Metafísicas do Olho: Variações II, por Cesar Kiraly

Este Artigo em PDF

Cesar Kiraly é professor de Teoria Política e Estética no Departamento de Ciência Política da UFF.
________________________________________________________________________

Resumo

Podemos partir de um pequeno enunciado do Sr. Hobbes para podermos apresentar algumas reflexões sobre a ontologia da política. Coube a ele produzir uma arguta distinção entre os modos da cidade. Hobbes identificou dois modos da cidade. Ao primeiro deu o nome de cidade natural e a outro de cidade instituída. Poderíamos arriscar e dizer que a primeira é a cidade sem cor e a segunda é a com cor. A cidade sem cor tem como característica principal ser incapaz, ou ter uma reduzida capacidade, de instituição. Nela os homens são convocados a obedecer, de um modo derrotado, simplesmente porque precisam sobreviver. O sentimento moral que melhor descreve a cidade sem cor é a humildade. Na cidade com cor existe uma atividade mais orgulhosa, os homens são conclamados a reconhecer o infinito temporalmente, e a ele oferecem submissão. Existe, em contrapartida, um orgulho na humilhação. Hobbes nos diz que a política não está em todos os cantos, pelo menos a acepção heróica da política, mas tão somente na cidade com cor. As duas cidades possuem diagramas, mapas e leis, mas apenas na cidade instituída as paixões humanas predominantes estão misturadas nas cores. Contudo, as duas cidades são transfigurações civis da natureza humana. Mas apenas na cidade com cor a transfiguração civil teve sua atividade política ligada às crenças dos governados.

Palavras-Chave

Crença, Instituição

Abstract

We can start from a small statement of Mr. Hobbes to be able to offer some reflections on the ontology of politics. It was up to him produce a shrewd distinction between the modes of the town. Hobbes identified two modes of the city. To the first one he gave the name of natural city and of instituted city to the other. We could take a risk and say that the first is the city without color and the second is the one with color. The city without color has as its main feature being unable, or have a reduced capacity of institution. In it, men are summoned to obey, in a way defeated, simply because they need survive. The moral sentiment that best describes the city without color is humility. In the city with color there is a prouder activity, men are urged to recognize the infinite time, and offer submission to it. There is, on the other hand, a pride in humiliation. Hobbes tells us that politics is not on every corner, at least in the heroic sense of politics, but only in the city with color. The two cities have diagrams, maps and laws, but is only in the instituted city that the predominant human passions are in mixed colors. However, the two cities are civil transfigurations of human nature. But it was only in the city with color that the civil transfiguration had its political activity related to the beliefs of the governed.

Key Words

Belief, Institution

________________________________________________________________________

I

Podemos partir de um pequeno enunciado do Sr. Hobbes para podermos apresentar algumas reflexões sobre a ontologia da política. Coube a ele produzir uma arguta distinção entre os modos da cidade. Hobbes identificou dois modos da cidade. Ao primeiro deu o nome de cidade natural e a outro de cidade instituída. Poderíamos arriscar e dizer que a primeira é a cidade sem cor e a segunda é a com cor. A cidade sem cor tem como característica principal ser incapaz, ou ter uma reduzida capacidade, de instituição. Nela os homens são convocados a obedecer, de um modo derrotado, simplesmente porque precisam sobreviver. O sentimento moral que melhor descreve a cidade sem cor é a humildade. Na cidade com cor existe uma atividade mais orgulhosa, os homens são conclamados a reconhecer o infinito temporalmente, e a ele oferecem submissão. Existe, em contrapartida, um orgulho na humilhação. Hobbes nos diz que a política não está em todos os cantos, pelo menos a acepção heróica da política, mas tão somente na cidade com cor. As duas cidades possuem diagramas, mapas e leis, mas apenas na cidade instituída as paixões humanas predominantes estão misturadas nas cores. Contudo, as duas cidades são transfigurações civis da natureza humana. Mas apenas na cidade com cor a transfiguração civil teve sua atividade política ligada às crenças dos governados[1].

Eis o enunciado: “[…] [Dois tipos de cidade, um natural […], e outro instituído, que também pode se chamar político[2]”.

Pois bem, se desejamos uma reflexão sobre a ontologia da política devemos restar conscientes de que será uma análise regional dentro da ontologia social. Na política a crueldade possui um papel na instituição que dificilmente poderá ser encontrado em outros fenômenos sociais. Contudo, esta ontologia regional do político exerce efeitos sobre uma cadeia sistemática da vida social. Porque toda vez em que um fenômeno social se institui, pelo menos a parcela dele que marca no tempo uma significação a ser perdurada, exerce uma modalidade de política, ainda que política não seja, no sentido dado por Hobbes à cidade com cor, e sua inteligibilidade passa a ser totalmente obtida pelo vislumbramento da crueldade. Noutras palavras, a fixidez dos fenômenos sociais possui dependência da modalidade política da crueldade. Assim, se a política diz muito pouco sem uma ontologia social, os fenômenos sociais são opacamente percebidos sem uma arguta crudelis meditatio. Marcas na pele, cobranças de impostos, físicas partidárias e símbolos pouco ou nada querem dizer sem aquilo que diz a um significado que ele deve se manter intocado, na medida da realidade, a maior quantidade de tempo que puder, e que deve descer tão profundamente quanto for tolerado.

A crueldade lança alguma luz sobre a imagem do corpo sempre utilizada pela filosofia política. Para dela termos alguma consciência, pensemos que Spinoza ligava a liberdade a uma espécie de saúde, ao passo que à servidão era associada a uma interrupção patológica de nossa potência metafísica. Ou, mesmo em Hobbes, a infinidade de pequenas vontades que cedem a uma grande vontade que as organizará como um organismo de funções atribuídas. Não só a imagem do corpo segue a tradição de Descartes de pensar a homologia entre os modos do pensamento e do corpo, mas, sobretudo, segue a nobreza que ele atribuiu ao conceito mesmo de imagem. Sempre somos induzidos a pensar que a relevância da imagem do corpo para filosofia política se deve à capacidade do filósofo metaforizar uma série de problemas, referindo-o aquilo que conhece melhor, o seu corpo, ou o corpo dos outros. Mas não seria demais pedir que se atentasse também para a imagem, claro que ela precisa ter corpo, mas antes da imagem do corpo ter qualquer forma, ela é, sem metáfora, uma imagem completa. Assim, a imagem obriga o corpo a tomar forma. Por vezes segue a forma do corpo humano, se tivermos pretensões morais, a forma do rosto humano, mas o caso é que a imagem se institui sobre o corpo. Existe, pois, uma crueldade da imagem com relação ao corpo.

Mas ainda assim, parece que a crueldade da imagem contra o corpo também pode nos dizer algo sobre os tipos de cidade, sobre os quais Hobbes nos falava. Porque a cidade com cor, de alguma forma assume alguma autonomia no modo pelo qual os seus diagramas – fronteiras, leis etc. – são pintados sobre o chão e sobre o espírito. Assim, a cidade sem cor, não é verdadeiramente uma cidade sem imagem. E desta forma, o estar sem cor, concerne ao transpassamento da cor pelo espírito, sem nenhuma ação direta da imaginação dos muitos, parece, nesse sentido, que a cidade sem cor, na verdade, é aquela que cede o controle da cor a um homem só. Se a instituição tem que ver com a crueldade, e se a imagem exerce também uma crueldade sobre o corpo, nada mais lógico do que enxergarmos uma associação entre a crueldade e imagem. Eis um largo conjunto de problemas ontológicos, de natureza social e política.

Nesse sentido é que devemos dizer que as dificuldades das ciências sociais, pelo menos as que emergem do tipo de reflexão que tentaremos fazer, são radicalmente de natureza ontológica e não metodológica. Dentre as possibilidades de ação ontológica com as quais podemos nos envolver, a que nos interessa mais é aquela que concerne às estratégias discursivas de silenciamento das investigações sobre o ser, mais especificamente nos preocupa a intensidade do ataque às buscas por significação. Nada nos levaria a crer por uma incompatibilidade entre ontologia e metodologia, se o discurso metodológico não se afirmasse num silêncio ontológico. Parece que a simples enunciação ontológica, paralisa a metodologia com um profundo medo de ser percebida frívola. A voz baixa do método pode ser entendida como vontade de redução dos objetos à regularidade. Para que os objetos possam ter voz, eles não podem falar muito alto. A voz baixa do método, contudo, encontra a rivalidade da voz ainda mais baixa e o corpo ainda mais frágil do metafísico. Contudo, a elevação da voz pelo metafísico, dá-se apenas na elevação da voz dos objetos, e assim o faz, para que não possamos dar excessivo crédito à separação entre sujeito e objeto. Assim, lendo a ontologia no contexto das ciências sociais, poderíamos dizer que ela responde por uma espécie de pré-história, o que faz com que a sensibilidade depende de um veio metafísico e nunca metodológico. Mas o metafísico no peito do cientista social, também responde pela pós-história da disciplina, pois não se exime de ser alterado pelas perspectivas do tempo, e não só da história, em que é levado a falar. Sim, há ontologia nos dogmatismos, mas há ontologia, sobretudo, e com muito mais razão, na crítica aos dogmatismos. Há também uma concepção de ser na regularização irreflexiva dos objetos sociais, por essa razão é que não existe compartilhamento entre mundo ontológico e metodológico, mas tão somente conflito. A resposta ontológica à ontologia metodológica se dá no apontamento da falsa necessidade que uma ontologia da regularização representa.

