Subsídios para a compreensão da desigualdade social e cultural entre homens e mulheres[1], por Rafael Huguenin

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Rafael Huguenin é doutorando em filosofia pela PUC-Rio. Professor de Filosofia da FAETEC e da Rede Pública Estadual.
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Resumo

Subsídios para a compreensão da desigualdade social e cultural entre homens e mulheres

Apesar de ganharem cada vez mais espaço no mercado de trabalho e na política, chegando inclusive à Presidência da República, as mulheres do Brasil ainda são vítimas de certas desigualdades sociais, econômicas e culturais. A grande incidência de casos de violência contra mulheres comprova esta desigualdade. No entanto, apesar das campanhas de conscientização, do trabalho de educação realizado pelas escolas e da criação de leis mais rígidas e específicas, a situação parece não mudar. Ora, se estas medidas não são suficientes, por si sós, para resolver o problema, então há causas mais profundas em jogo, causas estas que só podem ser esclarecidas por meio de um tipo específico de investigação, o único tipo de investigação capaz de abordar o problema em sua máxima abrangência e profundidade, a saber, a investigação filosófica.

Abstract

Subsidies for understanding the social and cultural inequality between men and women.

Despite gaining more space in the labor market and in politics, achieving even he presidency, the women of Brazil are still victims of certain social, economic and cultural inequalities. The high incidence of violence against women proves it. However, despite the awareness campaigns, the education work done by schools and the creation of stricter laws, the situation seems unchanged. Now, if these measures are not sufficient by themselves to solve the problem, then there are deeper causes at stake, causes that can only be clarified by means of a specific type of research, the only type of research that addresses the problem in its full breadth and depth, namely, philosophical inquiry.

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À Renata Gerk

1 – Colocação do problema: qual são as causas para a desigualdade social e cultural entre homens e mulheres?

Apesar de ganharem cada vez mais espaço no mercado de trabalho e na política, chegando inclusive à Presidência da República, as mulheres do Brasil ainda são vítimas de certas desigualdades sociais, econômicas e culturais. A grande incidência de casos de violência contra mulheres comprova esta desigualdade. No entanto, apesar das campanhas de conscientização, do trabalho de educação realizado pelas escolas e da criação de leis mais rígidas e específicas, a situação parece não mudar. Ora, se estas medidas não são suficientes, por si sós, para resolver o problema, então há causas mais profundas em jogo, causas estas que só podem ser esclarecidas por meio de um tipo específico de investigação, o único tipo de investigação capaz de abordar o problema em sua máxima abrangência e profundidade, a saber, a investigação filosófica. E, como o que nos reúne em torno deste texto e das discussões que ele pretende suscitar é justamente a investigação filosófica propriamente dita e não simplesmente cumprir de forma burocrática um programa mínimo qualquer, por que não realizar aqui, apoiado-se em um conjunto de conceitos oriundos de áreas diversas do conhecimento, uma verdadeira investigação filosófica?

Nossa tarefa consiste em investigar as causas profundas para a desigualdade social entre homens e mulheres. Sabemos que se trata de um problema grave, que parece mais aumentar do que diminuir. Já mencionamos também que esta desigualdade se manifesta sobretudo nos mais diversos tipos de violência contra a mulher, em especial na violência física. Se deixarmos de lado momentaneamente a indignação e a revolta diante destes casos, sentimentos inevitáveis, mas também capazes de nos cegar a razão crítica e o espírito de observação, podemos constatar que, na maioria das ocorrências, a violência em grau elevado é provocada por temores diretamente proporcionais. Afinal, combatemos com mais ódio aquilo que mais nos apavora e amedronta. E, como se trata aqui de violência do homem contra a mulher, somos obrigados a considerar a hipótese de que o homem, no fundo, teme a mulher. Ou seja, talvez violência e a ênfase veemente em uma diferença qualitativa entre homens e mulheres esconda um temor ancestral do homem, um medo profundamente arraigado. Neste ponto, as pesquisas dos mais diversos tipos de estudiosos e os conceitos que desenvolvem ao longo destas pesquisas são essenciais para compreendermos o problema. Segundo Otto Rank, psicanalista alemão, “o desprezo que o homem afeta pela mulher é um sentimento que tem sua fonte na consciência, mas, no inconsciente, o homem teme a mulher”[2]. Será verdadeira esta afirmação? E, caso seja verdadeira,  qual é a origem deste medo? Por que o homem, com toda sua força e agressividade, teria motivos para temer a mulher, caracterizada justamente por ser o “sexo frágil”?

