Fraternidade e Solidariedade na Era das Revoluções, por Chiara Araujo Gomes

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Chiara Araujo é doutoranda em ciência política pelo IESP-UERJ.
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Resumo

Fraternidade e solidariedade na Era das Revoluções

O período compreendido entre os anos de 1789 e 1848 já foi caracterizado como Era das Revoluções. Eric Hobsbawm afirma que este período foi marcado por uma dupla revolução. Uma revolução no mundo da produção, iniciada na Inglaterra e uma revolução política, que teve como palco a França. As metamorfoses que o mundo social sofreu a partir destes eventos singulares fizeram emergir personagens, que passaram a ter uma importância crucial na vida destes países e nas transformações políticas e sociais que aconteceriam posteriormente. Esses novos atores são os trabalhadores e as massas urbanas, que tiveram suas vidas diretamente afetadas pelas revoluções e aos poucos foram se organizando a fim de reagir às suas consequências negativas.

Abstract

Fraternety and solidarity in the Age of Revolutions

The time period between the years of 1789 and 1848 has been characterized as the Age of Revolutions. Eric Hobsbawm argues that this period was marked by a double revolution: a revolution in the production world, in England, that started a political revolution, which led to the French stage. The transformations the social world has suffered due to these unique events brought the emergence of characters which have gained a crucial importance in the life of these countries, and in the political and social changes that would take place later. These new actors are the workers and the urban masses, whose lives were directly affected by the revolutions and that slowly got organized in order to respond to its negative consequences.

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O período compreendido entre os anos de 1789 e 1848 já foi caracterizado como Era das Revoluções. Eric Hobsbawm afirma que este período foi marcado por uma dupla revolução. Uma revolução no mundo da produção, iniciada na Inglaterra e uma revolução política, que teve como palco a França. As metamorfoses que o mundo social sofreu a partir destes eventos singulares fizeram emergir personagens, que passaram a ter uma importância crucial na vida destes países e nas transformações políticas e sociais que aconteceriam posteriormente. Esses novos atores são os trabalhadores e as massas urbanas, que tiveram suas vidas diretamente afetadas pelas revoluções e aos poucos foram se organizando a fim de reagir às suas consequências negativas.

O surgimento desses novos sujeitos políticos foi decisivo para que os benefícios alcançados por esta dupla revolução pudessem progressivamente se estender a maiores parcelas da população destes dois países. No século XIX grande parte dos avanços em termos de direitos, conquistados na Inglaterra e na França, é resultado do empenho destes novos atores. A associação dos trabalhadores e também das massas urbanas se tornou uma estratégia de luta fundamental no alvorecer do século XIX.

O objetivo deste ensaio é chamar atenção para a presença das ideias de fraternidade e solidariedade nos movimentos dos trabalhadores, que lutavam principalmente por melhores condições de vida, e no socialismo utópico, que reagiu aos resultados nocivos das transformações econômicas e sociais, propondo novas formas de organizar a sociedade.

Fraternidade e solidariedade entre os trabalhadores

Os ideais de fraternidade e solidariedade foram relevantes entre os trabalhadores ingleses e franceses nas últimas décadas do século XVIII e primeira metade do século XIX. A organização dos trabalhadores em sindicatos foi precedida por associações de tipos variados, muitas das quais estruturadas em torno destes princípios. Em muitos dos exemplos apresentados, os termos fraternidade ou solidariedade não são utilizados explicitamente, mas as ideias de uma origem comum, de compartilhamento de interesses e de interdependência podem ser lidas nesta chave.

De acordo com Thompson[1], os valores coletivistas foram a marca distintiva da classe operária inglesa no século XIX. Esse coletivismo era defendido no campo político, mas também fazia parte do cerimonial dos sindicatos e da retórica moral. Ele se manifestou em vários níveis tais como a vida comunitária, as associações de trabalhadores e as primeiras experiências cooperativistas.

Nesse sentido, segundo Thompson, é possível constatar, nos anos trinta do século XIX, que “o anelo comunitário reviveu, e a linguagem da racionalidade foi transposta para a da fraternidade”[2]. Os tecelões de Lancashire, entre os anos de 1816 e 1820, são apresentados pelo autor como exemplo de radicalização dos ideais comunitários. Para Thompson, o apego a um forte igualitarismo social fazia com que compartilhassem não apenas os bons momentos, mas também os momentos de sofrimento. De acordo com o autor, “eles apelavam pelos direitos essenciais e por noções elementares de solidariedade e conduta humanas, ao invés de interesses setoriais. Exigiam o aprimoramento da comunidade como um todo”[3].

Thompson[4] ressalta que durante a Idade Média o mundo do trabalho, organizado em torno das corporações de ofício, mantinha a fraternidade e a solidariedade como valores de referência. A partir da Revolução Industrial, quando o trabalho começou a se organizar em outros moldes, os trabalhadores não estavam mais confinados às lealdades fraternais e à consciência “vertical” dos ofícios específicos. Nas palavras do autor:

O sentimento de solidariedade de ofício podia ser forte. Mas a suposição de que essa fraternidade de ofício necessariamente entrasse em conflito com objetivos e solidariedades mais amplos é totalmente falsa. (…) encontraremos entre os trabalhadores e trabalhadoras do século XVIII muitas evidências de solidariedade e consciência horizontais. Nas muitas listas de ocupações que examinei (…), fica claro que as solidariedades não eram segregadas pelos ofícios.[5]

O sistema de trabalho itinerante oferece indícios de que a solidariedade entre os trabalhadores extrapolou a órbita das pequenas comunidades, espalhando-se por grandes regiões do país. Segundo Hobsbawm[6] o indivíduo que desejasse deixar a sua cidade para procurar trabalho em outra recebia uma espécie de “licença”, um documento que o identificava como membro de uma determinada associação. Ao chegar a uma nova cidade apresentava-se ao funcionário do “alojamento”, “clube” ou “sede”, que o recebia oferecendo o jantar e uma licença de ambulante. O autor afirma que esse costume se espalhou porque ele proporcionava um meio de opor-se à vitimização, ao contrário, com ele os trabalhadores tinham a certeza de ter um meio de vida. O tratamento dado aos trabalhadores itinerantes era diferenciado e privilegiado em relação ao dispensado aos viajantes comuns.