Dessa forma, podemos insistir que essa é uma reflexão de ontologia política, que se estruturará por sobre planos enunciativos. Ela se dá sobre textos escolhidos a dedo, pelas características fortes da elocução, sobretudo, em função da intensidade de suas cores, ou de seus fortes relevos. Num primeiro momento, refletiremos por sobre a ontologia das ciências humanas, realizada por Michel Freitag. A partir daí a intimidade assume o comando dessas variações, como um conceito assume, enquanto imagem, o domínio por sobre um corpo, e a intimidade de Günter Grass assume, enquanto tábula rasa, de enunciação sobre a crença, a prevalência das nossas atenções.

II

Na pré-história da ciência social não há senão “branco ou preto, que ressoa sobre o silêncio da insignificância[3]”. Se aplicarmos o esforço de redução cética sobre a matéria ontológica, por certo que temos senão enunciado sobre o início do significado. Não é surpreendente que os elementos de fundação da política estejam na pré-história da ciência. Porque a pré-história, em algum sentido, é a história do olho, a formação do olho, a preparação da primeira vez, a pré-história é olho da história, por sobre os elementos compositivos. Não só do olho, mas da visão. A pós-história, do outro lado, é sempre a ficção científica que se mistura com a gênese mesma da ciência, algo como uma escapadela do delírio ocultado, inclusive, no apagamento metodológico das significações. Nessa pré-história, as cores são os elementos compositivos dos diagramas sociais e públicos e o ruído é o nascimento da voz da significação política[4].

Assim, no caso das ciências sociais, a idéia de encobrimento ontológico é percebida como ainda mais perniciosa, pela sensibilidade metafísica. Deve-se perceber que não falamos em esquecimento do ser, porque a idéia de aletheia, que pode ser traduzida por verdade, ou, como mais rigor, por desesquecimento, rivaliza com a metafísica e com a virada cética da imagem produzida por Descartes, com a qual nos ajustamos. As ciências sociais operam com a expressividade, porque discursos da significação; nelas o encobrimento ontológico implica em perdimento composicional. Talvez como um pintor que não se importa com as cores que usa e nem onde as guarda. O encobrimento exercido pela regularidade é o soterramento da significação nela mesma. Por essa razão, cabe insistir que as ciências humanas, em especial as sociais, são e devem ser discursos ontológicos, ou seja, narrativas sobre a significação.

Mas vejamos o problema ontológico. Podemos formulá-lo da seguinte forma: qual é o estatuto da realidade da sociedade (do social, da história, do intrinsecamente significativo […])? Qual é seu estatuto de realidade no momento em que admitimos que o ser da sociedade compreende o ser da palavra, e, por conseqüência, o ser da percepção, – que o ser da sociedade compreende o ser da referência ao ser[5]?

Noutras palavras, quais os elementos que a significação se vale para imprimir sobre a experiência traços dotados de alguma capacidade de permanência? E por que essa experiência é diagramática, posto que nos incomoda a abstração? De que forma ver uma experiência que se apresenta à regularidade sem ceder ao apelo do método de reduzi-la a apenas um de seus efeitos? Se sociedade e palavra admitem alguma forma de homologia, presente, mesmo nas atividades perceptivas, devemos admitir que a ontologia social, na permanência, é compreendida como operação da cor, da enunciação e da crença. Não nos importa ainda a cultura, estamos na pré-história, mas nos é relevante o fato de que os sentidos sociais oscilam no diagrama do preto e do branco, entre o barulho e o silêncio das enunciações e na ligadura ou soltura da crença. Nesses três modos da atividade, estamos diante dos três modos da instituição: o preto, a alucinação e o grito[6].

Por isso, “[…] o problema do ser se torna o problema da verdade” na proporção em que “[o] caminho do conhecimento é ontológico”. Na passagem do pré-histórico para o histórico, o encobrimento significa tornar opacos os elementos pelos quais a experiência é composta, no vislumbramento do que se convencionou chamar de relação do sujeito com o objeto exterior. A crítica da relação entre sujeito e objeto não significa, todavia, o abandono dessa relação. Se por um lado, a separação entre sujeito e objeto inicia, pela religião, pela moral abstrata etc., algo como o encobrimento da política, nela também habita a possibilidade moral da natureza humana figurar a si própria em quadros imaginados. O hipostasiamento da relação sujeito e objeto, tal como a sua ausência, torna a figurabilidade da natureza humana bastante precária, quando não impossível. O fato é que o sujeito alterado em sua percepção de si, compreendido como resultado ativo da experiência, e, por isso, largamente despertencido de si mesmo, acaba por dar guarida a um objeto outro. Ou seja, a ciência não precisa dormir o sono do hipostasiamento do olho e daquilo que vê. A presença dos problemas de composição no objeto faz do sujeito uma instância de aprofundamento metafísico, por sobre a experiência, uma forma de afogamento adorável em cor.

 Em uma palavra, a função de significação é indissociável de uma individuação subjetiva. O que é problemático aqui, por outro lado, é a natureza e logo o modo de constituição da significação e dessa individuação[7].

Freitag, por exemplo, oscila entre a gramática do indivíduo e a da individuação, mas parece que não está a tratar de indivíduo, mas sempre de individuação, o que nos leva a pensar que se sempre descreve o transcendental como um espaço deixado vazio pela sociabilidade e que é preenchido por uma intensidade social, mas que não possui conteúdo além da expressividade. No vocabulário do indivíduo a relação é completamente outra, o sujeito se expande para a sociabilidade, ainda que alguns espaços permaneçam vazios por falta epistemológica da consciência. Assim, ainda que Freitag faça uma sociologia do espírito não podemos dizer que ela seja dogmática. O espírito está fora.

Então, eu me refiro apenas, em falando de ciências sociais, no que diz respeito ao desenvolvimento que visa o conhecimento da realidade humana, social e história no que pode ser compreendido na tripla dimensão cognitivo, normativa e expressiva[8].

Não temos com o que discordar da posição de Freitag, pois qualquer que seja o enunciado social e político, ele possui em sua composição, em decorrência da natureza de linguagem, abertura à cognição e à expressão. Mas não é certo dizer que a única passagem da cognição à expressão – e esta estrada é de via dupla – se dê pela normatividade, compreendo a palavra em seu sentido filosófico, na medida em que toda norma só possa ser compreendida em relação com a sua filosofia da história, uma vez que toda norma deva estar referida a uma finalidade, não se pode dizer que todo enunciado tenha uma finalidade estrita. Quando dizemos a nossa posição de mundo, e quando defendemos que ela é a melhor, ou quando estamos dispostos a fazer o que pudermos para que ela seja bem implementada, os enunciados nessa direção só serão normativos se a nossa concepção de experiência julgar que as coisas não podem ser diferentes, e que as nossas ações se movem na direção daquilo que participamos, e não daquilo que escolhemos. Por essa razão o melhor é dizer que a passagem entre as partes cognitivas do conhecimento da vida humana e a expressividade da linguagem se dá pelo conteúdo e não pela norma. Um conteúdo pode ter natureza de norma, se estivermos dispostos a trocar a teologia pela filosofia da história, ou terá natureza regular se quisermos deixar o espaço da teologia vazio, ou, melhor dizendo, cheio de indeterminação.

Pois bem, se o sujeito pertence à experiência mais do que a si mesmo, se não há uma ilha completamente deserta, ou quando sim é uma ilha oceânica, mas, sobretudo, quartos escuros; a investigação do objeto não pode ser senão escavatória, geopolítica num sentido bem específico, uma evidência dos grânulos dos princípios de composição. Algumas perguntas surgem no horizonte:

– Quais os elementos da natureza humana, fundados na experiência metafísica do sujeito, são mobilizados na criação e na crença em um objeto? Do que são feitos os objetos intelectuais? Como a instituição de um objeto se institui? Como se determina o quando?

