visNaturalismo em Spinoza e Hume, por Bernardo Bianchi Barata Ribeiro

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Bernardo Bianchi Barata Ribeiro é pesquisador do Laboratório de Estudos Hum(e)anos.

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Resumo

Muito freqüentemente, levados por argumentações convincentes, submetemos nossos juízos à autoridade de terceiros e ignoramos certas relações filosóficas que, de outro modo, se nos afigurariam como algo auto-evidentes. Acostumados a cavar trincheiras, não percebemos os armistícios e mesmo as alianças intelectuais que se insinuam na filosofia. Desse modo, assaltados pela carga semântica de categorias tais como racionalismo e empirismo, alvoroçamo-nos em arrumar os campos antagônicos e a escolher nosso lado nesta espécie de grande disputa filosófica. Mas raramente as grandes palavras servem para algo verdadeiramente útil. Em suma, estranhas afinidades aproximam Hume de Spinoza.

Palavras-chave:

Spinoza, Hume

Abstract

Often, driven by compelling arguments, we submit our judgments to the authority of others and ignore certain philosophical relationships that otherwise would appear as self-evident. Used to digging trenches, we do not realize the armistices or even the intellectual alliances that insinuate themselves in philosophy. Thus, assaulted by the semantic charge of categories such as rationalism and empiricism, we proceed to arranging the opposing camps and choosing our side in this kind of great philosophical dispute. But such big words are rarely used to something truly useful. In short, strange affinities aproximate Hume and Spinoza.

Key words

Spinoza, Hume

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A natureza, por uma necessidade absoluta e incontrolável, impele-nos a julgar, assim como a respirar e a sentir (Hume)

Muito freqüentemente, levados por argumentações convincentes, submetemos nossos juízos à autoridade de terceiros e ignoramos certas relações filosóficas que, de outro modo, se nos afigurariam como algo auto-evidentes. Acostumados a cavar trincheiras, não percebemos os armistícios e mesmo as alianças intelectuais que se insinuam na filosofia. Desse modo, assaltados pela carga semântica de categorias tais como racionalismo e empirismo, alvoroçamo-nos em arrumar os campos antagônicos e a escolher nosso lado nesta espécie de grande disputa filosófica. Mas raramente as grandes palavras servem para algo verdadeiramente útil. Em suma, estranhas afinidades aproximam Hume de Spinoza. Afinidades que, arredias aos nossos preconceitos classificatórios, revelam uma aliança profunda. Pois se a filosofia deve ser encarada na sua imbricação com o mundo, devemos sempre atentar para velhos problemas, questões ancestrais e algo perenes que acometem indivíduos deslocados no tempo e no espaço. Afinal, se a filosofia há de ser encarada como disputa – e é bom que o seja – devemos procurar escapar dos antagonismos mesquinhos, rijos e quebradiços. É preciso levar em consideração a integralidade dos movimentos filosóficos em questão. Invocamos, pois, certa analogia entre as questões tratadas por estes dois autores; analogia que, cimeira aos casuísmos da fortuna, nos permite perceber que entre Spinoza e Hume entremeiam mais afinidades do que oposições absolutas.

A relação de Hume com Spinoza tem sido objeto de um conjunto não pequeno de análises. No entanto – e isso não é senão natural –, preponderaram as análises que os opunha em detrimento do enaltecimento dos pontos de convergência a que aludimos. Com efeito, em 1982, Gilbert Boss publicou uma extensa obra, na qual se observa a demarcação de distanciamentos fundamentais entre os sistemas filosóficos dos dois pensadores em questão[1]. Um pouco antes, todavia, Richard Popkin havia escrito sobre importantes pontos de contato entre os autores no que toca a filosofia da religião[2]. Mais recentemente, em dois preciosos textos, Wim Klever tratou de afinidades ainda mais estreitas entre Spinoza e Hume, no que concerne (i) a questões epistemológicas[3] e (ii) ao problema dos afetos e das paixões[4]. Mas, sem dúvida, a abordagem de Klever é algo extraordinária. A julgar pelos próprios comentários que Hume faz a respeito de Spinoza no seu Tratado da Natureza Humana, somos levados a conceber antes um dissenso do que uma concordância entre as filosofias. Afinal, Hume se refere repetidas vezes a Spinoza de forma não muito elogiosa. Chama-o de “famoso ateu”, “universalmente abominável”, além de aludir à sua doutrina como a um “verdadeiro ateísmo” e uma “hipótese hedionda”[5].

Por outro lado, como bem o notam Popkin e Klever, muito embora não disponhamos de nenhum argumento senão a surpreendente conveniência dos textos, a coerência da evidência é, por si mesma, o melhor esteio para uma avaliação filosófica. Assim, se, ao certo, podemos tão-somente afirmar que Hume teve contato por via indireta com Spinoza – através do célebre verbete Spinoza, constante do Dictionnaire historique et critique, de Pierre Bayle[6] –, isto não é senão um testemunho de que afinidades filosóficas extravasam explicações limitadas a termos historiográficos ou à literalidade dos textos – aqui nos referimos aos vitupérios humeanos lançados contra Spinoza. Centrando toda ênfase no naturalismo – enquanto posicionamento antipodal com relação ao magma do pensamento moderno –, nos permitimos falar, portanto, de uma aliança na filosofia moderna. Com efeito, no presente artigo, gostaríamos de explorar o naturalismo estruturante desta aliança de perspectivas que une Hume a Spinoza; aliança esta que expressa uma crítica profunda à noção de livre-arbítrio que permaneceu presente no pensamento moderno e da qual podemos derivar dois corolários: (i) não existe nenhum princípio ordenador exterior ao regime de produção das idéias e (ii) o regime afetivo é uma realidade fundante da natureza humana e não um mero signo dos descaminhos desta mesma natureza.

É nos termos de um naturalismo radical que entrevemos nos textos de Spinoza e Hume, uma rejeição tanto à idéia de livre-arbítrio como à idéia de artifício enquanto índice do humano. Em última instância, fazendo um certo contrabando enviesado de Hobbes, podemos dizer que Spinoza e Hume são dois grandes críticos de uma perspectiva antropopática[7]. Ou seja, uma vez que, segundo Spinoza, “cada um (…) toma as afecções de sua imaginação pelas próprias coisas”[8], não é de se admirar que os homens, conscientes de seus desejos e inclinações, mas não das causas que os movem – a crença no livre arbítrio é resultado dessa assimetria: forte consciência das paixões e baixo conhecimento das causas destas volições –, julguem todos os acontecimentos segundo causas finais. O predomínio de uma perspectiva finalista se liga estreitamente às afecções próprias à imaginação humana. Antropopatia é, pois, uma forma alternativa de significar o lugar privilegiado que esta perspectiva finalista assume no senso comum. É o império do finalismo sobre o naturalismo, da causa final sobre a causa eficiente, do homem sobre a natureza[9].