De acordo com Faria[7], quando os trabalhadores ingleses começaram a se unir em associações, a partir do final do século XVIII eles tinham como lema: “que o número dos nossos membros seja ilimitado”. Essa palavra de ordem do movimento associativo inglês indica o desejo de reunir todos os trabalhadores nas associações e confirma a tese da superação do paradigma da solidariedade restrita aos ofícios.

Na Inglaterra a religião também teve um importante papel na difusão de ideais comunitários e de solidariedade. A respeito da sociedade deste período, o autor argumenta que “o fervor do antigo testamento fora assimilado a uma solidariedade de classe”[8]. Para o autor[9] o metodismo ofereceu ainda uma comunidade aos trabalhadores, que se encontravam “desamparados” e “desarraigados”. Esses novos núcleos comunitários de certo modo preenchiam uma lacuna deixada pela Revolução industrial que ao fixar os trabalhadores nas cidades alterou os velhos padrões de vida.

A partir da década de 20, de acordo com Calhoun, as reflexões sobre o conceito de classe e a exploração, forneceram o substrato teórico para a ideia de “solidarity of all workers against capital”[10]. Nesse sentido, pode-se observar o surgimento, nas áreas centrais da revolução industrial, de novas atitudes, instituições e modelos comunitários, que se expressavam também numa solidariedade de combate, segundo Thompson passa a existir não apenas uma solidariedade com, mas também contra[11].

É preciso ressaltar que no seio das associações, essa fraternidade às vezes não era espontânea, mas obtida mediante coação. Os membros das associações eram de modo recorrente, compelidos a prestar solidariedade aos demais. De acordo com Thompson, os membros da Fraternidade dos preparadores de malte, por exemplo, deveriam pagar multas no caso de não-comparecimento aos funerais dos companheiros ou de suas esposas[12].

Os ritos de acesso para aqueles que pretendiam ingressar nas associações também fornecem uma amostra da presença da ideia de fraternidade no imaginário dos trabalhadores. Em 1801, Thompson registra a reunião de uma comissão de delegados com representantes de várias vilas têxteis. Todos os que desejassem se filiar à associação deveriam responder a seguinte pergunta “Você está disposto a fazer tudo a seu alcance para criar o Espírito de Amor, Fraternidade & Afeto entre os amigos da liberdade (…)”[13].

Desde o século XVIII encontram-se registros da prática de juramentos, que usualmente apelam à lealdade e ao auxílio entre “irmãos”. Tal prática passou a fazer parte da cultura dos trabalhadores, pois a solidariedade, a dedicação, mas também a intimidação proporcionada pelos juramentos, foram fundamentais para a existência das associações na clandestinidade. Em um juramento de uma destas associações ilegais encontramos referência a esta relação “fraterna”, quando o trabalhador se compromete a ser “justo, sincero, sóbrio e leal em todos os meus tratos com todos os meus irmãos”[14].

No interior das sociedades populares eram comuns no vocabulário e nos símbolos utilizados, as ideias de fraternidade e solidariedade. Thompson fornece uma enorme variedade de exemplos desta presença, como é o caso de uma sociedade que “anunciou que os irmãos associados não eram menos que 2000”[15] ou ainda “uma nova sociedade de ‘um grupo de artífices pobres’ pediu para ser admitida em ‘fraternização’ com a sociedade constitucional de Londres”[16]. Entre as primeiras sociedades e sindicatos que se formaram nesse período há algumas que escolheram nomes tais como Instituto Sindical de Solidariedade dos Mecânicos, de Bradford em 1822 e Sindicato de Solidariedade dos Mecânicos, de Manchester em 1826[17]. Pode-se mencionar também o nome de um hino cartista “Assembleia dos filhos da miséria”[18] ou ainda um estandarte do sindicato dos cordoeiros no qual havia a inscrição “Filhos do trabalho: a união faz a força”[19]. Estas manifestações permitem supor que o compartilhamento das condições de vida foi um elemento importante para a constituição desse sentimento de fraternidade entre os trabalhadores.

De acordo com Hobsbawm[20], a solidariedade, o auxílio mútuo, a cooperação e a disposição em lutar por justiça eram os fundamentos do “código moral” da classe operária inglesa.  As sociedades de auxílio mútuo, por serem muito difundidas neste período, tiveram uma influência cultural muito importante. Na maioria das vezes expressavam as suas aspirações através de frases de efeito, tais como “uma sociedade segura, duradora e fraternal” ou “promover a amizade e a verdadeira caridade cristã”, sentenças que permitem crer que estas sociedades contribuíram para a difusão de um sentimento de fraternidade entre os trabalhadores. Thompson também aponta como manifestações de solidariedade, o fato de ser quase impossível obter um depoimento contra os trabalhadores presos, acusados de serem os “cabeças de motins”[21]. De acordo com Hobsbawm[22], na tradição de lutas dos trabalhadores ingleses as “greves políticas” não foram muito utilizadas ou se utilizadas, não foram bem-sucedidas, por outro lado, eram muito comuns greves de simpatia ou solidariedade.

Por fim, é possível afirmar que a “era de ouro” da presença dos princípios de fraternidade e solidariedade entre os trabalhadores ingleses, coincidiu com o nascimento do movimento operário. Os ideais comunitários confrontados com os alarmantes níveis de pauperização fomentaram sentimentos de resistência a partir da atualização de antigos valores. No momento em que os sindicatos começaram a se profissionalizar, abandonando as suas bases comunitárias, o apelo a tais valores também entrou em declínio e a ideia de luta de classes se sobrepôs às de solidariedade e fraternidade.

Na França, durante a primeira metade do século XIX, enquanto a burguesia industrial ainda se estruturava, os operários tentavam desenvolver suas organizações de solidariedade para fazer frente às transformações no mundo do trabalho[23]. Kuczynski[24] argumenta que o movimento operário foi um instrumento de auto-defesa, de protesto, de revolução, mas representou antes de tudo, um modo de existência para as classes laboriosas. Os trabalhadores teriam forjado novas formas de existência, em comunidades idealistas, inspiradas por princípios coletivistas que davam novos sentidos para a vida.

É possível supor que o senso de solidariedade, nasce da consciência do compartilhamento das condições miseráveis de existência. Essa suposição pode ser confirmada através dos discursos dos trabalhadores, que segundo Perot[25], quando tratavam-se reciprocamente de “irmãos”, normalmente acrescentavam alguma caracterização  ao substantivo, como “irmãos de miséria”, “irmãos de sofrimento”, entre outros.

