lado. Neste caso, como vimos, a tese nuclear de Berlin sobre a prefiguração do fascismo em de Maistre, por muito que ele nela haja insistido, quedou indemonstrada. Na realidade, temos de nos perguntar se não seria mesmo de todo insustentável. Mas não vale a pena reiterar a crítica da sua inaplicabilidade.

Reflitamos tão-só por um momento no problema que põe a circunstância de um pensador e historiador das idéias da estatura de Berlin se apegar tanto, e da maneira como o fez, a uma tese de tal modo difícil de defender, se é que se pode falar neste caso de defesa. Na realidade, Berlin apresentou-a, expô-la e repetiu-a, tentando ser persuasivo. Reiterou-a tão obsessivamente que, em olhar retrospectivo, vemo-la transparecer de um modo germinal nos textos mais antigos que sobre de Maistre publicou. Depois, ter-lhe-á ampliado a dimensão, ramificando-a e ilustrando-a com profusão, mas sem verdadeiramente a vir a desenvolver com coerência, organização e sistematicidade. Berlin acaba por não argumentar de forma consequente acerca da sua tese de que de Maistre seria uma espécie de protofascista. Tão-pouco ele mostra haver procedido em relação com ela a precisões e distinções, tanto históricas como conceptuais, necessárias quer num ensaio filosófico quer num estudo de história das idéias. Em vez de o fazer, Berlin amalgama os mais variados tipos de autoritarismo,  de ideários de extrema direita, de radicalismos direitistas e ultraconservadores,  de nacionalismos e elitismos e de totalitarismos do século XX, incluindo os de esquerda, numa concepção vaga, imprecisa e confusa do que denomina de fascismo, o qual ele reivindica haver sido primeiro prefigurado por de Maistre. Se Berlin denuncia com veemência o irracionalismo do autor das Soirées de Saint-Pétersbourg tanto como o das doutrinas e práticas a que teria dado origem, a sua tentativa de demonstração da tese acerca da relação de de Maistre com  tal progénie novecentesca mostra-se, porém, fruste e apóia-se em esteios dificilmente encaráveis como racionais. Como explicar, então, o fenómeno, conjugando-o com a extensão do estudo do Saboiano que Berlin empreendeu e em que aparentemente persistiu ao longo de décadas?

Uma resposta cabal exigiria um bem mais longo estudo, implicando uma detida análise de muitos aspectos e, porventura, da obra toda de Berlin. À guisa de conclusão deste artigo, irei aqui apenas, em breve apontamento, sugerir três vias de aproximação do problema, possivelmente conduzindo a uma resposta quando encarados em conjunto.

Em primeiro lugar, temos de insistir que se trata de Maistre de um autor que parece fazer Berlin confrontar-se consigo próprio, o que se torna tanto mais relevante por aquele, com o cunho provocador do seu engenho acutilante, tocar em problemas essenciais para este. A audácia e a originalidade  de de Maistre colocam-se ao serviço de um fundo de pensamento tradicionalista, definido e defendido com clareza e brilho, de uma forma algo contrastante com a de Berlin que, ao confrontar-se com certos temas, se bem que se exprima sempre elegantemente e não poucas vezes com brilho, peca nesta situação por se mostrar indeciso e por aparentemente recear definir-se face ao iluminismo sem meias tintas.

Em segundo lugar, o contra-iluminismo de Berlin, que veio a tornar-se uma imagem de marca sua, a certa altura, não deixa de se mostrar em certos textos (como precisamente sucede quando ele trata de de Maistre) algo ambivalente e ambíguo. Se um olhar crítico assestado no iluminismo, e sobretudo em aspectos da modernidade derivados dele, fez com que Berlin se interessasse pelos pioneiros antimodernistas, o seu posicionamento possuiu sempre laivos nitidamente contrários quer às posições ancoradas em formas de tradicionalismo quer à própria denúncia incondicional do iluminismo.  De resto, Berlin parece ver de Maistre como um apologista, mais que do Ancien Régime, em geral, da Velha Rússia, em particular, e de certas especificidades suas. De algum modo, vem Berlin a estabelecer a sua estranha  (e historicamente insustentável) ligação da defesa empreendida por de Maistre dos valores dessa Velha Rússia à emergência dos totalitarismos novecentistas, esquecendo que estes se tornam na verdade incompreensíveis sem a herança iluminista e que mais a esta se ligam que àquela.