Por esta via de argumentação, Descartes é um antagonista privilegiado, mesmo porque com ele desponta a pretensão, ainda que não realizada, de derivar a ética a partir do conhecimento racional, como se este pudesse ser a base de sustentação daquela. Ele não consegue evitar, porém, a presença da ética desde o princípio da fabulação racional. Afinal, ela é co-original com relação à dúvida pré-cogito, de tal modo que Foucault pôde bem dizer que se tratava de uma ética enquanto escolha contra o desatino[10]. Mas não queremos acompanhar o argumento de Foucault até o fim. Interessa-nos primordialmente assinalar em que medida a formulação filosófica de Descartes se estrutura contra o fantasma do erro. Ora, tudo isto encerra a convicção de que todo problema propriamente ético, relativo à boa vida, deve ser subordinado à investigação racional e à denúncia do falso.

Por fim, devemos reiterar que nossa maior oposição neste texto refere-se a uma espécie de cosmologia dogmática que confere ao humano um lugar à parte dentre as criaturas[11], como se fosse a mais perfeita das realizações da natureza e como se fosse, portanto, dotado de uma autoridade suprema sobre si mesmo; autoridade que recebe o nome de livre arbítrio e que caracteriza a existência humana enquanto artifício. Ou seja, o naturalismo de que falamos deve implicar uma atenção especial à inscrição dos homens na natureza e a rejeição de qualquer privilégio ao humano. É por este motivo que o exercício das atividades intelectuais humanas deve ser compreendido como sujeito às mesmas leis que regem o restante da natureza, caso contrário, recairíamos numa perspectiva antropopática. No campo propriamente ético, isto se conecta à necessária recusa de qualquer postulado voluntarista. Não se trata jamais de exigir que os homens queiram algo diferente daquilo que querem. Com Spinoza e Hume, saímos do marasmo das invectivas voluntaristas que apelam para uma capacidade de auto-regulação individual sem problematizá-la, como se fossemos todos alquimistas diante da próxima conjuração mágica. Ou seja, através de Spinoza e Hume, descortinamos uma cosmologia que situa o homem dentro da natureza, não se podendo arrogar-lhe um império sobre os seus próprios atos diferente do que observamos com relação aos demais acontecimentos naturais. Diferentemente de Hobbes, o humano não é compreendido sob o pálio do artifício.

No âmbito de uma perspectiva profundamente naturalista, as paixões são apreendidas enquanto elementos naturais comparáveis, pois, a outros elementos naturais. Logo, a liberdade humana é, em muitos sentidos, tão precária quanto a das demais coisas naturais. Convém notar que todo estudo ético deve dar conta de uma economia afetiva incontornável e inextinguível. É precisamente este estudo da economia afetiva constitutiva da natureza humana que passou ao largo de um sem-número de análises filosóficas e que tanto interessou a Spinoza bem como a Hume. Afinal, nenhum ensinamento filosófico, nenhuma razão, é capaz de fazer esmorecer a potências das paixões. Um projeto ético potente a ponto de perdurar na existência – sem se deixar solapar pela trágica confrontação com o mundo da vida – deve, necessariamente, levar em conta a resistência e a imperatividade da dimensão afetiva dos homens, o que, em última análise, envolve a apreensão da inserção do homem na natureza.

I. A realidade mental

Com Spinoza e Hume nos deparamos com um problema que se tornaria, séculos mais tarde, crucial para a fenomenologia: como pode uma idéia surgir do mundo material se o mundo material não tem, de saída, uma dimensão simbólica? Ou seja, a dimensão do pensamento é uma dimensão própria que não pode ser explicada senão nos seus próprios termos. Assim, não é possível sustentar a validação de idéias apoiando-se numa suposta realidade objetiva anterior às mesmas. Pensamento e extensão – para ficarmos com os termos spinozanos – são dimensões irredutíveis uma à outra. São, propriamente falando, atributos autônomos da realidade[12]. Não existe nem relação causal – isto é, um corpo não dá origem a uma idéia – nem relação conceitual – ou seja, um corpo não é concebido por uma idéia nem uma idéia, por um corpo. Tanto para Hume quanto para Spinoza, as idéias não podem ser reduzidas à matéria.

Segundo Spinoza, conquanto toda idéia seja idéia de uma coisa, a sua existência enquanto idéia não pode ser ancorada em seu objeto – ou seja, naquilo de que é idéia –, como se fosse determinada à existência a partir dele. A circunstância de representar um objeto constitui uma propriedade extrínseca da idéia, distinta da sua qualidade intrínseca que é de ser um fato mental[13]. As idéias, portanto, consideradas em si mesmas, não são representações de coisas exteriores e, portanto, reais que elas não fazem senão copiar fantasmagoricamente. Pelo contrário, as idéias são, em si mesmas, modos expressivos do atributo do pensamento e somente podem ser por ele concebidas. Ou seja, as idéias somente são explicadas pela infinita potência da natureza enquanto “coisa pensante” (cogitans res). Em termos spinozanos, “as idéias (…) reconhecem como sua causa eficiente não os seus ideados, ou seja, as coisas percebidas, mas o próprio Deus[14], enquanto coisa pensante”[15]. O pensamento é uma experiência sem fundo, sem ponto de partida, sem ancoragem objetiva.