Para Kuczynski[26] os trabalhadores imaginaram uma nova sociedade construída com base na colaboração e não na concorrência, uma sociedade coletivista e não individualista. De acordo com Louis Blanc, a concorrência seria um dos principais males do sistema produtivo vigente e a emancipação dos trabalhadores não ocorreria enquanto ela fosse o fundamento da vida econômica. Ele justifica suas objeções à concorrência relacionando-a ao que caracteriza como dogma da “liberdade, igualdade, fraternidade”, para o autor com a concorrência não seria possível ter liberdade “puisque la concurrence arrête les plus faibles dans le développement de leurs facultes”, a igualdade seria impossível “puisque la concurrence n’est que  l’inégalité même mise en mouvement” e a fraternidade seria irrealizável “puisque la concurrence est um combat” [27].

Todavia, a mudança social não deveria acontecer de modo abrupto, mas ter um caráter progressivo, de modo que fosse estendendo aos poucos por todo o mundo do trabalho. Partindo daí, ampliaria o seu alcance até chegar à humanidade inteira, como argumenta David, “d’arriver, d‘atelier en atelier, à l’ère bienheureuse de la transformation morale de l’homme et de la fraternité universelle”[28]. Para Bron[29], foi isso que ocorreu com a ideia de solidariedade entre os trabalhadores, se expandiu progressivamente, de uma região a outra, até se estabelecer em âmbito nacional e para além das fronteiras francesas. Entretanto, apesar desta perspectiva de mudanças progressivas, encontra-se também a concepção de que no presente as associações deveriam servir como um instrumento de luta, a fim de melhorar os salários dos trabalhadores, as duras condições de trabalho e as jornadas exaustivas as quais eles eram submetidos.

No início do século XIX, os trabalhadores franceses fundaram as suas primeiras associações, entre as quais estavam as de “auxílio mútuo”. O modelo das sociedades de auxílio mútuo, com as suas caixas de seguro, foi uma das primeiras formas encontradas pelos trabalhadores para ajudarem-se reciprocamente em caso de doenças, acidentes de trabalho e, posteriormente, também em períodos de greve.

Os regulamentos dessas associações fornecem exemplos da forma como as ideias de fraternidade e solidariedade foram apropriadas e empregadas pelos trabalhadores. Feugueray apresenta o regulamento de uma associação de produtores de limas, em cujo preâmbulo há uma referência aos supostos ideais da Revolução de 1789 “L’association des ouvriers en limes est fondée sur les principes de la liberté, de l’égalité et de la fraternité. En conséquece, et pour établir  une société perpétuelle (…) La plus cordiale affection dans notre fraternité réciproque”[30].

As referências à tríade “liberdade igualdade, fraternidade”, foram muito comuns nesse período, principalmente se forem considerados os anos que antecederam 1848 e aqueles imediatamente posteriores. A diferença dessa invocação, em relação à Revolução de 1789, é que a fraternidade, ainda que ocupe o último lugar da divisa, na maioria das vezes é considerada como condição para a realização dos demais princípios. A natureza fez os homens livres e iguais, mas também os fez “irmãos”.

No primeiro artigo, do regulamento mencionado por Feugueray é a solidariedade que está presente, ao lado da unidade ela é apresentada como divisa, dos trabalhadores “(…) la bonne harmonie qui doit toujours régner entre bons citoyens et surtout entre les associes en limes réunis sous cette devise: Unité, Solidarité”[31]. Em outro regulamento, de uma associação fundada em 1848, encontram-se também referências à fraternidade. A associação chamada Association fraternelle des ouvriers de la voiture en general, instituiu uma caixa de seguros chamada Caisse d’assistence fraternelle. O regulamento determina a destinação dos fundos da caixa:

Les fonds de la Caisse d’assistance fraternelle sont destinés à venir, en aide aux associés malades ou infirmes, ou victimes de malheurs matériellement réparables; à venir également en aide aux veuves et aux orphelins des associés, ainsi qu’à toutes les personnes qui auront été de leur vivant étroitement unies par les liens les plus vrais, les plus sacrés, les liens du coeur, et enfin à servir de pension de retraite aux vieillards ayant fait partie de l’Association ; en un mot, il devra être pourvu autant que possible, avec les fonds de la Caisse d’assistance fraternelle, aux besoins imprévus et exceptionnels des associés et de ceux qui leur sont chers(…).[32]

A descrição dos usos que poderiam ser dados aos recursos da Caixa mostra de que maneira a fraternidade expressa nos discursos e divisas se materializa concretamente: na ajuda aos companheiros ou seus dependentes que estivessem mais necessitados.

Para David[33] os trabalhadores tinham uma compreensão particular da fraternidade. De modo geral, eles se manifestavam contrários a todas as formas de filantropia e paternalismo, pois segundo eles a fraternidade deveria fazer com que houvesse da parte dos ricos um sentimento de igualdade em relação aos pobres, pois essa seria a verdadeira essência da caridade.

Deve-se chamar atenção para o fato de que a fraternidade, entre os trabalhadores, era muitas vezes excludente. No entanto, não são poucos aqueles que invocam a fraternidade como um meio de superar as rivalidades ancestrais existentes entre os diferentes ofícios, como no caso inglês. Um exemplo disso é um projeto de 1845, que visava estabelecer a Companhia das indústrias unidas. Os autores do projeto o justificavam dizendo que “tous les hommes, tous les travailleurs sont frères.” e que “tous les industries sont solidaires”[34].

Na França, entra também em discussão o tema do “direito ao trabalho”, Louis Blanc é um dos que defendem que o Estado deveria garantir as condições para que as pessoas aptas ao trabalho pudessem empregar-se. O seu plano das Oficinas Nacionais, que segundo ele “constituainent des familles de travailleurs, unis entre eux par le lien de la plus étroite solidarité”[35], visava assegurar este objetivo. A solidariedade teve um apelo muito forte em sua doutrina, o autor era contrário a tese da luta de classes. De acordo com Cole[36], em oposição a esta ideia de antagonismo de classes, ele sustentava a “verdadeira solidariedade” de toda a comunidade, apelando aos “homens de boa vontade” de todas as classes sociais.