Nas páginas que seguem, tentaremos reunir elementos para responder a estas perguntas, investigando as causas profundas para a desigualdade social entre homens e mulheres. Além disso, pretendemos mostrar também que a Filosofia não se resume a uma mera interpretação e discussão de textos antigos, devendo ser vista primordialmente como uma atividade que, a partir destes textos mesmos, tem como real objetivo compreender a realidade que nos cerca .

2 – Démeter e Perséfone

Mencionamos acima a hipótese de que o homem, no fundo, teme a mulher. Mas também ressaltamos que se trata de um medo profundamente arraigado, medo que talvez se esconda nas mais profundas camadas da mente masculina. Com isso, surge uma barreira em nossa investigação. Afinal, como podemos investigar de maneira objetiva este medo, se ele se esconde nos recônditos mais remotos da subjetividade? Neste ponto, podemos recorrer aos mitos com os quais, segundo a psicanálise, o próprio Inconsciente parece se manifestar. Se levarmos em conta os aspectos simbólicos do mito em geral, que, longe de ser apenas uma fábula ou uma história fantástica, representa a expressão de verdades profundas da alma, então podemos utilizá-los como elementos de nossa investigação. Neste sentido, tomados como expressões de arquétipos, comuns a todos os homens, os mitos fornecem acesso ao inconsciente coletivo. Segundo o psicanalista Jung, “o inconsciente coletivo é constituído pela soma dos instintos e dos seus correlatos, os arquétipos. Assim como cada indivíduo possui instintos, possui também um conjunto de imagens primordiais”[3]. Dentre estas imagens primordiais, o mito de Démeter e Perséfone nos fornece uma boa via de acesso ao problema em questão.

Perséfone, também conhecida como Kóre, era filha de Démeter, deusa mãe da terra cultivada e da agricultura. Em grego, Démeter (Dhmh¯thr) foi compreendida como uma expressão equivalente a gh¤ mh¯thr, ou seja, terra mãe[4].  Pode ser considerada, portanto, a Terra-Mãe, a matriz universal e mãe de todas as sementes. O culto a Démeter é de caráter essencialmente agrário, se ligando portanto ao ritmo constante das estações do ano e do ciclo de plantio e colheita dos alimentos, em especial do trigo. Aliás, foi Démeter quem ensinou aos homens a técnica de semear e colher o trigo, além da fabricação do pão. Segundo a feminista Rose Marie Muraro, “os primeiros humanos a descobrir os ciclos da natureza foram as mulheres, porque podiam compará-los com o ciclo do próprio corpo”[5]. O mito ressalta justamente este relacionamento entre a feminilidade e a fertilidade em geral.  A ligação de Démeter com sua filha Perséfone era tão forte que ambas eram denominadas simplesmente As Deusas, objetos centrais nos Mistérios de Elêusis. Ambas, mãe e filha, trabalhavam juntas cuidando do crescimento das plantas.

