O Fantasma do Metrô, por François Gantheret

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François Gantheret é professor Emérito de Psicopatologia na Universidade de Paris VII.
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Ela tem dezenove anos, é alta, muito ereta e muito bonita. Tenho certeza de já tê-la visto, mas onde, e quando? Ela diz: “Eu o encontrei na faculdade, há dois anos, em 1968. Trabalhava na fábrica de macarrão, onde ainda trabalho.”

Sim, sem dúvida, na faculdade. Mas uma imagem insiste em mim, esse rosto… mas não na faculdade.

“Íamos à universidade, quando as fábricas fechavam, tenho amigos estudantes, da época, especialmente um deles, que foi quem me deu o seu endereço. Na faculdade se podia falar, todo mundo falava. E lá (ela sorri e se ilumina) havia garotos. Na fábrica só há meninas, com exceção dos encarregados, homens, mas bem mais velhos.”

Lembrei-me. Levávamos mantimentos às operárias em greve. As meninas nos diziam já quase não ter o que comer em casa; atrás delas, os armazéns repletos de massas que elas não ousavam tocar. O encarregado era também o responsável do sindicato, que dizia que não deviam cometer ilegalidades durante a greve.

O encarregado chegou naquele momento. As moças se afastaram de nós. Nada podíamos fazer; fomos embora. Ela tinha corrido para nos alcançar, queria falar-nos e se agarrou à grade a que tínhamos dado a volta para partir. “Desculpem-nos”, disse ela, “ele pode estar errado, mas é ele quem nos defende, sempre.” O rosto ansioso atrás da grade. Reencontrei minha imagem, e as palavras dela: “Só ele se opõe à direção; algumas de nós discordam, mas obedecemos. Você compreende? Ele é como nosso pai!”

Ela me conta como vive, ainda operária naquela fábrica, a mãe doente, mas trabalhando como faxineira. Tem quatro irmãos e irmãs menores.

“E seu pai?” Digo e mordo a língua. Por que me precipitei? E logo me dou conta de que foi essa a última palavra que eu tinha ouvido dela, lá na grade: “pai”.

“Partiu há seis anos. Não trabalhava, bebia. Depois que partiu, só sentíamos medo de que voltasse.” Sorri. “Agora, não mais.”

“Como você vive?”

“Tenho meu salário da fábrica e as faxinas de minha mãe, mas ela está muito cansada. Temos ajuda do governo para o aluguel, então, vamos nos virando… Gostaria que minha mãe descansasse, mas…”

Ela se recosta na poltrona.

“Não foi por isto que vim vê-lo. Há uma coisa que me chateia muito. Será doença? Uma coisa que me dá medo. Aconteceu hoje novamente, quando eu vinha para cá. Consegui chegar na hora, mas às vezes não consigo. Acontece no metrô, às vezes no ônibus. Quando alguém tem certas atitudes… um jeito de se posicionar, sinto um mal-estar tão grande que desço, rápido. Espero que passe e embarco de novo. Com sorte, não volta e não penso mais nisso. Mas, só de falar…”

Ela fica ereta na poltrona, o olhar intenso e doloroso, desviando-se de mim.

Por trás do meu, que se quer atento e tranquilo, os pensamentos se agitam. Ela silenciou. Estará delirando? Que vê ela? Estava tão calma… ouço de novo algumas frases: “Certas atitudes…”: alguma provocação sexual? Real? Fantasiada? “Preciso descer.” O metrô, um lugar público. Ver o quê?

Devagar. Por que esse turbilhão de associações, de hipóteses, em mim? Essa vontade de perguntar, de que ela diga! O que, nessa simples narrativa, está tão presente, é tão excitante e indistinto que eu precisaria, para apaziguar essa tempestade de pensamentos, que ela dissesse com mais nitidez, com mais precisão, e rápido? Eu sempre tive pressa de precisão, de nitidez, de “mise au point”.

Digo: “Um mal-estar?’

E ela começa a falar, aos poucos, espreitando meu olhar. No final da sessão, já sei: é um orgasmo que ela sente. Nasce insidiosamente, ela luta contra, mas a coisa sobe, implacável, e vai submergi-la. Ela vai para a porta do vagão, esconde o rubor, as gotas de suor nas pálpebras, mas tem certeza de que todo mundo está vendo. Vai explodir, vai gritar… na estação, o corredor deserto, ela caminha, às vezes a sensação diminui. Ou explode, ela se curva e, enquanto grita silenciosamente, consegue fingir que está só amarrando o sapato, voltada para a parede. Sai disso exausta. Já lhe perguntaram se estava passando mal. Ela se reapruma e, se está perto do destino, vai a pé. Senão, inquieta, toma o metrô de novo. Se pelo menos…

Se pelo menos o quê? Não saberei hoje, não pergunto nada. Nos veremos daqui a alguns dias.

 

            *

Ela é pontual, mas tem medo, lembra do namorado, não quer que o que experimenta com ele se confunda com o horror do metrô. Foi ele quem sugeriu que ela viesse me ver.