Hume, por sua vez, ao tratar da origem das idéias, afirma que nada jamais se apresenta à mente senão percepções. Daí não nos ser dado conceber nada senão idéias e impressões. Ou seja, o status cognitivo das impressões não pode ser explicado por processos não-cognitivos[16]. Ora,

Fixemos a nossa atenção fora de nós tanto quanto possível; lancemos a nossa imaginação para o céu ou para os limites extremos do universo; de fato não avançamos um passo para além de nós próprios, nem podemos conceber nenhuma espécie de existência a não ser as percepções que aparecem nesta área limitada. Este é o universo da imaginação e não temos nenhuma idéia que lá não seja produzida[17]

A rigor, jamais podemos conceber objetos exteriores em os considerando especificamente diferentes de nossas percepções. A noção de existência externa não existe senão em função das nossas percepções, das nossas experiências. Em outras palavras: nós não temos nenhuma idéia de objeto exterior senão enquanto este é simbolicamente mediado pela nossa experiência. No limite, apenas podemos formar destes objetos idéias relativas, atribuindo-lhes “diferentes relações, conexões e durações”[18], mas nunca podemos considerá-los especificamente diferentes do modo como os percebemos. Ora, isto é decorrência do que a idéia relativa à existência ou ao ser de um objeto é o mesmo que a idéia do próprio objeto. Nós não podemos conceber nenhuma impressão externa à idéia que temos – da qual a idéia de existência é um correlato. Toda idéia envolve uma afirmação ou uma negação. As idéias não são, portanto, pinturas mudas disponíveis a um sujeito que pode delas fazer o que bem entender, como se as idéias fossem simples imagens e como se o erro pudesse ser ancorado na vontade, ou seja, numa dinâmica judicativa independente do ato intelectivo propriamente dito[19]-[20]. Tudo aquilo que concebemos, concebemos como existente. Hume rejeita qualquer pretensão de ultrapassar a experiência em benefício de um suposto acesso direto às coisas. Por conseguinte, poderíamos dizer, com Spinoza, que toda idéia é verdadeiramente uma idéia[21] e que não há nada de positivo numa idéia pelo que podemos afirmá-la falsa[22].

A cesura entre pensamento e extensão – enquanto atributos autônomos de uma natureza una – corre lado a lado da imbricação radical entre mente e corpo. Spinoza nos diz, portanto, que “o objeto da idéia que constitui a mente humana é o corpo, ou seja, um modo definido da extensão, existente em ato, e nenhuma outra coisa”[23]. Isto implica dizer que a mente não pode ter idéia das coisas sensíveis senão através das afecções do corpo de que é a idéia, ou seja, “a mente humana não percebe nenhum corpo exterior como existente em ato senão por meio das idéias das afecções de seu próprio corpo”[24]. Há, pois, uma simultaneidade entre a mente e o corpo – simultaneidade que remonta à relação entre uma idéia e o seu ideado –, que obsta qualquer entendimento no sentido de que a mente humana possa ter alguma espécie de acesso direto ao mundo objetivo. A estreita união entre mente e corpo, enquanto união entre a idéia e o seu objeto, não pode ser explicada à luz da associação entre duas substâncias diferentes, dotadas de regimes de produção distintos. Trata-se, fundamentalmente, da coexistência de dois processos de expressão correlacionados segundo um mesmo princípio de ordem e conexão[25] – o que é referido através do termo “paralelismo psicofisiológico”. Mente e corpo não são duas realidades separadas, cuja união dependa de um princípio exterior à sua correlação intrínseca. Muito diversamente, no ser humano, a mente e o corpo formam “um único e mesmo indivíduo, concebido ora sob o atributo do pensamento, ora sob o da extensão”[26]. A autonomia entre os atributos – pensamento e extensão – e a união entre o corpo e a mente é explicitada por Spinoza quando se considera que experimentamos a existência do corpo pelas idéias que nós temos de suas afecções[27].

Poderíamos dizer, assim, fraudando à nossa moda Protágoras, que o corpo é a medida de todas as coisas. Mas é necessário reiterar todas as advertências que já se encontram implícitas nos primeiros parágrafos desta seção. Cada indivíduo somente percebe o mundo exterior em função das idéias da interação entre seu corpo e outros corpos; interação esta que é contínua e não admite um ponto de partida objetivo. Afinal, um corpo não pode ser causa de uma idéia a não ser a partir da idéia da afecção deste corpo – que poderíamos denominar sensação –: uma idéia sempre remonta a outra idéia. Seria suficientemente devastador para qualquer pretensão objetivista afirmar que as impressões sensíveis envolvem tanto a natureza do corpo exterior quanto a natureza do corpo humano, mas o spinozismo torna o relativismo tanto mais drástico quanto retém que as “as idéias que temos dos corpos exteriores indicam mais o estado de nosso corpo do que a natureza dos corpos exteriores”[28]. Não seria demais aproximar Spinoza de um certo ceticismo e acusar mesmo a proximidade destas considerações com o terceiro tropo de Agrippa, que afirma precisamente a relatividade de qualquer juízo objetivo, de tal modo que nenhum objeto sensível pode ser considerado por si mesmo[29]. De um lado ao outro, temos o rompimento com qualquer pretensão de vínculo gnosiológico entre os conceitos humanos e um mundo objetivo que lhes pudesse garantir consistência. Afinal, nenhum suposto mundo objetivo pode servir de fiança gnosiológica para conceitos, mesmo porque não temos acesso a ele senão pela nossa experiência.

Sem que possamos nos aprofundar na questão, é preciso reter que a teoria spinozana da percepção rejeita tanto uma concepção empirista e materialista vulgar quanto um inatismo. No primeiro caso, isto ocorre porque não é possível falar em sensações brutas ou de uma origem empírica para as idéias. No segundo, porque toda idéia não é senão idéia de um corpo ou, pelo menos, de uma afecção – o que é dizer o mesmo. Enfim, Spinoza recusa tanto a noção de tabula rasa quanto a de idéias inatas[30].

Também Hume afirma que as idéias que concebemos são expressão do modo como percebemos nosso próprio corpo e aquilo que nele ocorre como resultado da ação de corpos exteriores, sendo inseparáveis, portanto, de nossas experiências. Seria absurdo, portanto, “pensar que os sentidos podem jamais distinguir entre nós próprios e os objetos exteriores”. A isso, Hume acrescenta que “todas as impressões, externas e internas, paixões, afecções, sensações, dores e prazeres, originariamente estão em pé de igualdade”[31]. Todas as percepções são como conclusões realizadas em nós a partir de impressões em nossos corpos, sendo que algumas dessas conclusões são mais estáveis e constantes, enquanto outras são mais fugazes e fluidas[32], o que decorre do grau de coerência que estas percepções guardam umas com relação às outras. E a coerência de que falamos aqui juntamente com Hume não denota nenhuma espécie de intervenção de um processo judicativo externo àquilo que a dinâmica das idéias afirma por si mesmo. Trata-se, antes, do correlato da constância das percepções, de como determinadas percepções se repetem e de como, mesmo quando se alteram, o fazem de modo regular[33].