A sociabilidade ela se oferece à compreensão pela linguagem. Mas isso quer dizer que ela se dá a perceber pela crença e pelo diagrama, termos homológicos, porque pictóricos, seja em intensidade, seja em pigmento. Mas a linguagem ontológica é sempre binária, e só pode ser iniciada sob dinâmicas de zero e um, preto e branco, de presença e ausência, e, até mesmo, identidade e diferença. Cabe lembrar que a redução das marcas ao mínimo de escrita é uma constante para se entender qualquer processo de significação. Por essa razão é que se pode afirmar a binaridade homológica entre enunciados, ruído e silêncio, cor, preto e branco e crença, adesão e soltura. A percepção maior, contudo, é que o ser da diferença e da presença é histórico, em todas as suas variações homológicas, enquanto que a metafísica da cor demanda uma teoria da composição pictórica da política. Existe uma história das enunciações, das crenças e dos usos cromáticos, e tal temporalidade é descrita de forma mais eloqüente na modalidade instituinte. O que seria uma crítica radicalmente ontológica à ontologia? A afirmação de que uma história do ser não prescinde do estudo da composição do que permite o ser estar sendo.

Merleau-Ponty também defende a transfiguração do sujeito e do objeto, viciosamente hipostasiados, pelo despertencimento na experiência. A existência aqui não é compreendida como um mandamento de prova ontológica para entidades metafísicas, mas segundo uma concepção de plano de pictorialidade povoado por objetos, que antes de serem reunidos em conjuntos típicos, podem ser esposados e compreendidos, sendo revividos[9]. A existência não altera uma idéia, porque não a preenche com uma substância, mas a metafísica do existir atrela aos entes a possibilidade de efeitos colaterais ao existir. A sereia existente não é distinta em substância da sereia que não existe, mas apenas à primeira é permitida uma história de marcas. É a isso que denominamos os efeitos colaterais do existir, a condenação de que as composições poderão aparecer também submetidas a marcas imprevistas. Ao sujeito é dado reviver as marcas pela compreensão. Noutras palavras, conferir ao efeito colateral uma dimensão reflexiva. Pois parece ser esse o problema de Durkheim, a percepção de formas elementares não livra a religiosidade de efeitos colaterais imprevistos, e a afirmação de uma substância pré-elementar nada faz para afastar a colateralidade das marcas, e o reavivamento colateral demanda um estudo de composição acerca do que permite a instituição da elementaridade.

Aqui devemos apontar a diferença, com relação ao ser, entre o encobrimento e o esquecimento. Porque são teses bastante opostas e aqui julgamos pela impropriedade do esquecimento e a sucessiva propriedade do encobrimento. A tese de que a ciência esquece o ser pressupõe a lembrança da verdade, pelo que produz o esquecimento. Assim, a razão da reflexividade seria voltar os olhos da ciência para o invisível, a tese do esquecimento do ser percebe o olho metafísico, mas não como um olho atento, um olho de gosto, mas como um olho transcendente, que traz para o universo da visibilidade aquilo que por natureza seria invisível. Na tese do esquecimento, o olho transcendente precede o olho da visibilidade, e esse faz aquele se esquecer das visões primeiras do espírito. A posição teórica da tese de encobrimento é oposta e circunscrita. Cabe aqui afirmar que a política não nos faz esquecer, mas tira algum fenômeno do campo do olho. Por essa razão, o olho metafísico, na perspectiva do encobrimento, é um acréscimo de gosto fortemente não-transcendente. Aqui se afirma que o método, a moral abstrata etc. encobrem o ser da política, i.e., fazem com que a crueldade da política aumente, onde não pode ser vista. O ser da política aumenta por desatenção.

Contudo, as hipóteses de esquecimento e encobrimento convergem num ponto, ambas julgam que o método reduz a crença à regra[10]. Mas a redução da crença à regra percebida pelo esquecimento faz da ausência a nova presença, buscando no invisível as razões do visível, enquanto que quando percebida pelo encobrimento – na composição do pessimismo moral com relação à política e do otimismo cognitivo – o que não é visto, apenas ainda não está ao alcance do olho. Cabendo, a invenção metafísica de um novo olho.

Há metafísica a partir do momento em que, cessando de viver uma evidência do objeto […] apercebemos indissoluvelmente a subjetividade radical de toda nossa experiência e seu valor de verdade. Nossa experiência é nossa. Isto significa que ela não é a medida de todo ser em si imaginável, mas que, entretanto, é coexistência a todo ser de que possamos ter noção. O fato metafísico fundamental é esse duplo sentido do cogito: estou seguro de que há ser – sob condição de não procurar uma outra modalidade de ser que não o ser-para-mim[11].

A separação entre as ciências naturais e as ciências humanas não faz sentido, se, como Hume e Merleau-Ponty, buscamos um ponto de ancoragem no qual tudo aquilo que se tem é a busca por significação. A metafísica é um saber de reductio e distinções. Por isso, traçar uma história das dissociações entre ciência natural e percepção da natureza humana, nada mais é do que a descrição de um conflito entre interesses e refutações ocasionais. Pois nada leva a crer que uma distinção feita por um homem não implique a própria natureza humana[12]. Nem mesmo o absoluto natural faz sentido, porque reduz, por exemplo, a experiência à perspectiva única da transformação, com os seus absolutos transcendentes, que não passam de delírios de filosofia da história, ou o exercício de uma fraca e controversa vontade de poder. Talvez seja o caso de ser duro com a metodologia como o foi Merleau-Ponty, pois vê nela como único objeto a derrota dos adversários[13]. Mas o absoluto natural, longe de atrasar essa derrota, apenas a acelera. Por essa razão, não há que se falar em outra perspectiva metafísica que não a da imagem. O aparente paradoxo se dissolve, quando lembramos que não há pluralidade, que não na imagem.

A distinção é possível num panorama sem absoluto, até mesmo o absoluto da regra é capaz de acabar com a delicadeza metafísica à discernibilidade na experiência. Por esse motivo a contingência é pressuposto da existência de um olho metafísico. Apenas ela permite levar a sério o objeto disponível ao sujeito, porque nela a hesitação não permite o absoluto da imagem, mas sempre um fragmento de possíveis consolidações. A composição, nessa chave, é sinônimo de parte de um objeto visto, descrito e discernido.

No que concerne à exclusiva regularidade nas ciências sociais existe o privilégio da idéia de comportamento em detrimento do conceito de ação. Defendemos, por outro lado, a composição entre a regra com a crença. Porque a regularidade não pode nunca importar mais do que a significação. A sociologia da compreensão, na qual ser localizada a obra de Freitag, todavia, afasta a idéia de crença, para submetê-la à invisibilidade do espírito. Contudo, não só inventa a densidade do conceito de ação, com o hiperboliza a ponto de inviabilizar o uso operativo da cognição da regra. Num primeiro sentido, o par comportamento e regra, próprio da sociologia da regra, em detrimento do par crença e ação, por nós defendido, permite apenas que se reduza a metafísica à especulação de sistemas de comportamento, dentre outros exemplos, enquanto modo de descoberta de “uniformidade no comportamento político[14]”. Os efeitos na ontologia política não poderiam ser mais devastadores, porque essa redução da experiência à regularidade se vale de um operador de inteligibilidade dos mais importantes, a regra, mas apenas como cavalo de Tróia, para encobrir, com pretensões definitivas, a crueldade na política.

A relação entre crenças e regras é realmente uma das fundações da inteligibilidade. Além do que na inteligibilidade também existe um imperativo moral, pois a percepção da crueldade significa a sua minoração. O modo pelo qual a metafísica sensibiliza os olhos à experiência política consiste na prática militante da afirmação da adesão ao mundo pelo tripé:

  1. Repetição é indício de regularidade,
  2. Regularidade é índice de crença e
  3. Percepção da crença.

A falácia da redução da crença à regra, por sua imoralidade, afirma a extinção do significa, pois a regularidade é índice apenas de regularidade e nada mais. Nesse contexto, a crueldade deixa de ser apresentada pela paixão diluída nas cores instituintes, para ser percebida como monopólio do uso da força e efeito da manipulação burocrática.