Tudo isso é importante, mas serve para evitar aquele “se pelo menos…” O que poderia me tomar está agora claro para mim: a vontade perversa de defrontá-la com o disparador desconhecido, assistir a esse orgasmo. Em torno desse estranho em mim e nela, espreitando-o, mas seguros de não submergir nele, ela continua a falar, eu escuto. Aos poucos ela dá nitidez, precisão. “Alguém que cochila.” Eis o disparador do incômodo. Silenciam os pensamentos em mim. Recosto-me na poltrona, vou fechando os olhos e percebo, apavorado, que estou oferecendo a ela o espetáculo de “alguém que cochila”. Sobressalto. Para pôr palavras aí, digo: “alguém que cochila, como?”

Ambiguidade. “Como, isso?” ou “Não como eu, não é?”

Ela sorri. Devo ser transparente.

“Justamente. As pessoas estão cansadas no metrô, muitas vezes alguém fecha os olhos, a cabeça vai tombando aos poucos, o queixo…”

Ela pára de sorrir, a voz treme. Está perto do seu monstro interior.

“…o queixo no peito. É isso que eu não aguento. Basta perceber, mesmo de relance. Isso me toma, meu ventre, eu inteira.”

Tenho vontade de protegê-la. De quem? De mim? Ficamos aí por hoje. Quis precisão, e a tive. E agora? Ela é tomada por excitação, transborda até o orgasmo, diante do espetáculo de alguém – homem ou mulher, jovem ou velho – que se curva e cuja cabeça se inclina sobre o peito. Imagem nítida, saturada.

 

*

Foram necessárias mais duas sessões para que esse quadro congelado, achatado, se abrisse. Sessões em que estive em luta interior contra minhas construções, hipóteses, fantasias, para deixar espaço às suas palavras. Passamos pela fábrica, pelas amigas, o namorado, a casa, irmãos e irmãs, entre nove e treze anos. À noite, os deveres. Sua mãe, cansada. E, enfim:

Tem quinze anos, seu pai partiu há dois, ela começou a trabalhar na fábrica. É tarde da noite; deitou os pequenos, arrumou a cozinha, e sua mãe está sentada em frente à TV. Exausta, a mãe inclina a cabeça e o queixo desce em direção ao peito. Desperta com um sobressalto, olha a TV e, de novo… Ela contempla a cena com emoção: agora tem salário, vai cuidar da mãe, que poderá trabalhar menos e, enfim, descansar. Ela está ali, de pé, orgulhosa e perturbada. Diz, em silêncio: descansa, dorme, eu cuido. Beija com carinho o rosto que se curva, devagar, para a frente.

É uma sessão tarde da noite. Passei da hora, mas não me importo. Instalou-se um silêncio. Hesito. Comentar? Designar? O quê? O lugar do pai, subrepticiamente, triunfalmente ocupado? A ereção fálica do seu corpo ereto? A “cena originária” e sua vibrante imobilidade? Todas as palavras que vêm a mim só abrangem uma parte do mistério. Não! Habitada novamente pelo que ali estava enterrado, a imagem está viva, murmurando, farfalhando, dada.

 

*

Não pensamos em marcar outra hora. Não a vi mais. Só uma carta, alguns meses depois, na qual ela me diz do choque, naquela última sessão, da evidência da absoluta identidade nas duas cenas, com sua mãe e… “o metrô”, “o mal-estar”.

Ela não “compreende”, mas está segura. E sente que essa identidade não habita só essas duas cenas, que vai longe em sua vida, que é como um poço, ou um eixo, vertical, de todas as suas sensações.

Diz também que algo curioso se passa: as cenas recuam. No metrô, ela às vezes sorri do que agora não passa de uma lembrança, quase longínqua; e, quando tenta evocar os momentos em que vela por sua mãe sonolenta, subsiste apenas a ternura. As imagens perdem a carne e os contornos.

Por que ela me escreveu, em vez de vir me ver? Isso tem a ver com essa dissipação das imagens, ou com uma espécie de… arrependimento. Ela tem quase vergonha de sua nostalgia, e não só porque é estupidez lamentar o desaparecimento do que a fazia sofrer tanto. Todas as vezes em que ela pensou em vir me ver, sentia que esse desejo nascia do arrependimento, do lamento, que ela queria guardar, reencontrar o fantasma. Então ela se disse não.

E, enfim:

 

“Outra coisa que eu queria lhe dizer e que me veio depois do nosso último encontro, ao sair. Eu o vi, sim, na faculdade, há dois anos, mas também em outro lugar. Você tinha vindo, num pequeno grupo, trazer mantimentos à fábrica. Eu estava no piquete de greve, você certamente não se lembra. O encarregado interveio e nós os deixamos ir embora. Eu o olhei, enquanto partia, você tinha um ar tão decepcionado… não, tão cansado, foi mais forte que eu, corri para lhe explicar. Você lembra, agora?

Aí está. Obrigada por ter-me ajudado. Quem sabe um dia?”

 

*

Tradução: Margarida Cavalcanti