A revolução de 1848 dá grande visibilidade às associações de trabalhadores, mas nesta época multiplicaram-se também os clubes e associações de caráter político. Um desses clubes, Club de la Fraternité, declara o seu apoio ao Governo provisório, após as jornadas de fevereiro, nos seguintes termos: “(…) les membres du club des ouvriers de la Fraternité veulent (…) La fraternité fondée sur l’union et réalisée par le dévouement réciproque de tous les membres de la grande famille française”[37].

Após a derrubada da monarquia e a proclamação da Segunda República o governo provisório estabeleceu o sufrágio universal para as eleições que deveriam formar a Assembleia Constituinte. Os trabalhadores se mobilizaram a fim de que um número expressivo destes se inscrevesse como eleitor e votasse. Um operário chamado Mariot, apela aos seus companheiros para que se inscrevam como eleitores, ele suplica “Frères qui n’êtes pas inscrits, nous comptons sur vous”[38]. Segundo este operário seria preciso que mais 400.000 trabalhadores se inscrevessem, para que conseguissem eleger pelo menos vinte operários para representá-los na Assembleia nacional.  Com esse mesmo objetivo, um grupo de delegados de diversas corporações do departamento do Sena dirigindo-se aos “seus irmãos, os trabalhadores” pedem o comparecimento de todos às eleições:

Hâtez-vous donc de retirer vos cartes d’électeurs, ne perdez pas une minute, et, Dimanche, réunis sous nos bannières, garants et gardiens nous-mêmes de l’ordre et de la liberté, nous montrerons au monde que la Fraternité est l’arme héroïque des peuples![39]

Essa preocupação com as eleições parece indicar que as proclamações de fraternidade e solidariedade não eram ingênuas, mas ao contrário, alimentavam a expectativa de obtenção de vitórias concretas desde que servissem para a aglutinação dos trabalhadores em torno de interesses que eram comuns.

Como se sabe, a esperança dos trabalhadores foi suplantada pelo temor do rumo que poderia tomar um governo dirigido por operários. Os trabalhadores franceses apoiaram a Revolução tendo em vista a plena realização dos ideais proclamados pela Revolução precedente, com destaque para a fraternidade. Contudo, com o afastamento completo dos operários do núcleo central do governo, a expectativa de fundar uma nova sociedade foi mais uma vez frustrada.

Fraternidade e solidariedade no socialismo utópico

O socialismo utópico nasce em meio a um movimento intelectual que reage aos impactos negativos das grandes transformações econômicas e sociais decorrentes do advento de um novo sistema de produção, consolidado a partir da Revolução industrial. Estes pensadores procuraram responder às transformações propondo novos modelos de organização da sociedade.

Nesta seção examinaremos as obras de Saint-Simon e Owen, importantes expoentes do chamado socialismo utópico, na França e na Inglaterra. O objetivo da análise dos trabalhos destes autores é identificar aspectos de suas obras que evidenciem a apropriação das categorias fraternidade e solidariedade.

Saint-Simon produz no final da vida aquela que é considerada a sua obra mais importante. O Nouveau Christianisme, que só foi publicado postumamente, serviu de base para o “culto” desenvolvido por seus discípulos após sua morte, e foi, sem dúvida, uma das maiores fontes de difusão do pensamento do autor. A maioria dos especialistas[40] concorda que este último livro teve como finalidade definir uma moralidade compatível com os objetivos que o novo sistema social, que o autor propunha, deveria alcançar.

Para Arsant[41], Saint-Simon temia que a associação da sociedade industrial poderia não acontecer espontaneamente. Então ele reafirma nesta última obra o objetivo principal do seu novo sistema: melhorar a vida da classe mais pobre e mais numerosa. Para alcançar esse fim propõe o estabelecimento de uma espécie de religião civil, inspirada no cristianismo primitivo. De acordo com Cole[42], o autor se deu conta de que a inteligência era insuficiente, como motivação, para a ação social, e que seria necessário apelar também aos sentimentos. Petitfils[43] resume bem esse ponto ao afirmar que:

Saint-Simon não pensa mais que a ciência será suficiente, por si mesma, para dar o impulso de fraternidade necessário à realização de uma grande obra coletiva. Como todos os criadores de utopia, ele sente a necessidade de dotar a sociedade futura de uma mística que corresponda à sua ética.

Esta obra fornece os exemplos mais explícitos da presença da ideia de fraternidade no pensamento do autor. No início do livro, em um diálogo entre dois personagens fictícios, o inovador e o conservador, o princípio da fraternidade é apresentado como a essência do cristianismo:

Novateur – Dieu a dit: Les hommes doivent se conduire en frères à l’égard les uns des autres; ce principe sublime renferme tout ce qu’il y a de divin dans la religion chrétienne.

Conservateur – Quoi? Vous réduisez à un seul principe ce qu’il y a de divin dans le christianisme?

Novateur –  Dieu a nécessairement tout rapporté à un seul principe (…) Or, d’après ce principe que Dieu a donné aux hommes pour règle de leur c onduite, ils doivent organiser leur societé de la manière qui puisse être la plus avantageuse au plus grand nombre, ils doivent se proposer pour  but dans tous leurs travaux, dans toutes leurs actions, d’améliorer le plus promptement et le plus complètement possible l’existence morale et physique de la classe la plus nombreuse.[44]

Após apresentar a relação fraternidade como a pedra fundamental do cristianismo, Saint-Simon define como consequência desse princípio, que as comunidades devem ser organizadas tendo em vista o bem do maior número de pessoas e particularmente daquelas que se encontram em situação menos vantajosa. É importante ressaltar que nesse momento ele ainda não está expondo a sua doutrina, mas interpretando àquela do cristianismo. Para o autor, esses princípios foram praticados pelos cristãos dos primeiros tempos, que além de pregar a unidade de todos os povos alertavam aos poderosos “que leur premier devoir était d’employer tous leurs moyens à la plus prompte amélioration possible de l’existence morale et physique des pauvres”[45]. Ao propor o seu “novo cristianismo”, na verdade o autor está defendendo a retomada desses princípios que considera os pilares do cristianismo primitivo. Esses novos princípios não irão, entretanto, permanecer apenas como leis morais, mas a sociedade “Déduira les institutions temporelles (…) du principe que tous les hommes doivent se conduire à l’égard les uns des autres comme des frères”[46].