Nesse sentido, a regularização da experiência pela dissociação entre discursos duros, com objeto, e discursos “moles”, sem objeto definido, ou objeto que se confunde com o sujeito, não se deve a progressiva metaforização das ciências do homem, mas ao aprofundamento da subalternação pela pecha de “discursos com metáfora”, enquanto a regularidade criaria uma linguagem, por assim dizer, um pouco mais limpa da contaminação metafórica.

De toda forma, algo nas ciências humanas, por outro lado, aproveitou-se da subalternação, e da metáfora, para gerar um território discursivo, no qual tudo pode ser ouvido com tolerância, com quem ouve um louco, porque nela o princípio regente seria algo muito menor do que a descrição. As ciências humanas compactuaram com a redução dos objetos à regularidade – redução essa, faça-se justiça, por ela inventada – ou adotando a perspectiva da regularidade, ou adotando a perspectiva da subalternidade que fala por metáforas. Na medida em que se tornaram descritivas para falar sério e metafóricas para não falar nada e ser ouvida, um dos efeitos da separação foi o completo desterro do absurdo; ou a expulsão do absurdo da linguagem. Duas são as causas do desterro do absurdo: i. O fato de que a descrição estrita, por definição, limita o absurdo pelo uso da perspectiva e ii. O fato de que uma província da metáfora se torna um território de metáforas frívolas. Afinal, são só metáforas!

Não é de nenhuma forma o caso de abandonar a metáfora, mas devolver a ela a literalidade. Ela precisa ser novamente a potência de um novo mundo, e tal só é possível com a tensão espantosa do absurdo. Não é novidade que toda instituição envolve a animação de um objeto, que passa a interagir de modo animista com o sujeito; à ontologia política é necessária essa vida dos entes da imaginação, para que entreguem as suas respectivas crueldades. Num certo sentido é preciso, pois moral, ver a imaginação acontecendo na instituição.

Não temos vida do objeto, teoria, valor e moral em diferentes lugares no plano da experiência. Os objetos são percebidos numa mesma constituição de pictorialidade-moralidade instituída, enquanto marcas sobre um plano. Por isso, o objeto não é somente uma palavra-mundo, pois ele se dá sobre o plano da experiência que, em sua homologia com a cor, é expressivo. O homem de gosto é aquele que se dá conta de que os objetos em suas cores e limites, podem falar. Nesse sentido, a mudança de realidade é muito mais real do que a transformação – fenômeno essencialista por excelência –, porque partido do princípio que um estado de coisas é uma situação pictórica, não há modificação senão numa deformação do sentido, algo como o acréscimo de uma cor ou de um reagente, tanto no que concerne à exposição de camadas encobridoras, quanto na criação de outro plano enunciativo. A transformação, por sua vez, desconhece as causas pictóricas dos estados de coisas, e, nessa direção, é que sua gramática se confunde com as outras formas de encobrimento, tais como a moralidade abstrata, a religião e a burocracia. A crítica pictórica, portanto, reconhece que toda projeção é tentativa de instituição, e que o desenvolvimento da crueldade numa deformação pictórica, consiste numa nova crueldade. Porque a sobreposição de pigmentos acarreta em perdimento da origem. O que não livra de especular, mas nos permite dizer que toda crueldade é crueldade atual. Ou, na mesma chave, dizermos pela não existência de virtualidade cruel.

Assim, a verdade se confunde com o discernível. Por mais que se possa defender modalidades de verdade por correspondência, e Freitag bem o mostra, essas permanecem dependentes do plano de linguagem sobre o qual se instituem. Mas existe na teoria da verdade como eco, algo de mais relevante do que essa convicção trivial, porque a verdade, mais do que se corresponder com o objeto, se corresponde, no sentido epistolar, com a pictorialidade do objeto, muda ou não, e nisso existe forte correlação entre a verdade e os momentos em que a linguagem intensa consegue ser ouvida como literal, e não “apenas” como metáfora[15]. A verdade migrou para a metáfora para se esconder da teologia, mas pode retornar à imagem direta, uma vez vencida a transcendência e a irrelevância da transformação. A verdade é questão de forma, cor e acústica[16].

Não deixa de ser interessante que Freitag defenda uma história das representações, apoiada numa forte temporalidade heideggeriana, que, apesar do tempo do Dasein, possui certo modo cético, nela, não há cosmologia ou filosofia da história. Mais do que isso, em sua sociologia compreensiva, de um modo completamente oposto a Weber, não identifica a representação com a dúvida, atrelando, pois, a representação ao representar. Parece-me que isso significa também que na oposição entre constituição transcendente e a instituição imanente, Freitag se posicione pela segunda. Por essa razão, julgo que posso dizer que há identidade entre sua crítica à desontologização dos objetos e a minha crítica à redução da crença à regra. Posto que ambas apontam e combatem a vulgarização da voz do objeto, a redução da ação do sujeito à perspectiva comportamental e a miniaturização da natureza humana. Esta última não é um fenômeno a ser combatido, mas um projeto político a ser recusado.

Se o uso intelectual das estruturas para a inteligibilidade dos fenômenos sociais parecia pecar por excesso de opacidade, tanto no estruturalismo, quanto no que se convencionou chamar de pós-estruturalismo, elas, nas circunstâncias da reificação, da redução da crença à regra, assumem os contornos de forte restituição da coerência perdida pela linguagem. Sob estruturas, existe a simples dissolução do sujeito (e não o seu perdimento na experiência), o que é um vício intelectual, mas um objeto nunca se reduz a si mesmo, até mesmo, não se reduz à miniatura o velho conceito de natureza humana. Símbolos, signos, mitos, enunciações, gramáticas e discursos ampliam os objetos para muito além da regularidade. Mas se a estrutura é viciosa se comparada a uma filosofia do sujeito, parte desse efeito pode ser anulado se atrelamos a ela a idéia de expressão. Dessa forma, o monopólio da lingüística sem sujeito é quebrado pela enunciação em nome-próprio.

O conceito de tipo ideal será então compreendido numa perspectiva realista, e não nominalista como para Weber, por exemplo, ou mesmo formalista e operacional como para Parsons. Uma segunda evidência toca ao simbólico ou ao caráter conceitual da significação humana[17].

O que ele parece chamar de símbolo é uma espécie de nome-conceito. Em sua demanda por realismo no tipo ideal de Weber, o que está em questão é ter o nome-imagem como um nome-imagem-conceito. Uma abertura para a discernibilidade, portanto, à verdade. Por certo que a invenção dos tipos é uma das grandes contribuições da sociologia ao pensamento, mas é na origem plástica prevista por Weber que mora essa virtude, e não no sucessivo esforço de abrandamento, também por ele promovido, que mora a superação, ela está no atrelamento do tipo a uma experiência pictórica. Nesta mesma chave, como diz Freitag, de forte nominalismo, é que mora a forte intuição que faz do suíço radicado no Canadá um grande pensador, ainda que ele não perceba que o seu sistema depende da plasticidade que recusa. Um símbolo não é um fato de cultura, tão somente, porque tudo é, mas o símbolo é uma das formas pelas quais um bom conceito aparece nos sistemas de crença. De certo que o tipo deve poder muito mais do que ser apenas um nome, mas ele exercita os efeitos de “apenas um nome” no sistema de Weber, porque ele não tinha uma teoria da experiência capaz de bem receber os nomes. Nessa medida é que o realismo proposto é dependente de uma concepção de experiência não pressuposta, não se pode pensar num objeto capaz de se dar aos olhos, sem uma experiência pictórica da qual ele pode adquirir plasticidade.

“O primeiro efeito da filosofia foi operar a objetivação da linguagem, não como dado empírico, nem como sistema instrumental, mas como estrutura expressiva[18]”. Uma vez que temos a significação e a possibilidade de estruturas sociais expressivas, referidas ao sujeito e ao objeto, capazes de ecoar a intencionalidade, só nos falta pensar a Stiftung. A instituição também pode ser compreendida como obra, no sentido de que é sempre precipitação sobre o tempo com necessidade de permanência, ou, melhor dizendo, buscando a instauração de um sistema de marcas reconhecíveis, estrutura, capaz de sustentar a permanência. Uma instituição não pode ser compreendida senão no contexto da ontologia política. Assim, ela se mostrar como uma forma de crueldade, de perversão, até mesmo, na qual existe uma forma de imaginação, que, contando com a variabilidade do tempo, encontra modos de perdurar linearmente, e de se aprofundar enquanto significação. Dessa forma, os eventos da natureza humana que permanecem ou duram no tempo – e não há duração sem permanência, mas pode existir permanência sem duração – são modalidades da crueldade. Não é demais dizer que a crueldade não diz respeito a dor, tão somente, mas ao artifício humano que a faz perdurar no tempo, ou adquirir, perversamente, gosto. A crueldade para ser instituída cria modalidades de encobrimento. Se toda ontologia diz respeito, como nos sugere Mallarmé, ao jogo de dados da instituição do preto sobre a disponibilidade do plano pictórico, o que estamos a sugerir é que parte da imoralidade constitutiva da ontologia da política está contida na estratégia de permanência das marcas. O encobrimento da política ao dissipar os traços e os modos da permanência por sob o entulho da moral abstrata, da religião, da burocracia etc. pode ser percebido como a crueldade dentre as crueldades. À ação moral cabe a responsabilidade de ver a crueldade para lhe impedir o aprofundamento. À imoralidade política é somada a modalidade da capacidade de meditar a crueldade para desencobri-la.