Muito cedo, ainda na adolescência, manifestou-se a grande beleza de Perséfone, beleza esta que enfeitiçou a vários deuses do Olimpo. Apesar de ter sido cortejada por Hermes, Ares, Apolo e Hefesto, cada qual oferecendo o melhor presente que podia, Perséfone foi escondida por sua mãe, sendo criada longe do convívio com os outros deuses. Hades, no entanto, sentindo-se inconformado, raptou Perséfone e a conduziu para o seu domínio, o mundo subterrâneo, transformando-a em sua rainha. Démeter ficou inconsolável com o sumiço da filha e se descuidou de sua tarefa, de modo que as terras se tornaram estéreis, provocando escassez de alimentos e fome. Diante destas consequências terríveis, Zeus ordenou a libertação imediata de Perséfone. Deste modo, Hades não tinha escolha, teria que libertar Perséfone de qualquer maneira. Mas, utilizando-se de um artifício, obrigou Perséfone a comer sementes de romã antes de libertá-la. Com isso, ela se tornou definitivamente presa ao local onde comeu as sementes e ao marido, sendo obrigada assim a passar quatro meses com Hades nos subterrâneos e oito meses com a mãe no Olimpo. Esta alternância simboliza o ciclo das estações, a partir do qual se organiza o trabalho de plantio e colheita. Quando Perséfone sai do Hades em direção Olimpo, no período correspondente à primavera, emergem também da terra os novos brotos dos vegetais. O segundo período, corresponde ao outono, quando Perséfone retorna ao mundo subterrâneo, corresponde simbolicamente ao período de plantio, no qual os grãos são enterrados.

Apesar das inúmeras interpretações e associações simbólicas sugeridas pelo mito resumido acima, nosso interesse aqui incide sobre um aspecto específico deste mito, um aspecto que, por sua vez, se insere em um simbolismo maior, a saber, as relações entre alimentação e sexualidade. Estas relações, neste caso específico, se expressam no poder de fixação dos alimentos, em especial no simbolismo da romã e dos demais frutos com muitas sementes, símbolos por excelência de fecundidade e de prole numerosa. No contexto do mito de Perséfone, a semente de romã que foi obrigada a ingerir simboliza, em primeiro lugar, que ela se tornou presa ao marido, o que mostra o poder de fixação de determinados alimentos. Em segundo lugar, como ela foi obrigada a comer a semente, o mito revela também a repressão que o homem exerce sobre a mulher por meio da alimentação. Ora, como a semente de romã é um símbolo por excelência de fertilidade, fica claro o caráter sexual do poder de fixação dos alimentos, por um lado, e entre sexualidade e repressão, por outro lado. Neste ponto de nossa investigação, nos será extremamente útil o trabalho do professor Junito de Souza Brandão, que acentua exatamente estas relações:

Deve existir uma ligação biológica e real entre alimentação e sexualidade (…) Eis por que, muitas vezes, o desejo sexual é encarado como um aspecto da necessidade de alimentação. O próprio comportamento normal do ser humano atesta uma característica que representa o liame entre alimentação e sexualidade: ‘a dentada de amor’, por parte da mulher, no momento do coito. Refere-se o fato, ao que tudo indica, a um comportamento instintivo, sem nenhuma caráter sádico. Tratar-se-ia, apenas, e inconscientemente, de um ato simbólico de devorar o macho[6].

Esse relacionamento entre sexualidade e alimentação parece se confirmar, segundo ainda Junito de Souza Brandão, a partir de um fenômeno muito comum entre outras espécies animais: o macho ser devorado pela fêmea logo após o ato sexual, como no caso da borboleta e do louva-a-deus, por exemplo. Deste modo, caracterizar a fêmea sedutora como uma “mulher fatal”, muito comum no cinema e na televisão, assume um caráter literal nestas espécies animais. Trata-se de uma convergência de instintos que ainda subsiste no ser humano:

No fundo, o homem receia ser devorado pela mulher. É o interior da vagina dentada, identificada com a boca, suscetível, por isso mesmo, de cortar o membro viril, no momento da penetração (…) Trata-se, ao que parece, do complexo de castração. E é tal este temor, que, na primeira noite de núpcias, nas culturas primitivas, o noivo era ou ainda é substituído por um estrangeiro, um prisioneiro de guerra ou um personagem importante, como o sacerdote e o rei[7].