Assim, por exemplo, nós aceitamos a existência de uma coisa na medida em alguma idéia põe a idéia desta existência sem que uma outra idéia, contraditoriamente, afirme sua inexistência. É bem de uma economia mental que se trata, economia que não admite a existência de processos intelectuais paralelos e voluntários, mas que se explica nos termos de um certo automatismo mental[34]. Coerência e constância substituem, no âmbito da imaginação, a crença vulgar na capacidade dos sentidos de distinguirem entre percepções e objetos físicos bem como a crença filosófica de que tal capacidade dependa do dom racional. Não estamos, pois, com Hume, na dependência de uma faculdade absolutamente indeterminada de aderir ou não às idéias, como se houvesse um princípio ex machina a operar no âmbito de realidade mental.

Muito embora a realidade mental seja um mundo irredutível à matéria – sem que seja altaneiro ao corpo de que é idéia – devemos reter o fato de que ela, assim com a realidade material, envolve uma física – uma física do pensamento[35]. A realidade mental constitui um conjunto de atividades auto-reguladas. Isto é já evidente pelo fato de que Hume e Spinoza explicam os processos imaginativos fazendo uso da noção de inércia. Ou seja, uma vez que o corpo humano é afetado por um corpo exterior, a mente humana considerará este corpo como presente, mesmo quando ele já estiver ausente, até que o corpo humano seja afetado de um modo que exclua a presença deste corpo[36]. A imagem perdurará enquanto não for excluída por outra imagem, tal como uma galera posta em movimento pelos remos manterá seu curso sem necessidade de nenhum novo impulso[37]. Além disso, em considerando especificamente os processos mentais, Hume afirma que as idéias são suscetíveis de serem postas em movimento e de serem mais ou menos combinadas com outras idéias, na medida da sua semelhança, contigüidade ou relação causal.

Está claro que, no decorrer do nosso pensamento e na transformação constante das nossas idéias, a imaginação passa facilmente de uma idéia para qualquer outra que se lhe assemelhe, e que esta qualidade, por si só, constitui para a fantasia um laço e associação suficiente. É também evidente que, sendo os sentidos, ao mudarem os objetos, obrigados a mudarem-nos regularmente, tomando-os tal como se encontram contíguos uns aos outros, deve a imaginação, devido ao longo costume, adquirir o mesmo método de pensar, percorrendo as partes do espaço e do tempo ao conceber os seus objetos[38]

Nada mais natural para Spinoza, para quem o indivíduo não pode ser separado das suas práticas. Assim, Spinoza, humeanamente, afirma que, “se o corpo humano foi, uma vez, afetado, simultaneamente, por dois ou mais corpos, sempre que, mais tarde, a mente imaginar um desses corpos, imediatamente se recordará também dos outros”[39]. O processo de associação de idéias é de algum modo independente da figura de uma subjetividade, de uma autoridade judicativa. Com efeito, a semiologia spinozana se estrutura de forma bastante semelhante ao que Hume afirma com respeito à imaginação:

Compreendemos, assim, claramente, por que a mente passa imediatamente do pensamento de uma coisa para o pensamento de uma outra que não tem com a primeira qualquer semelhança. Por exemplo, um romano passará imediatamente do pensamento da palavra pomum [maçã] para o pensamento de uma fruta, a qual não tem qualquer semelhança com o som assim articulado, nem qualquer coisa de comum com ele a não ser que o corpo desse homem foi, muitas vezes, afetado por essas duas coisas, isto é, esse homem ouviu, muitas vezes, a palavra pomum, ao mesmo tempo que via essa fruta. E, assim, cada um passará de um pensamento a outro, dependendo de como o hábito tiver ordenado, em seu corpo, as imagens das coisas. Com efeito, um soldado, por exemplo, ao ver os rastros de um cavalo sobre a areia (vestigia equi), passará imediatamente do pensamento do cavalo para o pensamento do cavaleiro e, depois, para o pensamento da guerra, etc. Já um agricultor passará (incidet) do pensamento do cavalo para o pensamento do arado, do campo, etc. E, assim, cada um dependendo de como se habituou a unir e a concatenar as imagens das coisas, passará de um certo pensamento a este ou àquele outro[40]

Ora, novamente podemos fazer uma alusão a Descartes. A noção de livre-arbítrio, tão cara a Descartes e à sua noção de método, parece ser uma realidade distante tanto da filosofia de Spinoza quanto da de Hume. Na passagem acima, Spinoza faz uso do termo latino incidere – aqui traduzido por passar – e isso não é banal, pois denota exatamente a ausência de uma autoridade hierarquizante, capaz de ordenar as imagens, e a presença de um dispositivo automático. Se o erro, tal como sustenta Descartes[41], sustenta-se num mau uso do livre arbítrio, para Spinoza, a vontade não pode ser separada do ato intelectivo e o erro não é senão privação. Com relação ao processo de significação, é forçoso notar que a parte que cabe ao sujeito é um ato necessário que se insere num processo natural. O intérprete é mais um ator do que o autor da cena em que ele é compelido a atuar. Ainda que o processo seja indisponível com relação ao sujeito, nem por isso se poderá dizer que ele seja caótico. Na verdade, como bem demonstra Hume, existem regras de associação que lhe garantem uma certa regularidade. Segundo Spinoza, o encadeamento de imagens depende sempre da constituição do intérprete – do indivíduo afetado –, ou seja, depende do seu ingenium, o que envolve tanto as suas idiossincrasias físicas quanto a sua vivência específica, mas não a sua deliberação ou outra faculdade misteriosa qualquer.

Podemos conceber, à luz de Spinoza e de Hume, uma completa rejeição da dúvida cartesiana; dúvida está que deve ser compreendida como voluntária e metódica, constituindo um paradigma centrado na subjetividade. Em Spinoza – e isso se nota desde o Tratado de Correção do Intelecto – trata-se antes da incerteza, que é propriedade do objeto. Nesse sentido, a hesitação da mente é uma flutuação entre dois objetos. A rigor, não se pode chamar esta hesitação de “dúvida” senão apelando para o seu sentido etimológico, enquanto caminho que se bifurca[42]. A dúvida voluntária e cartesiana é algo impossível. É uma contradição. Isso significa que não podemos resolver o problema da imaginação pensando em uma espécie de escapada em relação ao pensamento, como se dependêssemos de qualquer espécie de rota de fuga do automatismo das idéias. A imaginação é uma realidade incontornável.