Nas temporalidades da instituição é sobre a duração que a crudelis meditatio encontra o vínculo com a agência moral. Porque a duração apresenta seus rastros ao gosto. Assim, à capacidade da instituição de se aprofundar no tempo, existe a disponibilidade do gosto em perseguir a trilha. Por essa razão Rousseau chama de libertino a todo homem que medita, ao que poderíamos, sem equívoco, chamar de libertino todo homem de gosto. O libertino, no caso, aquele que faz da política a sua ciência, é aquele que lê em silêncio, como percebeu espantado Agostinho a perversão de Ambrósio; ou seja, a crudelis meditativa lê em silêncio a crueldade para desencobri-la com um susto. Na verdade, a ciência da política tem uma centelha de Agostinho lendo a leve movimentação de lábios de Ambrósio, ainda aprendendo a ler sem meche-los completamente, pois uma vez desenvolvida a perversão, de modo perfeito, está instituída a crueldade.

Às instituições é dado, na profundidade, transfigurar a dor em outra coisa, não sei se pode ser uma coisa boa, mas me parece reificação, ou redução da crença à regra, igualmente, pode a instituição organizar a sua permanência na incapacidade de profundidade; essa é uma forma de encobrimento que procura deixar a instituição a salvo do gosto e da meditação. Se existe crueldade na instituição que se aprofunda, há em intensidade pior naquela que permanece na incapacidade de aprofundamento, na regularização do mundo, aquela agulha no braço que já não se sente. Como sabemos que a regra é dependente de uma crença, cabe à meditação inventar as modalidades de perscrutação da crueldade rasa. Noutras palavras, levar sentimento à dor anestesiada.

A Stiftung, na acepção conceitual, pode ser lida como um símbolo[19]. Entretanto, a culturalização do instituído é tão imoral quanto à regularização, porque mantém a crudelis do lado de fora, sob o pretexto de habitação exclusiva de virtudes do lado de dentro. Se o gosto pode alcançar a regularidade, ele, por outro lado, nada pode fazer com a opacidade dos simbolistas. Em última instância, a mística ao interromper a crudelis, inventa um álibi definitivo para a crueldade. Uma blindagem da crença pela divinização, na completa contramão do ceticismo moderno que se esforçou para mostrar que o núcleo da fé é lógico. Por certo que essa percepção tem uma história, mas não se trata de superação, mas uma exposição analítica segundo um plano seqüência. No contexto de uma cosmologia não há que se falar em crueldade. Ela é inventada desde a perda dos princípios de ordem, principalmente pelas fraturas provocadas pelos discursos de transcendência[20].

A instituição é o processo de cristalização da crença, o que poderia ser denominado, aproveitando a tradição psicanalítica, de uma catexia, segundo a qual a pictorialidade do preto, que institui um diagrama político, é misturada à paixão da crueldade. Na catexia o aprofundamento se interrompe, ou a superficialidade regular encontra seu ponto de reprodução irreflexiva, e se prolifera na horizontal. É na catexia que a significação instituinte assume os seus contornos mais definidos. As teorias da constituição e do constituinte, nesse sentido, podem ser descritas como modalidades encobridoras da crudelis. Porque dissolvem o significado atual da crueldade, beneficiando as finalidades históricas da opacidade. Tanto os discursos da multidão dominada, quanto os da multitudo, partem de uma filosofia da constituição. Uma das formas falaciosas de compatibilização do instituinte com o constituinte pode ser encontrada na idéia de que a instituição decorre da constituição. Nela existe sempre a dissolução da visibilidade da crueldade sobre o plano da autoridade. Por essa razão é que teorias da constituição, seja do poder constituinte, ou do poder constituído, pecam por autoritarismo ontológico[21].

Mas qual é o vício extra-encobrimento da teoria da constituição? A despeito do encobrimento da crueldade, o que não pode ser abdicado, pois a crueldade dissolve a natureza humana, a constituição toma o ser como sempre-aí. Seja o de uma multitudo, seja o da decisão. Um ser não está sempre-aí. Ele é feito ou se faz . Por essa razão, o ser não pode ser formalmente constituinte, ele precisa ser instituído, e, sua catexia, por vezes, nos fornece plano de enunciação: “O ser designa o campo de toda experiência possível, de tudo o que não tem nada para se dizer de si, mas se o qual não é possível falar, agora, ou um dia[22]”. A verdadeira ontologia é uma ontologia visível, e ela não começa com o ser, mas com a composição do ser, antes do objeto em átomo, ela começa com a pictorialidade que o ser faz pressupor, e sem a qual ele nada diz. A instituição é catexia. Mas o relevante é saber que a catexia cristaliza a crença, porque oxida os seus elementos. Ou seja, ela se faz regular desde a crença que se regulariza.

Ainda que seja possível ler Freitag na busca de outros sentidos, a solução que apresenta à reificação é tão criticável quanto à tendência de metodologia. Ele apela segundo um fraco e inconsistente anacronismo da seqüência, ao que poderíamos denominar de simbolismo mitologista. A estratégia básica do mitologista consiste em transportar o princípio de ordem da cosmologia, da physis, para a cultura. Por essa razão o mitologista não consegue produzir uma crítica da crueldade, ele se perde, ou, não a reconhecendo, ou, adorando-a, porque ao invés de centrar a sua análise sobre a relação visibilidade e visualidade, atem-se na duplicidade entre a visibilidade e o invisível.

Ao mitologista é vedada a crítica da crueldade, que se mantenham longe da ciência da política, para o bem de todos, porque ele não pode ver seu objeto. Se dotado de um olho metafísico, padece de cegueira seletiva. Em sua imoralidade inocente, que a faz maior, a crueldade aparece sempre justificável, sempre como cultura. Aos olhos do moralista aparece uma interrogação inevitável. “Ora, o que ela haveria de ser?” Ao mitologista é vedada a crudelis meditatio, porque substitui o gosto pela sensação de absoluto (sentimento oceânico ou analogia universal).

No que concerne à linguagem, o mitologista a pensa sempre como acesso e mediação, teatro, entre o homem e a ordem. Nesse sentido, o homem, é o ser da linguagem a utilizar as suas significações. Nenhuma há nenhuma novidade nisso, com relação às posições que defendi. Contudo, não ocorre ao mitologista pensar que a presença alegórica dos mitos não apaga os contornos de suas composições, que não é primitiva, mas elementar. As enunciações, as crenças e as cores se relacionam por homologia e não por metáfora. Nesse sentido, para compreender a sociedade através de mitos, não há que se olhar para os seus conteúdos ou equivalentes simbólicos, mas à dimensão estética. Pois bem, o mitologista é menos adversário do que aquele que reduz a crença à regra, mas tão somente em função de uma virada histórica. A vontade de poder não os distingue. No fim, o mitologismo abriga aos de alguma forma ressentidos com o tempo e aos platônicos. Mas o problema maior é quando o cansaço mitologista com a imaginação produz, nos esteios de resistência à redução da crença à regra, o abortamento do pensamento da criação de mundos. Ou pior, o constrangimento com a inventividade. Ainda que ninguém tenha muito paciência com os, pejorativamente denominados, pós-modernismos, o mitologista não só os relega ao riso, como interrompe a capacidade conceitual do que se poderia denominar de contemporâneo[23]. Este é o grande perigo do culturalismo.

Além das diferenças, o mitologista e o cético estão juntos na oposição à crença reduzida à regra. Por certo que é uma estranha composição de forças, que põe o mitologista, e sua cultura, ao lado do cético, e suas cores. Uma estranha composição de forças, porque entre os dois existe uma fratura. O cético prefere ver e o mitologista, escutar. Mas ambos se opõem a uma propriedade exclusiva do mundo objetivo. O olho metafísico do mitologista é um olho torto e perigoso, demente, é um olho que escuta.