Outros mitos também registram o caráter devorador das figuras femininas, como, por exemplo, a Esfinge, as Harpias, as Danaides, a Empusa, as Sereias, a Lâmia e também, em certo sentido, Pandora, que, como presente de casamento a Prometeu, ofereceu uma caixinha que, uma vez aberta, deu origem a todos os males que afligem os homens. A profusão destes mitos, todos com função de reafirmar o caráter devorador e perigoso das mulheres, parece sustentar a hipótese segundo a qual o homem, no fundo, teme a mulher. Segundo ainda o professor Junito de Souza Brandão:

Parece realmente que o mito da fêmea devoradora é um mecanismo de defesa arquitetado pelo homem. É a ‘liquidação de complexo por um mecanismo semelhante’: similia similibus curantur, os semelhantes se curam com semelhantes. Trata-se de uma autodefesa do macho. Talvez a atividade sexual da mulher castre o homem. “O medo de ser enfraquecido pela mulher e sua estratégia sexual”, a lassidão e uma certa fadiga que se seguem após o coito impediriam a realização de atos viris e até mesmo o sucesso nos empreendimentos e negócios a que se dedica o homem[8].

 

Esse mecanismo de defesa elaborado pelo homem, além das outras informações reunidas acima, reforçam a ideia de que o homem, no inconsciente, teme a mulher. A atividade sexual da mulher, muito mais complexa e multifacetada, “castra” o homem, sobretudo quando se coloca em evidência a sua capacidade ou intensidade, que muitas vezes chega a provocar ansiedade e temor[9]. Este temor o conduz a “vingar-se” do complexo de castração. Segundo Monique Augras, “o sistema patriarcal tende então a ‘eliminar a mulher’”[10]. Esta vingança e eliminação se manifesta, entre outras coisas, por meio da reiteração constante, nos mitos, do caráter devorador e perigoso das fêmeas. Mas para que esta situação se concretize, para que seja possível ressaltar, por meio dos mitos, uma visão negativa da mulher, o ambiente social e cultural do qual os próprios mitos emergem precisam ser controlados pelo poder masculino.

No entanto, até aqui, nossa investigação recorreu apenas aos mitos, em especial ao seu caráter simbólico, utilizando-os como vias de acesso à própria origem profunda do problema, mas sem relacioná-los com eventos históricos determinados. Por meio dos mitos, tentamos verificar quais são as causas profundas para o medo que o homem nutre em relação às mulheres, nossa hipótese para explicar as próprias causas para a violência contra a mulher. As informações reunidas sugerem que este temor tem como origem o reconhecimento não propriamente da superioridade, mas do próprio estatuto diferenciado da mulher, fundamentado na sua sexualidade peculiar e sobretudo na sua capacidade, outrora considerada sagrada, de gerar a vida[11].  Com isso, a origem do temor que o homem sente pela mulher nos parece agora mais claro, ainda que não totalmente esclarecido. Para uma compreensão mais completa e abrangente, precisamos investigar o próprio contexto histórico que possibilitou a fixação determinada dos mitos que examinamos.

 

3 – Matriarcado, Propriedade Privada e a ascensão do Poder Patriarcal

Uma sociedade matriarcal é uma forma de organização social na qual as mulheres exercem importantes papéis políticos e culturais. Segundo a Enciclopédia Britânica, “matriarcado” pode ser compreendido como um “sistema social hipotético no qual a mãe ou uma anciã possuía autoridade absoluta sobre o grupo familiar; e, por extensão, no qual uma ou mais mulheres (como em um conselho), exercem um nível similar de autoridade sobre a comunidade como um todo.”[12] Este sistema social, segundo alguns especialistas do século XIX, teria existido na Europa e na Ásia desde 35.000 a.C. até meados de 4.000 a.C, momento a partir do qual diversos acontecimentos modificaram profunda e progressivamente as bases materiais que sustentavam o matriarcado.

Considerada por muitos uma sociedade na qual não existia guerra, violência sistemática, classes sociais ou estruturas rígidas de poder, a hipótese de uma sociedade matriarcal começou a ganhar força a partir de 1861, quando o suíço Johann Bachofen publicou o livro Mother Right: An Investigation of the Religious and Juridical Character of Matriarchy in the Ancient Word. Neste livro, que exerceu forte influência nos antropólogos e arqueólogos na virada para o século XX, Bachofen defende a ideia de que, na pré-história, predominava originalmente o matriarcado. Quando os arqueólogos começaram a descobrir estátuas femininas conhecidas como vénus, estas descobertas logo foram associadas a uma representação da deusa mãe, supostamente a divindade mais importante em uma sociedade matriarcal. Atualmente, apesar da comunidade científica rejeitar a hipótese de um passado histórico matriarcal, a ideia continua a alimentar pensadoras e grupos feministas radicais, assim como adeptos de religiões neopagãs. Em vista de nossa investigação, no entanto, a hipótese deve ser levada em conta. Afinal, a despeito da ausência de comprovação científica desta hipótese específica, sabemos que a maneira como os homens representam a si mesmos e interpretam o seu passado revela também o seu estado atual e a maneira como veem a si próprios.