III. O campo afetivo

Feitas estas considerações a respeito da realidade mental, percebe-se de que modo podemos conceber uma aliança intelectual entre os nossos autores. É à luz desta aliança que podemos rejeitar, simultaneamente, (i) qualquer pretensão de colocar a imaginação a ferros, na dependência de um mundo material que, a rigor, não pode existir senão do modo como o percebemos, (ii) bem como a crença em processos judicativos indeterminados que corram em paralelo com a atividade intelectual propriamente considerada. Dito isto, devemos enveredar em direção ao naturalismo, dessa vez, concebido no âmbito das paixões e dos afetos, pois se nenhuma pretensão voluntarista pode ser sustentada com relação à realidade mental, tampouco o poderá ser a respeito das paixões. Assim, estruturamos esta seção a partir da argumentação de Spinoza, procurando relacionar seu conteúdo com o pensamento de Hume a cada passo. Passemos em revista, portanto, dois postulados centrais para o naturalismo spinozano: (i) Deus não é um rei[43] e (ii) o homem não constitui um império dentro da natureza[44]. Ambos se referem ao voluntarismo, à concepção de instâncias (a divina bem como a humana) livres de determinações. Ao finalismo próprio dos decretos divinos, segue-se o livre arbítrio humano, que age a despeito de toda história, ao arrepio de qualquer fator externo. Em ambos os casos, é bem do domínio da causa final sobre a causa eficiente que estamos a falar. Ora, a formulação spinozana encontra algumas afinidades com o pensamento de Hume, sendo que tais afinidades devem ser cuidadosamente sopesadas, pois encerram importantes pontos de divergência.

Analisemos o primeiro postulado. Spinoza afirma que Deus não pode ser concebido como se fosse um regente da natureza (naturæ rector)[45], que tudo dispõe segundo sua vontade. Ora, Spinoza diz: “cada um julga as coisas de acordo com a disposição de seu cérebro, ou melhor, tomas as afecções de sua imaginação pelas próprias coisas”[46], do que Hume não discordaria. Assim, uma vez que os corpos humanos convêm em muitas coisas, nada mais natural que os homens delirem do mesmo modo e que comuniquem esses delírios uns aos outros. E porque os homens em tudo agem de acordo com a utilidade que aspiram gozar – nisso julgando-se livres e conscientes de seus desejos –, segue-se que eles, segundo a impregnação desta sensação na sua imaginação, concebem todos os acontecimentos segundo causas finais. Por tabela, dado que a todos parece estar a natureza organizada para suprir as necessidades e os desejos humanos, julga-se que alguém assim a dispôs para benefício dos homens. Todos os eventos independentes da ação humana são percebidos como meios para a realização de algum desígnio. Cristaliza-se, pois, uma concepção teleológica da natureza. À medida que se divinizam, os homens antropomorfizam Deus. Por certo, este postulado spinozano se liga à questão da inteligibilidade total de Deus – ou seja, na medida em que “a potência de Deus é a sua própria essência”[47], a necessidade imanente às coisas nos seria plenamente acessível –, o que, decerto, não seria algo facilmente aceito por um cético. Temos aqui, portanto, um importante ponto de distanciamento entre Spinoza e Hume. A denúncia da antropopatia à luz de Spinoza se distancia de Hume.

Por outro lado – e aqui passamos à análise do segundo postulado, que é mais importante para a delimitação das afinidades concernentes ao campo afetivo –, os homens, devido ao fato de serem conscientes de seus desejos e inclinações, julgam-se livres, isto é, acreditam deter uma potência absoluta sobre suas ações. Jamais inquirem sobre as causas que os levam a querer ou a inclinar-se por determinada coisa, satisfazendo-se com a idéia de que agem conforme suas volições, na medida de sua liberdade. A esta altura, entretanto, não se trata do modo como os homens consideram a natureza que os cerca, mas da maneira mesma como eles concebem a si mesmos. Ora, se os homens são livres, por que quererão o mal, isto é, aquilo que lhes é desvantajoso?[48] Por que, tão freqüentemente, ao arrepio de todo bom senso, empenham-se por satisfazer apetites destrutivos, apetites, aliás, que sabem ser destrutivos? Em primeiro lugar, é necessário afirmar que os homens não constituem potências absolutamente livres. Não é possível concebê-los como causas primeiras, alheias ao encadeamento de acontecimentos que atravessa a natureza. Como tudo o mais, os homens são determinados por outras coisas. Eles não constituem uma realidade intocável, sobranceira, um império. Na medida mesma em que estão submetidos às mesmas leis de determinação que abrangem as demais coisas singulares, os homens se revelam como potências abertas, isto é, permeáveis às determinações externas. Montaigne – e aqui introduzimos um outro pensador com quem Spinoza guarda fortes afinidades com relação ao naturalismo –, criticando como de hábito a pretensão humana e fiel ao seu naturalismo radical, afirma ser necessário “recolocarmo-nos entre as demais criaturas. Não estamos acima nem abaixo delas. Tudo o que existe sob os céus está sujeito à mesma lei e às mesmas condições”[49]. Do mesmo modo, podemos aproximar este posicionamento do de Hume: “será mais certo que dois pedaços lisos de mármore aderem um ao outro do que é verdade que dois jovens selvagens de sexo diferente copulam?”[50]. Mais adiante, Hume insiste neste ponto: “há um curso geral da natureza nas ações humanas, assim como nas operações do sol e do clima”[51].

Os homens não são potências livres e blindadas que fabricam coisas apenas de acordo com a autoridade suprema de suas vontades. Nesse passo, Spinoza está mesmo a refutar precocemente a distinção entre natureza e cultura, sustentando, em seu lugar, a existência de uma natureza de segundo grau[52]. Porquanto as leis da natureza são sempre as mesmas, é absurdo conceber tal império, tal exterioridade, “eis por que eu não digo que haja razão para pensar que os animais fazem instintivamente e determinadamente o que nós mesmos fazemos por vontade e invenção próprias”[53]. Hume, do mesmo modo, aponta para a correspondência entre as paixões entre os homens e entre os animais[54]. Em suma, Spinoza, juntamente com Montaigne e Hume, dá os contornos de uma antropologia descentrada[55]. Por conseguinte, não se pode atribuir a causa da impotência dos homens, da sua inconstância e da sua corrupção, a um desvio de sua natureza, mas antes à potência das coisas externas que os afetam. Não está no poder do homem deixar de fazer certas coisas unicamente porque elas são nocivas. Esse parece ser, aliás, um projeto que atinge o Tratado Político de Spinoza, em que o autor afirma ser inadequado conceber quimericamente a política, louvando uma natureza humana que em parte alguma existe e lamentando a perfídia da realidade. De fato, “como, por conseguinte, se crê que em todas as ciências que têm aplicação, mormente a política, a teoria é discrepante da prática, considera-se que não há ninguém menos idôneo para governar uma república do que os teóricos ou filósofos”[56]. A crítica anti-utópica, de inspiração maquiaveliana que atravessa o Tratado Político – e também o Tratado Teológico-Político – permite-nos desdogmatizar a leitura de Spinoza através da alusão às afinidades marcantes com Maquiavel, Montaigne e Hume.