III

Nós não fazemos uma coisa dessas

Deve ser perguntado:

O que falta ao culturalista e sobra ao cético, partindo do princípio de que ambos se opõem à redutibilidade da crença à regra?

Ao culturalista falta uma investigação da natureza humana ligada à crença. Ele, por equívoco, confunde a natureza humana com o homem, e, portanto, atrapalha-se na distinção entre uma teoria da crença e uma teoria da cultura. Não precisamos de todo o vocabulário estético e moral do séc. XVIII para entender as fraquezas filosóficas do culturalismo, basta-nos o jogo de expressões ligado a crença, a natureza humana e ao mundo. O que significa que nenhum dos termos pode destruir o outro para que exista efeito enunciativo de sustentação da história. Assim, é preciso ter crença, natureza humana e mundo para ter história como representação da crença, da natureza humana e do mundo.

Para sustentarmos a necessidade dessa articulação, operaremos com o experimento de dissolução da crença encontrado no primeiro volume do livro de memórias de Günter Grass, Nas Peles da Cebola. A referência à existência de camadas da memória é relevante, porque nos sugere que existe algo de arqueológico na decantação das crenças. Mas a arqueologia não deve ser compreendida apenas em termos de deposição. Não deve ser compreendida como as camadas de Roma, nas quais a cidade nova é sustentada nos detritos mais antigos. Mas sim como uma arqueologia pictórica, segundo a qual a sobreposição das camadas realizam o efeito de pigmentos acumulados e acrescentados sobre o plano da experiência. Não há transformação, apenas em sentido impróprio, no acréscimo de pigmentos por sobre a pictorialidade da experiência, mas há mudança. As camadas sobrepostas se misturam e as cores se fundem e a separação das cores fusionadas se faz na aplicação da reductio pela imaginação, mas nunca de fato. O que acontece, por assim dizer, permanece vivo nas cores do presente, ainda que possa ser neutralizado por outros pigmentos, o que não impede que composições, esperadas ou não, reavivem o passado. Temos a tendência a entender a relação entre os pigmentos como integração entre camadas de tinta a óleo, e realmente essa é a imagem mais esclarecedora, contudo faz parte do pigmento a sua estratégia de interação. No plano seqüência histórico, podemos dizer que por vezes novos pigmentos são recebidos por camadas endurecidas, assim, a interação é menor, mas a umidade, ou reagentes, pode fazer com que novos pigmentos se confundam e realizem sentidos transversais entre camadas.

Para mostrarmos a arqueologia pictórica trazemos, como foi dito, algumas passagens das memórias de Günter Grass, antes, pelo caráter controvertido – não deixam de ser uma literatura de testemunho, a exemplo de Lévi, Kertész ou Antelme e da recusa a ser uma literatura de confissão, a exemplo de Agostinho e Rousseau –, depois, pela narrativa internalista do processo de dissolução pictórica das crenças, o reagente enquanto elemento corrosivo. Lévi e Kertész, por um lado, mostram de dentro a dissolução do homem e da natureza humana. Ainda, no que concerne ao mundo, narram a dissolução do mundo opressor, de fora dele, como vítimas. Grass, por outro, narra a dissolução do mundo opressor por dentro, como algoz, na agência ativa da pictorialidade do sistema de crença corrosivo, ele participa das cores[24].

Existe, demonstrada no texto de Günter Grass, uma educação pela pedra, segundo a qual se explora o modo pelo qual acontece a adesão a um sistema de crenças, mas não como momento de tomada de decisão, mas enquanto feitura de si contigua a composição da crença, depois evidencia alguns modos de oposição do acreditar, individual e voluntário, ao crer, coletivo e inconsciente, não importando bem as razões, e, por fim, mas de maneira revisitada, o surgimento da duvida, representando o início da destruição dos artefatos deixados pelos sistemas de crenças. A duplicidade entre crença e dúvida, e a insuficiência decompositora da dúvida frente à crença cristalizada, realiza em Grass, um pouco por seus méritos como pensador, uma gramática expositiva da experiência. Não é a toa que o movimento de Oscar, n’O Tambor, seja muito semelhante ao de Grass[25]. Se Oscar é aquele que não tem crenças, que não é bem humano, em Grass há o homem que não pode deixar de respirar ou crer, mas prendendo a respiração para suportar a decomposição de um andaime de crenças, para a instituição de um outro plano pictórico, ou uma nova camada cromática. Não se trata, como na ficção, de ter a dimensão completa do personagem, consiste, na enunciação em primeira pessoa, de perceber a angústia frente à impossibilidade de substituição de um objeto social, e sim da forte necessidade de agüentar que o próprio plano do mundo seja corroído, e que isso seja o melhor[26]. Apesar das ilustrações feitas por Grass em suas memórias serem efetuadas em pastel, a descrição das imagens ocorrem sob uma dinâmica de tinta a óleo[27]. O que se apercebe é que a dissolução das crenças deve secar enquanto massa cromática, com valor, mas sem forma, para que, sobre ela, os novos pigmentos possam estabelecer, com pouca causalidade histórica, alguma semelhança de família instituinte com um outro mundo[28].

Sim, mesmo que a deformação tenha me seduzido, ao olhar para trás e viver mais uma vez o que é digno de crença e adquire existência no máximo quando escrito no papel, quer dizer, mesmo que na realidade mais rasa esse encontro digno de ser ouvido não tenha chegado a acontecer, ele ainda assim se realizou como imagem para mim; e a imagem dura, palpavelmente próxima, permanece, como se fora ouro do trompete, livre de qualquer interpretação, e dispensa qualquer dúvida negativa[29].

A consciência das crenças é dependente do vislumbramento das imagens. Mas por quê? Porque, como já via Hume, a crença é um tipo de imagem sólida. Uma idéia que se apresenta como um objeto frente aos olhos. Assim, a crença é uma imagem sólida como a instituição é uma crença que se cristaliza. Existe, nas estratégias sociais da crueldade, um forte ímpeto de apagamento da composição, algo como uma progressiva perda do contraste da instituição como cristalização de crenças, da crença como solidez da idéia e da idéia como combinação entre cores potenciais do diagrama e as paixões. Grass revisita alguns momentos de sua vida sob o modo literário de uma biografia – um livro de memórias – , mas sem a consciência pictórica de sua própria experiência – ainda que apresente, por formação e outras razões, uma intensa consciência pictórica tout court –, o que torna a dúvida um dos movimentos mais relevantes do espírito, sem ela sua narrativa seria apenas biográfica, estariam limitados os efeitos de sua enunciação. O movimento da narrativa de Grass, se a ela se acrescenta a consciência pictórica da dinâmica enunciativa crença- dúvida-crença, faz saltar aos olhos a intimidade enunciativa, que concerne, justamente o que atinge, a falta de limites a priori para os efeitos da enunciação.

Se a ontologia da crença resta evidente, finamente, na estrutura da narrativa, também no conteúdo a relevância da ação da consciência, por sobre a plasticidade social, assume contraste. Neste evento escolhido, Grass narra o seu aprendizado militar, enquanto jovem nazista. Mais especificamente, os movimentos de aprendizado de manejo da carabina 98. Ele relata que os soldados deveriam lidar com a carabina com orgulho, e era o que faziam e demonstravam. “Mas aqui é dito ‘nós’ de um modo acentuado e repetido, ainda assim uma exceção se põe de través diante da maioria formada e facilmente ajuntada […]. A exceção era um rapaz bem alto, louro como o trigo, de olhos azuis e no perfil com o crânio tão longo como de resto apenas as tabelas para a criação da raça nórdica os conseguiam reproduzir exemplarmente em imagens[30]”. O único atributo faltante a esse “[…] Siegfried, semelhante aos deus da luz Baldur […]” era a capacidade de cumprir a ordem de manutenção e manejo da carabina 98. Constantemente, esse soldado em formação, assistido por Grass, este sim com a carabina 98 bem mantida em mãos, deixava a arma cair quando lhe forçavam a empunhadura. “Ele não queria participar dos exercícios de manejo das armas. Mais do que isso: recusava-se a tocar a coronha e cano da arma. E pior: se a carabina lhe era apertada às mãos, pelo sempre mortalmente sério segundo-sargento, ele a deixava cair. Ele ou seus dedos agiam pedindo punição[31]”.