Saint-Simon se empenha em mostrar também como os diferentes grupos na sociedade são solidários, na medida em que os efeitos positivos da melhoria das condições de vida de uma determinada classe repercutiriam no todo social. Ele argumenta que seria fácil convencer todos os homens de boa fé de que “toutes ces institutions étaient dirigées vers le but de l’amélioration du bien-être moral et physique de la classe la plus pauvre, elles feraient prospérer toutes les classes de la societé, toutes les nations, avec la plus grande rapidité possible”[47]. No final do livro ele reitera essa ideia, dirigindo-se diretamente aos grupos mais favorecidos afirmando que seria “(…) impossible d’améliorer l’existence (…) de la classe pauvre par d’autres moyens que ceux qui tendent à donner de l’accroissement aux jouissances de la classe riche”[48].

Saint-Simon considera todas as religiões heréticas porque elas teriam se afastado daquilo que ele acredita ser o fundamento do cristianismo. Segundo ele, o cristianismo, nos seus primórdios, estava fora da estrutura social, os primeiros cristãos eram párias, perseguidos pelas autoridades políticas e religiosas do seu tempo. A institucionalização do catolicismo, como religião de Estado, fez com que o cristianismo se tornasse aos poucos a base da organização social. De acordo com Saint-Simon, se por um lado os homens não agiam verdadeiramente como irmãos, eles pelo menos admitiam que deveriam olhar-se como filhos de um mesmo pai. O erro do catolicismo, apontado por Lutero, seria relegar a felicidade dos homens para a vida futura, descuidando da vida terrena. O autor coloca na boca do reformador aquilo que deveria ser considerado o fundamento da legitimidade do governo “Vous devez déclarer à tous les rois que le seul moyen de rendre la royauté légitime consiste à la considérer comme une institution dont l’objet est d’empêcher les riches et les puissants d’opprimer les pauvres”[49].

O autor reafirma a necessidade de fazer do princípio essencial do cristianismo o fundamento da ação dos mais poderosos. Admitindo a validade universal do mandamento cristão, Saint-Simon faz uma defesa de que esta relação fraterna se estenda em escala universal. As nações também deveriam tratar-se como irmãs, quando duas nações cristãs estão em guerra, ambas estão erradas, pois o ideário cristão não admitiria outros métodos além do convencimento e da demonstração para a resolução de conflitos. Do mesmo modo, obviamente, no interior das sociedades, deveriam ser buscadas soluções pacíficas para os conflitos. Empregando uma velha máxima, ele sentencia que “C’est l’union qui fait la force; une societé dont les membres entrent en opposition les uns contre les autres, tend à sa dissolution”[50].

No final do livro Saint-Simon procura explicar os caminhos que teriam conduzido à humanidade ao estado atual, no qual esse princípio essencial não é respeitado. Segundo o autor, desde o início do cristianismo até o século XV a espécie humana havia se ocupado com a formulação e o estabelecimento de princípios universais, submetendo todos os interesses particulares ao interesse geral. No século XVI, teria ocorrido uma “dissolução do poder espiritual” europeu. A partir do cisma produzido na Igreja Católica, com o advento da Reforma protestante. Saint-Simon acusa Lutero de ter produzido uma orientação diferente para as buscas do homem:

L’esprit humain s’est détache des vues les plus générales, il s’est livré aux spécialités, il s’est occupé de l’analyse des faits particuliers, des intérêts privés des différentes classes de la societé (…) l’opinion s’est établie que les considérations sur les faits généraux, sur les principes généraux et sur les intérêts généraux de l’espèce humaine n’étaient que des considérations vagues et metaphysiques, ne pouvant contribuer efficacement aux progrès des lumières et au perfectionnament dela civilisation.[51]

Se por um lado essa mudança produziu avanços consideráveis em vários campos do conhecimento científico, por outro lado, segundo o autor, ela teria também gerado um sentimento de egoísmo que dominaria todas as classes, e que seria o grande responsável por todos os males políticos da sua época. Saint-Simon diz que o egoísmo é uma doença que “met en souffrance tous les travailleurs utiles à la société”[52]. O autor conclui que essa doença é resultado da negligência em relação à moral. Saint-Simon reconhece que o homem fez progressos admiráveis no campo das ciências, tais como a matemática, a física, a química e a biologia. No entanto, haveria uma ciência bem mais importante para a sociedade, aquela que seria a sua base, que é a moral. Neste campo, ao contrário do que ocorreu com as ciências exatas e da natureza, o homem teria regredido.

De acordo com o autor, nenhum dos avanços do homem no campo das ciências teria produzido um princípio moral superior àquele estabelecido há mil e oitocentos anos pelo cristianismo. O abandono desse princípio teria deixado o homem sob o império da força física. A única forma de transformar essa situação seria restabelecer a fraternidade como fundamento da ação humana, projeto que o “novo cristianismo” pretendia realizar.

Robert Owen, ao contrário de Saint-Simon, não foi apenas um intelectual, mas, sobretudo, um homem de ação. Suas ideias exerceram grande influência no pensamento de muitos outros reformadores sociais, de modo que ele é considerado por muitos, fundador não só do socialismo, como também do cooperativismo inglês. Em sua experiência nas fábricas tomou contato com a situação deplorável em que viviam os trabalhadores. Reagindo aos princípios da sociedade industrial, na qual o desejo de lucro imediato substituíra a importância das relações humanas, Owen passa a defender uma organização do trabalho baseada no interesse mútuo, na reciprocidade de tarefas, na ligação emotiva e nos laços mais fortes da natureza humana: a amizade e o sentido de família.