Em segundo lugar, é evidente que Spinoza não está apenas a notar que os homens não estão no centro da criação. De fato, sua análise, na medida em que considera o humano, se espraia; põe em pauta também a relação da alma com o corpo. Assim, o que Spinoza busca problematizar é a suposição de que a alma humana possua um império absoluto sobre o corpo. Passamos, desta feita, do suposto domínio humano sobre a natureza à crença no domínio da razão sobre aquela parte da natureza que habita o homem, isto é, o seu corpo. Retomando alguns pontos anteriormente expostos, devemos lembrar que Spinoza esteve sempre muito atento à união da alma com o corpo. E isto em termos irredutíveis à articulação entre duas substâncias distintas, como sustentava Descartes[57]. Afinal, Spinoza sentencia que

a mente e o corpo são uma só e mesma coisa, a qual é concebida ora sob o atributo do pensamento, ora sob o da extensão. Disso resulta que a ordem ou a concatenação das coisas é uma só, quer se conceba a natureza sob um daqueles atributos, quer sob o outro e, conseqüentemente, que a ordem das ações e das paixões de nosso corpo é simultânea, em natureza, à ordem das ações e das paixões da mente[58]

De fato, mente e corpo constituem uma única natureza que se expressa de duas maneiras distintas, sob atributos diferentes. Nesses termos, deve ser dito que a mente humana não é senão a idéia do corpo humano existente em ato. Segue-se que, se o homem consiste de uma mente e de um corpo, este corpo não existe senão tal como o sentimos[59]. Daí que a mente se define como a idéia da estrutura e das variações de um conjunto muito composto, que é o corpo. Assim, quanto mais um corpo é apto a afetar os corpos exteriores e a ser por eles afetados, mais o espírito que dele é a idéia pode perceber simultaneamente um grande número de coisas. Não se pode negar, desse modo, que as idéias – ou seja, as mentes – se diferenciem entre si, pois será mais potente e envolverá mais realidade a idéia (ou mente) cujo objeto seja mais complexo, isto é, que abranja uma maior potência de afetar e de ser afetado.

É imperioso notar que aqui reside um ponto central concernente ao modo como Spinoza distingue o humano dos outros modos finitos. Não se trata de uma diferença absoluta, pois as mesmas relações determinam todos os modos – em conformidade com o naturalismo a que estamos a aludir. Trata-se, antes, de uma diferença relativa, uma vez que a todos os demais modos finitos se aplica esta linha de argumentação. Em suma, A complexidade da mente humana depende da complexidade do corpo humano. À medida que desconhecemos o corpo, a idéia dele – isto é, a mente – permanece obscura. O que diferencia os homens e os homens entre si é, então, uma aptidão, ou melhor, uma disposição à multiplicidade de afecções simultâneas.

Dito isso, devemos passar para um enunciado, a princípio, bastante insólito: “nem o corpo pode determinar a mente a pensar, nem a mente determinar o corpo ao movimento”[60]. Ou seja, as ações humanas não dependem da vontade da mente. Não se há de falar num decreto da mente sobre os impulsos corporais, como se a cada indivíduo fosse dado o poder de assujeitar a natureza que existe nele mesmo. Assim, por exemplo, Spinoza afirma que não podemos tomar decisão alguma sem que tenhamos uma lembrança prévia. E a memória é de ordem física. É resultado de vestígios, isto é, de marcações físicas[61]. Do mesmo modo, não está no poder da mente humana esquecer ou lembrar algo – o que depende de uma estrutura orgânica e extensa.

A união mesma da mente com o corpo permite que percebamos as decisões da mente como expressões dos apetites, isto é, da variação na disposição do corpo. Conseqüentemente, a decisão da mente, por um lado, e a determinação do corpo (seus apetites inclusive), por outro, são instâncias simultâneas e inseparáveis. Uma vez que se tratam, na verdade, da mesma coisa, Spinoza afirma que a chamamos de decisão, quando a consideramos sob o atributo do pensamento, e determinação, quando a consideramos sob o atributo da extensão. O corpo não é uma realidade amorfa e exclusivamente passiva. Muito pelo contrário, em razão das leis da natureza, o corpo realiza coisas inauditas, de tal modo que, a rigor, ninguém pode determinar ao certo o que um corpo pode. Sobre isso, aliás, Montaigne afirma: “é certo que nossa compreensão, nosso julgamento e as faculdades de nossa alma sofrem de conformidade com o corpo e suas contínuas alterações. Não temos o espírito mais atilado, a memória mais viva, o raciocínio mais rápido, quando a saúde é boa?”[62]. Do mesmo modo, deve ser dito, com Spinoza, que a estrutura do corpo humano supera de longe todas as coisas criadas pelo engenho humano. Ademais, “da natureza, considerada sob qualquer um de seus atributos, seguem-se infinitas coisas”[63]. Além de retirar o homem do centro da natureza, Spinoza retira o desígnio humano do centro das ações humanas. Todo finalismo e todo obscurantismo que se lhe segue são devidamente afastados da reflexão sobre as ações humanas. O caminho está livre para que digam, na Escócia, aliás – será coincidência? –, certo tempo depois, que a história é o resultado da ação humana, mas não do desígnio humano[64].