Grass descreve que o início do processo punitivo produzia certa admiração entre os soldados, pois empunhar a carabina era tão simples e as punições muito duras. Dentre outras coisas, a rebeldia se fazia admirar pela capacidade de perseverança no sofrimento por causa de uma convicção, muito embora dela aparecesse apenas a repugnância por armas. Contudo, existe algo de pueril nessas primeiras punições, envolviam quase sempre o nojo, como a limpeza das botas sujas de lama dos oficiais e o esvaziamento das latrinas (catapultar o mel, Grass nos informa sobre o jargão da caserna). “Mas quando por causa dele, foi ordenada punição geral, e todos nós fomos esfolados sob o sol inclemente até cair, todo mundo começou a odiá-lo[32]”. A partir desse ponto as punições se tornam mais cruéis. Seus pares começam a espancá-lo, a açoitá-lo metodicamente, mesmo sem comando oficial. “Mas nem as surras, nem as chicanas prometidas, nada foi capaz de obrigá-lo a enfim botar mãos à arma[33]”.

Mas esse mundo descrito por Grass, ainda não é o mundo de Primo Levi, muito embora, num plano seqüência, possa nos dizer, por um vínculo de forte coerência pictórica, que o plano concentracionário se institui sobre a ambigüidade do por quê. Se o mundo descrito por Levi não tem por que, neste, a autoridade ainda pergunta o porquê do descumprimento da regra. Na narrativa de Levi vê-se a pergunta do por que frente ao esbofeteamento quando da tentativa de pegar o caramelo de gelo para beber. Levi pergunta: – Por quê? E o capataz responde: – Aqui não há por quê.[34] No mundo de Grass o capataz pergunta ao soldado que não empunha a carabina 98. “Por que o senhor age assim, soldado do trabalho obrigatório?” e “Por que você age assim seu idiota[35]?”

Por certo, há uma diferença clara entre a narrativa de Levi e a de Grass, além do fato óbvio de que o primeiro é judeu italiano num campo de extermínio e o segundo é um alemão nazista na caserna; o primeiro está no sem sentido e pergunta de modo agonizante pelo “por que” e o segundo é um capataz em potencial que deseja saber o porquê da recusa de adesão do jovem louro, tendo em vista que em seu mundo não existe motivos para a não adesão. “Sua reposta jamais variava, se transformou em expressão e permaneceu citável para mim para sempre: ‘Nós não fazemos uma coisa dessas’”.

Ele sempre usava o plural. Em voz sempre clara, nunca mais baixa, nunca mais alta, que podia ser ouvida a boa distância, ele declarava na voz de uma maioria o que ele mesmo se recusava a fazer. Poder-se-ia supor que, se não um exército inteiro, pelo menos um batalhão de obstinados imaginários que se recusavam a cumprir as ordens se encontrava atrás dele, todos sempre prontos a dizer a frase, fosse qual fosse a hora. Seis palavras amarravam, e se tornaram apenas uma: Nós-não-fazemos-uma-coisa-dessas[36].

Mas se lhe foi ofertada a oportunidade de enunciar um por que, rapidamente o seu sentido é levado ao decorrente pictórico do plano seqüência da Segunda Guerra, a vedação concentracionária a qualquer por quê.[37] “E o obstinado por fim acabou sendo levado a não se apresentar certa manhã, devido ao arresto[38]”. Ao Nós-não-fazemos-uma-coisa-dessas o campo de Stutthof restou como último endereço, no qual lhe foi baixada a crista[39]. No plano seqüência, à oferta de explicação da autoridade se segue a supressão do por quê. Porque “aqui” não existe por quê. Contudo, no que concerne aos sistemas de crenças, algo pode ser depreendido da intimidade expressiva de Grass:

(1) Não-há-crença-de-um-homem-só. A crença é uma imagem cognitiva e social que se estabelece pelo hábito e pela duração: um tempo que segue para frente e outro que segue para baixo, ou que circunvoluciona em oxidação de cores. Se, por um lado, a crença pode estabelecer um plano seqüência entre a caserna e o campo de concentração, ela também pode se fixar vinculando a resistência com a liberdade. Não há que se ter gosto para perceber as seqüências. Todavia, a duração só é aberta ao gosto.

Nós-não-fazemos-uma-coisa-dessas fala em terceira pessoa, porque toda crença é uma crença em terceira pessoa. Da mesma forma como não há natureza humana sem crença, não há natureza humana na qual o Eu não contenha uma terceira pessoa. Por essa razão, não é demais insistir que as crenças não são arqueológicas ou arquivísticas à maneira das divisórias, mas ao modo da interação composicional entre as cores. Assim, existe uma oposição entre o crer e o acreditar. A crença é uma imagem que se coloca sólida na frente dos olhos e o acreditar, em contrapartida, é uma imagem projetiva, uma espécie de antecipação do tempo dois do plano seqüência, com que dizendo “para onde” a crença deve espargir a sua coloração no tempo. O acreditar político precisa projetar uma terceira pessoa por vir e vivê-la como atual. O acreditar, contudo, sofre com os efeitos de captura da crença atual. Existe tolice em se julgar que o acreditar possa ser mais do que fratura nos sistemas de crenças, mas pensar assim impede os efeitos de evidência da intimidade feita em enunciação. Dessa forma, não se deve buscar a evidência, mas prepará-la, tal como a epoché faz com o kairós atarávico[40]. Se as crenças, no que se fazem instituições, assumem a estrutura de andaime, e a oposição entre o acreditar e o crer, mesmo que sob a mediação da crise no reavivamento da fratura, pode alterar os sistemas de cores, tal nos leva a tomar a modificação do sistema de crenças como causa, em alguma medida, de uma nova capacidade instituinte.

Os andaimes da minha crença, que nos passado tiveram uma rachadura que ainda conseguiu ser reparada à força de cola por causa de um rapaz louro e de olhos azuis chamado Nós-não-fazemos-uma-coisa-dessas, começa a balançar de vez, mas continuará a se mostrar bem estáveis por algum tempo[41].

(2) A composição formal da crença moral ou imoral é a mesma. O vislumbramento de qualquer sistema de crenças dá-se da mesma forma. De trás para frente, ou do complexo para o elementar, temos as instituições sobre o tempo capazes de naturalizar algumas operações regulares, pela imagem social da crença. Essa descrição da experiência humana remete àquela feita por Hume, mas sobre os limites do escocês é necessária tornar mais exaustiva a perscrutação da instituição e da cor. Não sem motivo é que a instituição e a cor se ligam como os elementos mais relevantes de uma ontologia política. O que significa dizer que uma ontologia política precisa dar conta de um sem número de fenômenos imorais, bem como, morais. Na instituição vemos uma operação muito específica da cor, qual seja, ser capaz de circunscrever um diagrama no tempo, de modo a permiti-lo funcionar como significação para as sociedade humanas. Não é apenas a cor, mas a cor e crença, enquanto hábitos, que são capazes de instituir sobre o tempo uma legislatura, ou uma fronteira etc. Assim, existe algo de elementar na significação humana, a disponibilidade ao sentido e o sentido, tal como no quadrado negro sobre o fundo branco de Malevich. Mas é pela ação do hábito na cor que dizemos que as cores sociais são instituídas mediante a diluição de paixões em suas composições.

(3) A intensidade da crueldade distingue uma instituição moral de outra imoral. Dessa forma, há que se dizer que à instituição concerne uma dimensão de crueldade, uma vez que a manutenção do significado no tempo envolve uma sorte de dor continuada, voluntária na permanência, ainda que inconsciente na estrutura. Sob o cancioneiro cético de Montaigne e La Boétie, poderíamos dizer que toda instituição é uma crueldade, e, portanto, toda instituição é imoral. O que nos levaria a dizer que há algo de pernicioso na cristalização de crenças, havendo, tão somente, intensidades distintas entre crueldades. Ao nível em que refletiríamos que as instituições são sempre formas de servidão voluntária, e a justiça é apenas o nome de uma ofensa que se tornou costume. Mas se há crueldade sempre, então, não há crueldade nenhuma. Podemos ainda ser céticos e admitirmos que por vezes seja melhor obedecer a desobedecer, como constataram Hume, Freud e Hart? Então, como conciliar? Como conciliar a ordem com o caráter pernicioso da regularidade? Primeiro, distinguindo a crença da regra e depois vedando a redução da crença aos seus aspectos regulares. A ordem está na crença e não na regra.