A hipótese do matriarcado, de uma sociedade pacífica e igualitária nas quais as mulheres exerciam importantes papéis sociais também encontra apoio na tradição marxista. O livro A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, de Friedrich Engels, publicado em 1884, apenas um ano após a morte de Karl Marx, se propõe a interpretar pesquisas de antropólogos da época sob a perspectiva da “concepção materialista de história”. Para Friedrich Engels, na fase de “comunismo primitivo” pressuposta pelo marxismo, antes do surgimento da propriedade privada, não existia ainda uma grande diferença de estatuto entre homens e mulheres:

uma das ideias mais absurdas que nos transmitiu a filosofia do século XVIII é a de que na origem da sociedade a mulher foi escrava do homem. Entre todos os selvagens e em todas as tribos que se encontram nas fases inferior, média e até (em parte) superior da barbárie, a mulher não só é livre como, também, muito considerada[13].

Em que consiste esta “consideração”  da mulher? Ou seja, em que consiste esse estatuto social que garante à mulher mais dignidade? Como se organizavam socialmente as diferenças biológicas e os relacionamentos entre homens e mulheres? Ao lado da ausência de propriedade privada, não existia também nesta época o sancionamento da monogamia como a única forma de relacionamento sexual aceita, de modo que as relações sexuais se caracterizavam por uma certa liberdade. Ora, por razões óbvias, este contexto não favorece uma compreensão precisa do vínculo entre a relação sexual e a maternidade, de modo que o fato de que as mulheres produziam crianças era visto muitas vezes como algo misterioso e sagrado, sem nenhuma ligação claramente identificada com o homem ou com os homens com os quais a mãe teve relações sexuais[14]. Assim, laços sanguíneos não tinham muita importância, uma vez que noções como “mãe”, “pai” e “irmão” assumiam valores completamente distintos em relação aos nossos. Com isso, “os filhos pertenciam às mães” e, por extensão, aos clãs e famílias nos quais viviam:

O estudo da história primitiva revela-nos (…) um estado de coisas em que os homens praticam a poligamia e suas mulheres a poliandria, e em que, por consequência, os filhos de uns e outros tinham que ser considerados comuns[15].

Em determinado momento do desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção, em especial com o surgimento da domesticação de animais e da criação de gado, ocorre um crescente acúmulo de riqueza. Este acúmulo de riqueza acaba, inevitavelmente, exigindo a criação de novas divisões de trabalho, divisões estas que dão ao homem maior possibilidade de aquisição e acúmulo dos meios de produção, pois era dele a tarefa de obter comida e os instrumentos de trabalho necessários para este propósito. Ele portanto tinha a posse dos instrumentos de trabalho, assim como a mulher possuía seus bens domésticos. Inicialmente, este acúmulo masculino de propriedade coexistia com uma linha de descendência materna, ou seja, os filhos pertenciam à família de suas mães, enquanto os pais, por sua vez, continuavam pertencendo à suas próprias famílias distintas. No entanto, a partir do período neolítico, quando o homem passou a compreender melhor o seu papel na reprodução biológica, tornou-se possível controlar a sexualidade feminina e a reprodução, levando a uma modificação no equilíbrio entre homens e mulheres.