Com o seu Relatório ao Condado de New Lanark tornou-se um precursor do pensamento socialista ao condenar a ética capitalista e defender um ideal comunitário se expressando nos seguintes termos:

This principle of individual interest, opposed as it is perpetually to the public good, is considered, by the most celebrated political economists, to be the corner-stone to the social system, and without wich, society could not subsist. Yet when they shall know themselves, and discover the wonderful effects which combination and union can produce, they Will acknowledge that the present arrangement of society is the most anti-social, impolitic, and irrational, that can be devised.[53]

No Relatório, Owen defendia, entre outras coisas, o fim da concorrência, do capitalismo e do individualismo liberal, assim como uma distribuição equitativa da riqueza, a racionalização do ser humano e a coordenação de todos os interesses da humanidade. Todas essas transformações seriam realizáveis nas aldeias cooperativas. A contribuição de Owen para a difusão dos ideais cooperativistas e comunitários é inegável. As suas experiências de reorganização do mundo do trabalho foram muito avançadas para a época e levaram em conta, sobretudo a necessidade de melhorar as condições de vida dos trabalhadores. De acordo com Faria[54], uma das razões do sucesso, ainda que efêmero, do owenismo é que ele apelava aos trabalhadores com uma “imagem de uma comunidade fraternal onde todos os homens fossem irmãos, onde o auxílio mútuo tomaria o lugar da agressão e da competição”.

Em sua obra Uma nova concepção da sociedade, Owen fez uma análise da sociedade em que vivia e procurou mostrar em quais aspectos ela devia ser transformada. Partindo da sua experiência em New Lanark ele enumera todos os benefícios dessa transformação e os meios utilizados para alcançá-la.

A obra está ancorada na crença de que sendo um ser racional, o homem poderia resolver todos os problemas da sociedade e produzir a felicidade e o bem-estar geral. No livro o autor não utiliza os termos fraternidade ou solidariedade. No entanto, estão presentes algumas noções que geralmente são associadas a estes conceitos, aparecem de modo recorrente as expressões “humanidade” e “raça humana”, e com menos frequência também “família do mundo”.

A defesa do aperfeiçoamento geral da humanidade decorre da percepção do compartilhamento de uma condição comum, de uma semelhança entre os indivíduos.  É esta semelhança entre todos os homens, que torna inaceitável que alguns subsistam nas condições em que vivem os operários da indústria nascente. Ao discorrer sobre a necessidade de chamar atenção de todos, suscitando discussões sobre a miserável situação dos trabalhadores ingleses, Owen afirma:

Pretende suscitá-la [a discussão] para o bem da humanidade – para o bem dos seus semelhantes – entre os quais milhões experimentam sofrimentos que, se fossem revelados, obrigariam aqueles que governam a exclamar: ‘será possível que estas coisas existam e nós não tenhamos conhecimento delas?’.[55]

Além de apelar para sentimentos humanitários, Owen se empenha também em mostrar aos industriais que a melhoria das condições de vida dos operários, seria benéfica para toda a indústria, segundo o que se pode constatar do seu experimento em New Lanark. Com este intuito ele declara:

Tal como vocês, eu sou empresário em vista do proveito pecuniário. Mas tendo, durante muitos anos, agido segundo princípios de muitas maneiras opostos àqueles em que vocês foram instruídos, e tendo chegado à conclusão que o meu procedimento era benéfico aos outros e a mim próprio, mesmo sob o ponto de vista do lucro, estou ansioso por explicar tais valiosos princípios, de modo a que vocês e aqueles que estão sob a vossa influência possam igualmente participar das suas vantagens.[56]

O fundamento principal de tal afirmação é a crença ou mesmo a constatação da solidariedade entre os interesses de patrões e empregados. O industrial dá ênfase à interdependência existente entre todas as partes do sistema industrial, bem como às vantagens da cooperação.

O “progresso” dos homens consistiria na descoberta de que “a sua felicidade individual apenas pode aumentar e elevar-se na proporção em que ele se esforce ativamente por aumentar e estender a felicidade de todos a sua volta”[57].O progresso nos termos que o autor coloca depende da descoberta de que os interesses, ou as “felicidades” são solidárias, na medida em que só seria possível ao indivíduo aumentar a sua felicidade contribuindo para o incremento daquela dos que estão ao seu redor.

A solidariedade pode ser identificada também nas passagens em que ele pondera sobre a relação da felicidade das partes com o todo. Para o autor, este é um princípio que, se compreendido, eliminaria parte significativa dos problemas da sociedade, segundo Owen “a felicidade individual claramente compreendida e uniformemente praticada; o que pode ser atingido através de um comportamento que terá que promover a felicidade da comunidade”.[58]

De acordo com Owen os benefícios que se originam da prática deste princípio seriam suficientes para “induzir cada homem a ter caridade para com todos os homens”[59]. Para estimular a solidariedade entre os trabalhadores, estabeleceu no seu projeto em New Lanark, um meio através do qual os indivíduos pela sua “própria previsão, prudência e trabalho”[60] garantiriam o seu sustento na velhice. Trata-se de um fundo comum que auxiliaria os trabalhadores impossibilitados de trabalhar por doenças ou pela idade.

No projeto formulado por Owen uma nova educação deveria ser dada primordialmente às crianças, de modo que seu caráter fosse formado a partir de novas bases. Muitos anos após escrever o seu livro sobre essa nova concepção de sociedade, Owen, descrevendo como deveria ser a educação das crianças defendeu “Que los ninõs sean educados como si fueram hijos de una misma familia, la gran familia humana, con los mismos intereses y afectos y al abrigo de toda influencia repulsiva”[61].

Ainda em relação ao processo de instrução das crianças Owen argumenta que a felicidade do homem depende dos seus próprios hábitos e sentimentos, mas também daqueles dos que estão à sua volta. Uma vez que os hábitos e sentimentos podem ser “dados” a qualquer criança é fundamental que adquiram apenas aqueles que possam contribuir para a sua felicidade. Para ele cada criança deve ser ensinada a não “magoar os seus camaradas de jogo, mas que, pelo contrário, deve contribuir, em tudo o que puder, para os tornar felizes”[62]. Mais uma vez, parece expressar a ideia de solidariedade entre os indivíduos, segundo a qual a felicidade de um depende da felicidade do todo. Owen acrescenta ainda que “a felicidade que os pequenos grupos gozarem, por causa deste comportamento racional, assegurará a sua adoção rápida, geral e voluntária”[63].

A finalidade da educação seria fixar pelo hábito esses comportamentos que promovam a felicidade dos semelhantes, de modo a garantir a própria. O autor insiste de modo exaustivo neste ponto, ao declarar que aos mestres caberia aproveitar todas as oportunidades de “sublinhar as ligações claras e inseparáveis que existem entre os interesses e a felicidade de cada indivíduo e o interesse e a felicidade de todos os outros indivíduos”[64].