À luz das considerações feitas até aqui, poderíamos lançar algumas aproximações finais entre Spinoza e Hume, o que nos permitiria, do mesmo modo, sintetizar alguns dos argumentos que atravessam este texto. Com efeito, a denúncia da antropopatia em benefício de um naturalismo radical pode ser feita através da análise de dois pontos fundamentais, em que o acordo entre Hume e Spinoza desponta reveladoramente:

I. Ao dizer que “a razão é e deve ser apenas a escrava das paixões”[65], Hume coloca em cena a prioridade de uma economia afetiva em relação ao enquadramento racional, o que permite que o conectemos diretamente a Spinoza que, de forma comparável, afirma: “não nos esforçamos, queremos, apetecemos ou desejamos algo porque julgamos que é bom, senão que, ao contrário, julgamos que algo é bom porque nos esforçamos por ele, queremo-lo, apetecemos e desejamos”[66]. É verdade, portanto, que, porque desejamos certa coisa, esta se nos apresenta como útil. Ou seja, a razão não possui qualquer império sobre as paixões. Nisso, podemos perceber uma forte oposição ao cartesianismo que atribui à mente, dotada de livre arbítrio, a capacidade para interferir nas paixões e, mesmo, dominá-las. Estas considerações talvez expliquem o duplo interesse de Deleuze por Hume e por Spinoza. Afinal, uma das maiores virtudes de Hume – e também de Spinoza – consistiu em colocar o problema afetivo em primeiro plano, podendo ser considerado, de tabela, propagador de uma ética materialista.

II. Se a razão não pode operar em regime de exterioridade com relação ao campo afetivo, ou seja, se o campo afetivo é inescapável, não se pode abominar ou ridicularizar os afetos e as ações dos homens. Toda e qualquer saída voluntarista ao problema ético é posta em cheque. Em suma, é por não considerar adequado tratar dos desatinos e dos afetos humanos como sendo meros absurdos e defeitos que Spinoza se permite dizer que considerará “as ações e os apetites humanos exatamente como se fossem uma questão de linhas de superfícies ou de corpos”[67]. Novamente, insistimos numa aproximação com Hume, para o qual, “será suficiente (…) ter conseguido mostrar que, na produção e conduta das paixões, existe um certo mecanismo regular, que é suscetível de uma investigação rigorosa como as leis do movimento, da óptica, da hidrostática, ou de qualquer outra parte da filosofia natural”[68]. A análise das paixões não é objeto da sátira nem do desprezo de simples invectivas moralistas, ela é uma parte da ciência natural e tem lugar junto à geometria e à óptica.

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[1] Boss, Gilbert. La différence des philosophies: Hume et Spinoza. Zurich: Éditions du Grand Midi, 1982.

[2] Popkin, Richard. “Hume and Spinoza”. In: Hume Studies, V, 2 (nov. 1979): 65-93. Disponível em: http://www.humesociety.org. Acessado em 16 de abr. de 2009.

[3] Klever, Wim. “Hume contra Spinoza?”. In: Hume Studies, XVI, 2 (nov. 1990): 89-106. Disponível em: http://www.humesociety.org. Acessado em 16 de abr. de 2009.

[4] Idem. “More about Hume’s debt to Spinoza”. In: Hume Studies, XIX, 1 (abr. 1993): 55-74. Disponível em: http://www.humesociety.org. Acessado em 20 de jun. de 2009.

[5] Hume, David. Tratado da natureza humana. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2001, pp. 287-288 (Primeiro Livro, IV, 5).

[6] Bayle, Pierre [1697]. “Spinoza”. In: Dictionnaire historique et critique (Tomo XIII). Paris: Desoer, 1820, pp. 416-468.

[7] Sobre o conceito de antropopathos, v. Hobbes, Thomas. Os Elementos da Lei Natural e Política. São Paulo: Ícone, 2002, p. 76 (Tratado da natureza humana, cap. XI, 3).

[8] Spinoza, Benedictus de. Ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2007, p. 73 (É I, apêndice).

[9] Este é, fundamentalmente, o tema de todo o apêndice da primeira parte da Ética de Spinoza.

[10] Foucault, Michel. História da Loucura. São Paulo: Perspectiva, 2004, p. 142.

[11] De modo algum se deve inferir que acreditamos ser este o posicionamento de Descartes, que, a nosso juízo, deve mesmo ser considerado como um crítico dessa posição, mas, de todo modo, não o podemos tomar por um crítico tão radical quanto os três autores de que ora nos ocupamos.

[12] Isso não contradiz o fato de que a ordem e a conexão das idéias seja o mesmo que a ordem e a conexão das coisas, ou seja, o processo de produção das idéias é o mesmo que o processo de produção das coisas (Spinoza, Benedictus de. Ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2007, p. 87 [É II, prop. 7]).

[13] Cf. Spinoza, Benedictus de. Ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2007, p. 79 (É II, defs. 3 e 4).

[14] É importante não confundir Deus com um sujeito, o que resta evidente pela formulação Deus sive natura (Deus ou a natureza).

[15] Spinoza, Benedictus de. Ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2007, p. 85 (É II, prop. 5).

[16] Klever, Wim. “Hume contra Spinoza?”. In: Hume Studies, XVI, 2 (nov. 1990): 89-106. Disponível em: http://www.humesociety.org. Acessado em 16 de abr. de 2009. p. 90.

[17] Hume, David. Tratado da natureza humana. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2001, pp. 101 (Primeiro Livro, II, 6).

[18] Ibidem, pp. 102 (Primeiro Livro, II, 6).

[19] Spinoza, Benedictus de. Ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2007, pp. 147-149 (É II, prop. 49, esc.). V. também, a esse respeito, Macherey, Pierre. Introduction à l’Éthique de Spinoza. La seconde partie : la réalité mentale. Paris: Presses Universitaires de France (PUF), 1997, p. 389.

[20] É por esta razão que Spinoza se permite dizer que “quando alguém sabe algo, sabe, por isso mesmo, que o sabe, e sabe ao mesmo tempo, que sabe o que sabe, e assim até o infinito” (Spinoza, Benedictus de. Ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2007, p. 115 [É II, prop. 21, esc.]).

[21] Ibidem, p. 125 (É II, prop. 32).

[22] Ibidem, p. 125 (É II, prop. 33).

[23] Spinoza, Benedictus de. Ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2007, p. 97 (É II, prop. 13).

[24]Ibidem, p. 119 (É II, prop. 26).

[25] Lembramos novamente que a ordem e a conexão das idéias é a mesma que a ordem e a conexão das coisas.

[26] Spinoza, Benedictus de. Ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2007, p. 115 (É II, prop. 21, esc.).

[27] Consultar ibidem, p. 97 (É II, prop. 13). Seria importante consultar toda a proposição, dando especial destaque para o corolário, em que se diz que “o corpo humano existe tal como o sentimos”.