Estes fatos, segundo Engels, passaram a gerar grande instabilidade. Na medida em que aumentava o acúmulo de propriedade nas mãos dos homens, eles passaram a se tornar cada vez mais poderosos. Este poder proveniente do acúmulo de propriedade, juntamente com a possibilidade do controle da sexualidade feminina, em especial da reprodução e da paternidade, tornou possível aos homens inverter[16], em favor de si mesmos e de seus próprias filhos biológicos, a ordem até então tradicional de herança, provocando assim a queda do direito materno:

O desmoronamento do direito materno, a grande derrota histórica do sexo feminino em todo o mundo. O homem apoderou-se também da direção da casa; a mulher viu-se degradada, convertida em servidora, em escrava da luxúria do homem, em simples instrumento de reprodução. Essa baixa condição da mulher, manifestada sobretudo entre os gregos dos tempos heroicos e, ainda mais, entre os dos tempos clássicos, tem sido gradualmente retocada, dissimulada e, em certos lugares, até revestida de formas de maior suavidade, mas de maneira alguma suprimida[17].

Com isso, tem início o patriarcado, sistema social caracterizado sobretudo pelo estabelecimento de linhas patriarcais de descendência e herança, da propriedade privada e, pela primeira vez na história, da submissão da mulher ao homem. Convém notar também o fato que de este rebaixamento da mulher, mesmo suavizado, encontra claros paralelos em diversas representações religiosas da mulher, como no exemplo de Eva, no judaísmo, ou mesmo no já mencionado mito de Pandora, na religião grega. A instauração deste rebaixamento, além de garantir, por meio da paternidade indiscutível, que os herdeiros dos bens acumulados são verdadeiramente os filhos biológicos de seus pais, também serviu de ponto de partida para a todas as opressões de classe que surgiram posteriormente. Segundo Engels,

A primeira divisão do trabalho é a que se fez entre o homem e a mulher para a procriação dos filhos[18]. Hoje posso acrescentar: o primeiro antagonismo de classes que apareceu na história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre o homem e a mulher, na monogamia; e a primeira opressão de classes, com a opressão do sexo feminino pelo masculino. A monogamia foi um grande progresso histórico, mas, ao mesmo tempo, iniciou, juntamente com a escravidão e as riquezas privadas, aquele período, que dura até nossos dias, no qual cada progresso é simultaneamente um retrocesso relativo, e o bem-estar e o desenvolvimento de uns se verificam às custas da dor e da repressão de outros. É a forma celular da sociedade civilizada, na qual já podemos estudar a natureza das contradições e dos antagonismos que atingem seu pleno desenvolvimento nessa sociedade[19].

Foi somente com o surgimento de uma noção estrita de paternidade, portanto, que os homens passaram exercer o controle sobre a mulher e considerar os filhos dela como sua propriedade, dando início assim a uma verdadeira modificação nas estruturas sociais até então vigentes, dando origem ao que podemos chamar de patriarcado. Em um contexto social no qual existe a propriedade privada e as linhas de transmissão de heranças se dão pelo lado paterno, esta primeira divisão de trabalho assume o caráter de uma antagonismo de classes, no qual as mulheres são oprimidas pelos homens por meio da imposição da  monogamia e do rígido controle de sua sexualidade.

Com isso, a tradição marxista oferece mais elementos para nossa investigação. Curiosamente, a concepção de história apresentada por Engels parece confirmar materialmente aquilo que o mito de Perséfone, em especial no que diz respeito às relações entre sexualidade, alimentação e repressão da mulher nos sugeriu de modo simbólico. No mito, vimos que, ao ser obrigada a comer a semente de romã, símbolo de fertilidade, Perséfone ficou invariavelmente presa ao marido. Na visão de Engels, a divisão do trabalho feita entre homem e mulher com a finalidade exclusiva de procriação dos filhos forneceu, juntamente com o o surgimento da propriedade privada, não só a base para a exploração da mulher, mas o próprio modelo que deu origem a todas as divisões de classe que surgiriam posteriormente. Neste sentido, a reiteração constante, nos mais diversos mitos, do papel devorador e negativo das mulheres, talvez funcione como uma espécie de justificativa para a opressão das mulheres descrita por Engels e também para a violência atual contra as mulheres.