Ao lado de toda a linguagem da racionalidade, com a qual o industrial procura revestir a sua argumentação, é possível encontrar o apelo a princípios que são comuns ao vocabulário religioso, mas também estão muito presentes nas experiências comunitárias e associativas que os trabalhadores ingleses empreendiam à época. Sobre a necessidade de que todos estejam unidos para a transformação da sociedade ele afirma:

Portanto, tem forçosamente que ser desejo de todos os homens racionais, de todos os amigos sinceros da humanidade, que haja uma colaboração cordial e uma unidade de ação entre o Executivo Britânico, o Parlamento, a Igreja e o Povo, com o fim de estabelecer uma ampla e firme base para a sua felicidade futura e a do mundo.[65]

Em O Livro do Novo Mundo Moral[66], uma obra da maturidade, Owen expressa novamente a convicção, já presente em Uma nova concepção da sociedade, de que se estes “fatos” e estas “leis da natureza” fossem compreendidos e adotados eles formariam um novo caráter na espécie humana. Os homens se tornariam racionais e caridosos com seus semelhantes.

Nota-se na argumentação do autor que a postura “caridosa” em relação aos semelhantes, é vista como racional. Seria suficiente que os homens fossem treinados desde a infância, a agir segundo essa “racionalidade”, para criar um novo mundo moral. Na segunda parte do Livro do Novo Mundo Moral, Owen apresenta os “princípios da religião racional”. A religião racional, proposta pelo autor, deve ser entendida como o conjunto dos laços que unem os homens em sociedade. O primeiro princípio desta “religião” estabelece que:

Las religiones del mundo han dividido a las naciones y a los hombres entre si, desde el primer período histórico hasta el dia de hoy. La auténtica religión deberá, por el contrario unir nación por nación y hombre a hombre, hasta que el género humano sea una sola família.[67]

Na terceira parte de O Livro do Novo Mundo Moral, o autor enumera as condições necessárias para produzir a felicidade da humanidade, entre as quais defende:

Un carácter formado de tal modo que pueda expresar la verdad en toda ocasión y pueda experimentar una auténtica caridad por los sentimientos, ideas y conducta de todos los hombres y una sincera benevolencia hacia cada individuo del género humano.[68]

As teorias de Owen conquistaram muita simpatia entre os trabalhadores, mas também foram alvo de críticas de outros intelectuais que o consideravam utópico. Em uma coletânea de textos de 1848, chamado Curta exposição de um sistema social racional ele responde a uma destas críticas argumentando que o princípio segundo o qual os homens não são responsáveis pela formação do seu caráter é uma verdade eterna, cuja adoção pode fazer com que enfim se estabeleçam entre os homens a liberdade, a igualdade e a fraternidade[69].

Em outro texto, do mesmo ano, aparece novamente uma referência de Owen à divisa francesa. O autor afirma que “associação, liberdade, igualdade, fraternidade” são ainda palavras vagas, pouco compreendidas por todos e temidas por muitos. Em seguida, Owen afirma:

Puis je dirai comment cette association est raisonnable; comment la liberté peut être réelle; comment l’égalité est vraie et juste, et ce qu’il faut pour créer entre vos enfants une fraternité si universelle telle, qu’ils vivent ensemble comme une famille de frères et de soeurs, où le plus vif désir, la plus grande jouissance de chacun serait de faire le bien de tous.[70]

Owen foi muito acusado de ser um utopista, mas mesmo os chamados “socialistas científicos” souberam reconhecer o valor da sua contribuição para o movimento dos trabalhadores. O apelo à fraternidade e à solidariedade, enquanto “antídotos” para os males do sistema industrial vigente, nasce da constatação de que valores como concorrência e competição não poderiam promover, como era fácil verificar pela situação dos trabalhadores no período, a felicidade do maior número de indivíduos. Instituir os princípios de fraternidade e solidariedade como a base das relações sociais não só no interior das comunidades, mas também entre as nações, seria o primeiro passo para a reconstituição do tecido social.

Considerações finais

Ao realizar esta interpretação a respeito da presença das ideias de fraternidade e solidariedade entre os trabalhadores e socialistas útopicos a pretensão deste trabalho não foi esgotar o tema, mas mostrar que tais ideias foram apropriadas de modo recorrente entre o final do século XVIII e a primeira metade do século XIX.

Não é equivocado dizer que a fraternidade e a solidariedade foram num certo sentido “palavras de ordem” entre os trabalhadores no período. Possivelmente não foram as únicas, mas foram princípios essenciais para a identificação de interesses e para a difusão da ideia de associação entre os trabalhadores dessa época. A partir de uma análise retrospectiva, sabemos o quanto essas associações, foram importantes para a proteção dos trabalhadores e gradual aquisição de direitos.  As associações e depois os sindicatos reforçaram a possibilidade de protagonismo dos trabalhadores na arena pública.

Essas experiências associativas podem ser lidas ainda na chave do contra-movimento, do qual Polanyi[71] fala quando aborda as consequências sociais do nascimento do mercado auto-regulável. Essa reação tinha como principal objetivo recuperar as condições de vida anteriores a esse processo de mercantilização da vida humana. A cooperação e a associação apareciam como alternativas ao “domínio” da máquina ou do mercado sobre o homem.

A reflexão empreendida pelos socialistas utópicos não pode ser tomada como um movimento independente deste dos trabalhadores. Essas atividades se desenvolveram paralelamente e se influenciaram reciprocamente. A participação de Owen na organização dos sindicatos e mesmo de discípulos próximos de Saint-Simon nas reflexões que inspiraram os revolucionários de 1848 põem em relevo a impossibilidade de considerar a reflexão intelectual e a prática dos trabalhadores como duas dimensões completamente separadas.

As proposições de Saint-Simon e Owen partem de situações históricas distintas. Enquanto o inglês pensa a partir de um mundo industrializado, o francês fala sobre um mundo que ainda é majoritariamente agrário.  Isso não os impede de chegar a conclusões semelhantes, principalmente quanto a importância do estabelecimento de novos princípios morais para ordenar a sociedade. Saint-Simon e Owen compartilham a crença na possibilidade de reorganizar a sociedade a partir de princípios racionais.