Por último, a transformação da intuição de Berlin em chave de toda a sua interpretação de de Maistre pode dever-se em grande parte a uma vontade irreprimível de afirmar uma leitura que se pretenda completamente inovadora, já que vai contra a consideração comum de de Maistre como um tradicionalista nostálgico defensor do Ancien Regime.

Obras Citadas

Berlin, Isaiah (1997 ): Against the Current, edited by Henry Hardy, London, Pimlico Press [1979]

Berlin, Isaiah (1999): «O Ouriço e a Raposa», in Apoteose da Vida Romântica: uma antologia de ensaios, Lisboa, Bizâncio [1953, 1998]

Berlin, Isaiah (2002): Freedom and its Betrayal. Six Enemies of Human Liberty, edited by Henry Hardy, London, Chatto & Windus.

Berlin, Isaiah (2003): The Crooked Timber of Humanity. Chapters in the History of Ideas, edited by Henry Hardy, London, Pimlico [1990]

Cioran, E. M. (1995): Oeuvres, Paris, Gallimard.

Compagnon, Antoine (2005): Les antimodernes, de Joseph de Maistre à Roland Barthes, Paris, Gallimard.

De Maistre, Joseph (2007): Oeuvres, Texte établi, annoté et présenté par Pierre Glaudes, Paris, Robert Laffont.

Orwell, George (1944): As I Please column, Tribune, 24th March 1944

Wilson, A. N. (2009): «Isaiah Berlin dines out», TLS, July 17 2009, No 5546, 3-4.

 


[1] A expressão, de um ponto de vista estritamente rigoroso, parece pecar por algo abusiva, mas, em contrapartida, realça bem o papel de importância maior que na vida e obra do Conde de Sabóia desempenhou a estada dele durante catorze cruciais anos históricos em que ocorreram as guerras naopoleónicas. Joseph de Maistre, embaixador da Sardenha em São Pertersburgo exerceu uma influência considerável sobre a sociedade russa e até sobre o próprio Czar Alexandre I, que chegou a convidá-lo para seu conselheiro. Tal influência caracteriza-se essencialmente por uma atitude tradicionalista, criticando as reformas propostas.

[2] Esta circunstância, por muitos comentadores corretamente enfatizada, não deve ser utilizada para depreciar a excelência da, de resto, nada diminuta, produção de Berlin. Trata-se de uma característica estilística que tem que ver com a preferência de Berlin pela tradição ensaística e que devemos ter em conta tão-só como indício de uma especificidade de escrita do Autor. Por outro lado, no caso em consideração fica assim bem patente o seu interesse enorme neste ensaio.

[3] Itálico nosso.

[4] Um comentador recente de de Maistre, Antoine Compagnon sintetiza desta maneira o fulcro da leitura berliniana nesta frase: « Ele [“o pensamento teológico-político de de Maistre”] não se resume, como o quis Isaiah Berlin, a uma antecipação dos fascismos do século XX» [Compagnon (2005): 54]. Note-se nesta afirmação o uso do plural “fascismos”, bem como a redundância da referência destes [sic] ao século XX.

[5] Berlin, como, de resto, os britânicos, em geral,  omitem a partícula,  o que aqui não fazemos, excepto em citações onde tal ocorre.

[6] A este respeito não se pode dizer que Berlin prime pela originalidade porquanto já em meados do século XIX Barbey D’Aurevilly (grande apreciador e, de resto, émulo de de Maistre) descortinara afinidades de humor e estilo, nomeadamente a respeito do uso da ironia, entre os dois grandes escritores.