4 – Conclusão

Antes de concluir, façamos um breve resumo do que foi colocado até aqui. Propusemos inicialmente que um medo profundamente arraigado é a principal causa para a violência do homem contra a mulher. O exame dos mitos, na sequência, sugeriu que este temor tem como origem o reconhecimento do estatuto diferenciado da mulher, fundamentado em uma sexualidade peculiar e na capacidade de gerar a vida. Para compreender as condições históricas que possibilitaram a fixação dos mitos examinados, consideramos em seguida a hipótese, elaborada a partir de um aspecto da tradição marxista, segundo a qual, na origem da humanidade, existiu não apenas uma certa igualdade de estatuto entre homens e mulheres, mas talvez até mesmo um matriarcado. No entanto, como já mencionamos, a hipótese do matriarcado recebeu inúmeros ataques nas últimas décadas e não é mais aceita pela maioria dos estudiosos no campo da História e da Antropologia[20]. Ou seja, não existem indícios seguros de que existiu realmente uma sociedade caracterizada pela preponderância política e social da mulher. Rosemary Radford Ruether, por exemplo, em Godessess and divine feminine, questiona, entre outras coisas, a ideia que parece fundamentar a própria hipótese do matriarcado, a saber, uma visão “essencialista” da mulher compreendida intrinsecamente como nutriz e geradora de vida, ao lado de uma visão de homem como essencialmente militarista e agressivo[21]. No entanto, em outros campos, como na literatura[22], na produção dos adeptos das religiões neopagãs e principalmente nos programas políticos de grupos feministas radicais[23], a noção de um sistema social no qual as mulheres exercem o papel central ganhou espaço nos últimos anos.

Mas não precisamos ir tão longe ou tão fundo quando se trata de destacar o poder feminino e o caráter positivo do exercício deste tipo de poder. Basta constatarmos o fato de que, nos subúrbios e comunidades carentes do Brasil, assim como em todos os países pobres do mundo, encontramos inúmeras famílias literalmente matriarcais. A luta das mães trabalhadoras que, mesmo com dificuldades extremas, criam sozinhas seus filhos é a maior prova do poder feminino, poder este que deve não ser combatido ou se tornar preponderante, mas somar-se aos outros poderes em prol do bem comum. Neste sentido, se há conclusão a ser feita em um tipo de investigação na qual não existem respostas definitivas, a única conclusão relevante aqui diz respeito ao  próprio caráter da diferenças entre homens e mulheres que tentamos examinar. Se, como quer Engels, esta diferença pode ser vista como o “primeiro antagonismo de classes que apareceu na história”, compreender de modo preciso como ela se desdobrou historicamente e ainda persiste nas mentalidades e estruturas sociais nos permite lutar de modo mais eficiente a única luta que pode acabar definitivamente com a violência contra a mulher: a luta de classes.


[1] Texto apresentado no lançamento do NEAM (Núcleo de Estudos e Apoio à Mulher) no Instituto Federal Fluminense de Campos dos Goytacazes, em 03 de Julho de 2011.

[2] RANK, Otto. O Traumatismo do Nascimento. Rio de Janeiro: Marisa Editora, 1934, p. 125.

[3] JUNG. A Natureza da Psiquê. Petrópolis: Vozes, 1984, p. 12.

[4] A etimologia da palavra Dhmh¯thr é muito discutida. Ver, a esse respeito, BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. V. 1. Petrópolis: Vozes, 1993, p. 283.

[5] MURARO, Rose Marie. Breve Introdução Histórica ao Malleus Maleficarum. In: KRAMER, Heinrich. & SPRENGER, James. Malleus Maleficarum. Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Tempos, 1991, p. 5-17.

[6] BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. V. 1. Petrópolis: Vozes, 1993, p. 307-308.

[7] Ibid., p. 308.

[8] Ibid., p. 311-310.

[9] A persistência deste mito se comprova, por exemplo, no Malleus Maleficarum, o manual oficial da Inquisição para a caça às bruxas, escrito em 1484. O capítulo VIII se intitula “De como as bruxas, por assim dizer, Privam um Homem de seu Membro Viril” (In: KRAMER, Heinrich. & SPRENGER, James. Malleus Maleficarum. Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Tempos, 1991, p. 248)

[10] AUGRAS, Monique. A Dimensão Simbólica. Petrópolis: Vozes, 1983, p. 99.