A associação pode ser considerada uma palavra-chave para os dois, na obra de Owen ela aparece como um instrumento para aprimorar o sistema social, e decorre da uma natural interdependência entre os indivíduos na sociedade. Para Saint-Simon, ela também deverá estar na base da organização da nova sociedade, no entanto, essa associação estaria, antes de tudo, ancorada num princípio moral que ele toma emprestado do cristianismo primitivo.

No que diz respeito ao apelo à fraternidade, pode-se dizer que enquanto em Saint-Simon ele constitui uma posição da maturidade, assumida com maior ênfase em sua última obra. Em Owen, devemos considerá-lo quase como ponto de partida, pois está na base da sua primeira grande obra teórica e também dos seus primeiros experimentos práticos. O que há de comum na utilização das ideias de fraternidade e solidariedade entre aos dois autores, é que elas parecem responder a uma necessidade de estabelecer um princípio moral em torno do qual a vida social deveria se organizar.

Ainda que as categorias fraternidade e a solidariedade tenham sido utilizadas em grande medida indistintamente, como se significassem a mesma coisa, é possível marcar algumas diferenças quanto a sua mobilização pelos diferentes atores. A fraternidade, de modo geral, aparece com mais frequência nas relações entre os trabalhadores. Nesse sentido, parece supor uma ligação entre iguais, uma relação horizontal. A solidariedade, principalmente se considerarmos os apelos feitos pelos socialistas utópicos aos industriais, aparece como um princípio que une trabalhadores e patrões. Portanto, é uma relação entre diferentes, e de certo modo, vertical.

Por tudo o que foi apresentado, podemos concluir que as ideias de fraternidade e solidariedade tiveram um papel importante nesse período. Entre os trabalhadores, assim como entre os socialistas utópicos elas gozaram de grande prestígio, por serem consideradas princípios a partir dos quais seria possível transformar uma realidade social com a qual não estavam satisfeitos. Ainda que objetivo maior que trabalhadores e intelectuais perseguiram, de reconstruir a ordem social sobre novas bases, não tenha sido alcançado, é possível dizer que o esforço de introdução destes princípios na vida social teve efeitos positivos de curto e de longo prazo.

No curto prazo, a associação dos trabalhadores proporcionou melhorias substantivas das suas condições de vida, no longo prazo, a união entre eles possibilitou o seu acesso progressivo à cidadania – que só se consolidaria no século XX – através da incorporação dos direitos políticos e sociais. Somando-se a isto, tornou também possível aos trabalhadores reconhecerem-se no papel de sujeitos da sua própria história libertando-os de amarras que os impediam de lutar pela transformação das suas condições de vida. Os trabalhadores descobriram que se sozinhos eram fracos, a união fazia a sua força.

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[[1]] Thompson, 1987b, p. 317.

[[2]] Thompson, 1987c, p. 406.

[[3]] Thompson, op. cit., 1987b, p.152.

[[4]] Thompson, 2008.

[[5]] Thompson, op. cit., 2008, pp. 61-62.

[[6]] Hobsbawm, 2000, pp. 51-58.

[[7]] Faria,1976, p. 8

[[8]] Thompson, op. cit., 1987c, p. 162.

[[9]] Thompson, op. cit., 1987b, p. 261.

[[10]] Calhoun,1982, p. 8.

[[11]] Thompson, op. cit., 1987c, p. 49.

[[12]] Thompson, op. cit., 1987b, p. 311.

[[13]] Thompson, op. cit., 1987c, p. 37.

[[14]] Ibid, p. 154.

[[15]] Thompson, op. cit., 1987a, p. 131.

[[16]] Ibid., p. 133.

[[17]] Thompson, op. cit., 1987b, p. 87.

[[18]] Ibid., p. 287.

[[19]] Ibid., p. 321.

[[20]] Hobsbawm,1987, p. 268.

[[21]] Thompson, op. cit., 2008, p. 68.

[[22]] Hobsbawm, op. cit., 2000, p. 440.

[[23]] Bron, 1968, p. 16.

[[24]] Kuczynski, 1967, p. 124.

[[25]] Perot, 1974, p. 617.

[[26]] Kuczynski, op. cit.

[[27]] Louis Blanc, 1847, pp. 272-273.

[[28]] David, 1992, p. 135.

[[29]] Bron, op. cit., p. 12.

[[30]] Feugueray, 1851, p. 265, grifo do autor.

[[31]] Ibid., pp.265-266, grifo do autor.

[[32]] Jean, 1849.

[[33]] David, op. cit., p. 142.

[[34]] Ibid., p. 139.

[[35]] Blanc, 1880, p. 222.

[[36]] Cole, 1980, p. 172.

[[37]] Janet, 1848, p. 78.

[[38]] Ibid., p. 105.

[[39]] Janet (Ibid., p. 128)

[[40]] Cf. Arsant, 1987; Cole, 1980; Desanti, 1973; Petitfils, 1978.

[[41]] Arsant, op. cit., p. 194.

[[42]] Cole, op. cit., p. 51.

[[43]] Petitfils, op. cit., p. 59.

[[44]] Saint-Simon, 1825, p. 2-3, grifo do autor.

[[45]] Ibid., p. 4-5.

[[46]] Ibid., p. 8, grifo do autor.

[[47]] Ibid., p. 9.

[[48]] Ibid., p. 78-79.

[[49]] Ibid., p. 46.

[[50]] Ibid., p. 47.

[[51]] Ibid., p. 82.

[[52]] Ibid., p. 84.

[[53]] Owen, 1969, p. 231.

[[54]] Faria, op. cit., p. 59.

[[55]] Owen, 1976, p. 99.

[[56]] Ibid., p.83.

[[57]] Ibid., p. 105.

[[58]] Ibid., p.105.

[[59]] Ibid., p. 119, grifo do autor.

[[60]] Ibid., p. 221.

[[61]] Owen apud Desanti, op. cit., p. 342.

[[62]] Owen, op. cit., 1976, p. 173, grifo do autor.

[[63]] Ibid., p. 175.

[[64]] Ibid., p. 195.

[[65]] Ibid., p. 273, grifo meu.

[[66]] Owen apud Desanti, op. cit., p. 337.

[[67]] Ibid., p. 338, grifo do autor.

[[68]] Ibid, p. 346.

[[69]] Owen, 1848a, p. 5.

[[70]] Owen, 1848b, pp. 22-23.

[[71]]  Polanyi,1980.