[28] Spinoza, Benedictus de. Ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2007, p. 107 (É II, prop. 16, cor. 2).

[29] Reale, Giovanni. A History of Ancient Philosophy: The Schools of the Imperial Age. Nova Iórque: State University of New York Press, 1990, p. 127.

[30] Cf. Vinciguerra, Lorenzo. Spinoza et le signe. Paris: Vrin, 2005, p. 110.

[31] Hume, David. Tratado da natureza humana. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2001, pp. 233-234 (Primeiro Livro, IV, 2).

[32] Cf. Klever, Wim. “Hume contra Spinoza?”. In: Hume Studies, XVI, 2 (nov. 1990): 89-106. Disponível em: http://www.humesociety.org. Acessado em 16 de abr. de 2009. p. 100.

[33] Cf. Hume, David. Tratado da natureza humana. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2001, pp. 235 (Primeiro Livro, IV, 2).

[34] Sobre a metáfora do autômato espiritual (automata spirituale), v. Spinoza, Benedictus de. “Traité de la réforme de l’entendement”. In: Moreau, Pierre-François (org.), Œuvres: Premiers Écrits. Paris: Presses Universitaires de France (PUF), 2009, p. 119 (§ 85). Sobre o tema, cf. Levy, Lia. L’automate spirituel. Uitgeverij Van Gorcum, 2000.

[35] Sobre o tema, v. Zourabichvili, François. Spinoza: Une physique de la pensée. Paris: Presses Universitaires de France (PUF), 2002.

[36] Spinoza, Benedictus de. Ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2007, pp. 107-109 (É II, prop. 17).

[37] Hume, David. Tratado da natureza humana. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2001, p. 236 (Primeiro Livro, IV, 2).

[38] Ibidem, pp. 39-40 (Primeiro Livro, I, 4).

[39] Spinoza, Benedictus de. Ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2007, p. 111 (É II, prop. 18).

[40] Ibidem, p. 113 (É II, prop. 18, esc.).

[41] Descartes, René. “Meditações”. In: Os pensadores, vol. XV. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 142.

[42] Moreau, Pierre-François. Spinoza. L’expérience et l’éternité. Paris: Presses Universitaires de France (PUF), 1994, p. 97.

[43] Spinoza, Benedictus de. Ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2007, pp. 63-75 (É I, apêndice).

[44] Ibidem, pp. 161-163 (É III, prefácio).

[45] Ibidem, p. 67 (É I, apêndice).

[46] Ibidem, p. 73 (É I, apêndice).

[47] Spinoza, Benedictus de. Ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2007, p. 63 (É I, prop. 34).

[48] V. ibidem, pp. 263-267 (É IV, prefácio).

[49] Montaigne, Michel de. “Ensaios”. In: Os pensadores, vol. XI. São Paulo: Abril Cultural, 1972, p 217 (II, 12).

[50] Hume, David. Tratado da natureza humana. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2001, p. 468 (Segundo Livro, III, 1).

[51] Ibidem, p. 469 (Segundo Livro, III, 1).

[52] Devemos notar aqui a vizinhança com a antropologia filosófica elaborada por Arnold Gehlen tanto no que concerne à sua perspectiva antropobiológica (Gehlen fala da permeabilidade, ou melhor, da abertura ao mundo [world-openess] enquanto característica própria dos homens) quanto na sua abordagem da civilização e da cultura. Assim, ele afirma: “No meu entendimento, cultura é o epítome de condições naturais ativamente dominadas, retrabalhas e usadas pelo homem” (In my understanding, culture is the epitome of natural conditions actively mastered, reworked and used by man. Gehlen, Arnold. Man: His Nature and Place in the World. Columbia University Press, 1988, p. 30.

[53] Montaigne, Michel de. “Ensaios”. In: Os pensadores, vol. XI. São Paulo: Abril Cultural, 1972, p 218 (II, 12).

[54] Hume, David. Tratado da natureza humana. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2001, p. 398 (Segundo Livro, I, 12).

[55] Cf. Cuzzani, Paola de. “Une anthropologie de l’homme décentré”. In: Philosophiques, XXIX, 1 (2002): 7-21.

[56] Spinoza, Benedictus de. Tratado Político. Lisboa: Círculo de Leitores, 2008, p. 73.

[57] De fato, permanece um tanto nebuloso o modo como alma e corpo se comunicam em Descartes. Sobre a distinção entre alma e corpo na obra deste autor, v. “Paixões da Alma”, pp. 239-243; “Discurso do Método”, pp. 69-70; “Meditações”, p. 142. Sobre a glândula pineal, que seria o lugar de conexão das duas substâncias, v. “Paixões da Alma”, p. 240. Todos In: Os pensadores, vol. XV. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

[58] Spinoza, Benedictus de. Ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2007, pp. 167-171 (É III, 2, esc.).

[59] Ibidem, p. 97 (É II, 13, cor.).

[60] Spinoza, Benedictus de. Ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2007, p. 167 (É III, 2).

[61] V. ibidem, p. 97 (É II, 13, post. 5).

[62] Montaigne, Michel de. “Ensaios”. In: Os pensadores, vol. XI. São Paulo: Abril Cultural, 1972, p. 265 (II, 12).

[63] V. Spinoza, Benedictus de. Ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2007, p. 169 (É III, 2, esc.).

[64] A citação literal é: “Todo passo e movimento da multidão, mesmo nos chamados anos iluminados, são realizados com igual cegueira com relação ao futuro; e nações topam com estados que são, de fato, o resultado da ação humana, mas não a execução de nenhum desígnio humano” (Every step and every movement of the multitude, even in what are termed enlightened ages, are made with equal blindness to the future; and nations stumble upon establishments, which are indeed the result of human action, but not the execution of any human design). Ferguson, Adam [1767]. An Essay on the History of Civil Society. Londres: T. Cadell, 1782, p. 205 (III, 2). Disponível em: http://oll.libertyfund.org. Acessado em: 18 de set. de 2008.

[65] Hume, David. Tratado da natureza humana. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2001, 482 (Segundo Livro, III, 3).

[66] Spinoza, Benedictus de. Ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2007, p. 177 (É III, 9, esc.).

[67] Ibidem, p. 163 (É III, prefácio).

[68] Hume, David. “Dissertação sobre as paixões”. In: Tratados Filosóficos, II. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005, p. 43 (seção VI).