[11] Segundo Rose Marie Muraro, o reconhecimento do caráter sagrado da fertilidade feminina gerou a “inveja do útero”, complexo que deu origem a dois ritos universalmente encontrados: o fenômeno da couvarde, no qual as mulheres começam a trabalhar dois dias após o parto enquanto o homem fica de resguardo com o bebê e os rito de iniciação dos homens, que tinham a função de marcar, de modo artificial e ritualizado, a passagem para a vida adulta que a menstruação, nas mulheres, marca de modo natural. Ver, a esse respeito,  MURARO, Rose Marie. Breve Introdução Histórica ao Malleus Maleficarum. In: KRAMER, Heinrich. & SPRENGER, James. Malleus Maleficarum. Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Tempos, 1991, p. 5-17.

[12] “Matriarchy”. In: Encyclopedia Britannica, http://www.britannica.com/EBchecked/topic/369468/matriarchy.

[13] ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p. 50-51.

[14] Segundo Rose Marie Muraro, “nem nas sociedades de coleta nem nas de caça se conhecia função masculina na procriação. Também nas sociedades de caça a mulher era um ser sagrado, que possuía o privilégio dado pelos deuses de reproduzir a espécie”. MURARO, Rose Marie. Breve Introdução Histórica ao Malleus Maleficarum. In: KRAMER, Heinrich. & SPRENGER, James. Malleus Maleficarum. Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Tempos, 1991, p. 5-17.

[15] Op. Cit., p. 49.

[16] Segundo Suzan Himmelweit, o argumento de Engels contém duas importantes assunções não explicadas: por que a divisão do trabalho tomou a forma que tomou de modo a possibilitar aos homens adquirir a propriedade dos meios de produção? Por que surgiu nos homens o impulso para destinar sua propriedade aos seus filhos biológicos? Segundo Himmelweit, a posição de Engels parece se apoiar em um “naturalismo inadvertido”. A divisão do trabalho, por meio da qual os homens tomaram o controle da propriedade, se fundamenta em termos de uma suposta domesticidade natural da mulher em virtude de seu papel na criação dos filhos, domesticidade esta que, curiosamente, corresponde ao papel considerado “natural” para a mulher no século XIX. O mesmo para a segunda assunção. Ver, a esse respeito, HIMMELWEIT, Suzan. Reproduction and the materialist conception of history: A feminist critique. In:  CARVER, Terrell (ed.). The Cambridge Companion to Marx. Cambridge: Cambridge University Press, 2006, p. 196-195.

[17] ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p. 49.

[18] Griffo nosso.

[19] Op. Cit, p. 70-71.

[20] Ver, por exemplo, BAMBERGER, Joan. The Myth of Matriarchy: Why Men Rule in Primitive Society. In: ROSALDO, Michelle Zimbalist & LAMPHERE, Louise (ed.). Woman, Culture and Society. Stanford: Stanford University Press, 1994, p. 263-280.  O autor critica, entre outras coisas, a falta de evidências concretas a favor da hipótese do matriarcado, que se apoiaria inicialmente em fontes eminentemente literárias.

[21] De acordo com a própria autora, “I also questioned the ‘essentialist’ view of the female as embodiment of nurturing, life-a‹rming virtues, vis-a-vis the male as paradigm of aggressive militarism, that often lurked behind these modern Goddess spiritualities.” In: RUETHER, Rosemary Radford. Goddesses and Divine Feminine. A Western Religious History. Berkeley: University of California Press, 2005, p. 4.

[22] A escritora Monique Wittig, a esse respeito, publicou um romance intitulado Les Guérillères (Paris: Les Editions de Minuit, 1969) , no qual descreve um “Estado Feminino”.

[23] Em Scapegoat: The Jews, Israel, and Women’s Liberation (New York: Free Press, 2000), a feminista Andrea Dworkin defende a criação de um Estado somente para mulheres, semelhante ao Estado de Israel, capaz de servir como refúgio potencial às mulheres.