Nesse novo contexto de distinções, percebo que algo do espectro cético acerca da inexorabilidade das instituições serem imorais se mantém, mas sem olvidar algo como uma tendência construtivista da moral. Ou seja, desencobrir a crueldade é relevante para uma instituição moral. Assim, parece que podemos ter como imperativo uma certa metafísica crítica do olho, no sentido de acompanhar a instituição no tempo. Tanto no que concerne à linearidade dos planos seqüência, quanto à densa pictorialidade da duração. Pois bem, crítica e gosto aparecem como pares da metafísica do olho.

(4) A falta de voluntariedade da crença não se confunde com involuntariedade. Por isso, dizer que é crença não retira o enunciado do âmbito da responsabilidade concernente à fabricação do mundo. Porque uma crença é sempre verdadeira no que concerne à enunciação, ela sempre fabrica, a possibilidade do dizer já é a sua verdade. Mas nos sistemas de crenças, principalmente no exercício da comparação, podemos distinguir, pela intensidade, crenças morais de crenças imorais. Ainda que não se tenha uma crença por vontade, isso não significa dizer que a individuação da natureza humana não seja responsável pela atualidade e virtualidade de suas crenças. Os sistemas de crenças correspondem a uma boa parte do que pode ser denominado de dimensão inconsciente da sociabilidade. Mas a relação entre conteúdo e atividade não pode escapar à responsabilidade estrita. Mesmo que parte do encobrimento da crueldade da política tenha ação sobre os sistemas de crenças, a ninguém é dada a possibilidade de escapar da responsabilidade pela própria cegueira[42]. Ou seja, o olho, enquanto órgão metafísico, não tem senão nome-próprio. Se a causalidade entre minha crença e o sistema de crença seja obscura, e ainda que afirmar que minha crença dependa dos sistemas de crenças do quais participa, a oposição do acreditar ao crer é sempre possível, desde que sob estado de consciência íntima acerca da sociabilidade, e, nessa medida, do ponto de vista moral, a oposição é sempre exigível. E se para mais não fosse, acreditar na vida em circunstância de crenças odiosas é sempre uma opção, ou uma fraqueza, o que nos leva a entender que a cegueira é sempre um restar cego; que se não é voluntário, não pode se esconder na involuntariedade. A responsabilidade estrita da natureza humana por seus sistemas de crenças nos coloca diante do problema da crítica, enquanto sabedoria prática da enunciação em nome-próprio. A nudez inexorável do olho cego é o que nos obriga, no que concerne à crueldade, a ver.



[1] Hobbes, T. (2002). Do Cidadão. São Paulo, Martins Fontes. p. 98-99.

[2] Hobbes, T. (1974). Leviatã. São Paulo, Abril Cultural. p. 98.

[3] Freitag, M. (1983). “Ontologie et sciences humaines.” Cahiers de recherche sociologique Septembre. p. 6.

[4] Uma parte do sentido do encobrimento ontológico, o soterramento exercido pela ontologia do método sobre a ontologia do significado, em especial nas ciências sociais, deve-se a associação entre cérebro e espírito, e aportes na manualidade reiteradora, algo como um forte biologismo cerebralista se tornou requisito para quase todo enunciado sobre as sociedades humanas, da mesma forma a identificação do corpo metafísica, com o corpo biológico, ou uma esterilização do corpo pela estrita separação entre corpo metafórico e corpo biológico. Depois disso, a perniciosa separação entre olho metafísico e o objeto material e social.

[5] Freitag, M. (1983). “Ontologie et sciences humaines.” Cahiers de recherche sociologique Septembre. p. 8.

[6] Ibid. p. 10. “A realidade não é o modo unívoco de tudo o que é apresentado aos homens como termo de uma referência efetiva. O ser tem uma história. A realidade é produto de uma gênese histórica. A unificação do real sob o modo do ser (ou sob o devir) pode ser examinada de maneira crítica. Podemos fazer uma crítica ontológica da ontologia”. Merleau-Ponty, M. (1975). O Metafísico no Homem. Textos Escolhidos. São Paulo, Abril Cultural. p. 381 “A religião faz parte da cultura não como dogma, nem mesmo como crença –, mas como grito”.

[7] Freitag, M. (2009). “Symbolisme et reconnaissance. Au-delà du holisme et de l’individualisme.” Revue du MAUSS permanente 7 décembre [en ligne].

[8] Ibid.

[9] Merleau-Ponty, M. (1975). O Metafísico no Homem. Textos Escolhidos. São Paulo, Abril Cultural. p. 371.

[10] Ibid. p. 377.

[11] Ibid. p. 378.

[12] Ibid. p. 378. “A metafísica é o propósito deliberado de descrever o paradoxo da consciência e da verdade, da troca e da comunicação, paradoxo onde vive a ciência que o reencontra sob o aspecto de dificuldades vencidas ou fracassos a reparar, sem nunca tematizá-lo”. “Noutras palavras, a ciência desaprende a enunciação e soterra a existência de princípios de composição das crenças”.

[13] Ibid. p. 380.

[14] Easton, D. (1965). A Framework for Political Analysis. Englewood-Cliffs, Prentice-Hall. p. 7.

[15] Freitag, M. (1983). “Ontologie et sciences humaines.” Cahiers de recherche sociologique Septembre. p. 15. Por teoria do eco compreendemos o fato de que a enunciação instituída volta ao sujeito da enunciação. Por essa razão dela não se distingue uma acústica da verdade. Contudo, o que deve ser compreendida é a dificuldade epistolar do eco.

[16] Ibid. p. 15.

[17] Freitag, M. (2009). “Symbolisme et reconnaissance. Au-delà du holisme et de l’individualisme.” Revue du MAUSS permanente 7 décembre [en ligne].

[18] Freitag, M. (1983). “Ontologie et sciences humaines.” Cahiers de recherche sociologique Septembre. p. 20. A fabulosa missão agônica do século XVIII foi o desenvolvimento de um vocabulário moral relativo à perda das cosmologias éticas consubstanciada na fragmentação da eticidade religiosa, desde o Renascimento até a Reforma. Este vocabulário moral, que deu voz a novos sentimentos morais, foi apropriado de modos distintos pela filosofia política, por um lado, e pela filosofia da história, por outro.

[19] Não é que a teoria do símbolo não tenha valor explicativo, tal como na copiosamente repetida idéia de violência simbólica. É que aquilo que o símbolo faz é menor do que o signo e apenas o confunde. Pois uma teoria do símbolo pressupõe uma essência – que pode assumir muitos nomes, em Durkheim, por exemplo era chamada de organismo – que se manifesta em sintoma ou em índice, para só daí dar origem ao símbolo, que também não pode ser visto de modo direto, mas por sintomas e índices de segunda ordem, para daí termos um fenômeno. A simbologia dá início a uma entediante dízima dramatúrgica, cuja capacidade explicativa se perde nos equivalentes simbólicos. A única coisa que um signo pressupõe é a pictorialidade da experiência, seja ela se mostrando como sintoma ou como índice. Simples assim, tudo aquilo que o símbolo explica, o signo faz melhor.

[20] Freitag, M. (1983). “Ontologie et sciences humaines.” Cahiers de recherche sociologique Septembre. p. 21. “As novas regras institucionais devem a sua definição aos remetimentos sociais e aos seus objetos abstratos feitos em modalidades particulares, divergentes, segundo as quais podem, desse ponto em diante, serem realizadas livremente”.

[21] Ibid. p. 22. “Na situação primitiva, não é questão definir as palavras, as instituições, é necessário apenas narrar o ser dos nomes próprios, que denotam diretamente, bem que de maneira inconsciente, sua identidade e sua coincidência, seu parentesco com os gestos concretos segundo os quais se exerce a apropriação social da instituição”.

[22] Ibid. p. 23.

[23] Mattéi, J.-F. (2002). A barbárie interior. São Paulo, Editora UNESP. p. 180. “O direito de ingerência da transcendência no seio dos fatos objetivos se encontra tematizado em Descartes com a distinção entre a idéia do “espírito”, que estou chamando aqui com o nome de pensamento, e as outras dos “objetos”, quer sejam reais como a montanha, ou ideais como o triângulo, sobre as quais o conhecimento se articula. […] Somente o pensamento, abrindo-se ao infinito que, contudo, não está em condições de conhecer, pode dar um sentido à sua orientação na cena unitária da existência. Por elas mesmas, nem a ciência nem a técnica poderiam fornecer uma defesa contra o inumano, como Auschwitz e Hiroshima mostraram ad nauseam”.

[24] “Eu fui, sim, na condição de jovem hitlerista, um nazista jovem. Coerente até o fim. Não exatamente um fanático de vanguarda, mas com o olhar reflexivamente voltado para a bandeira, da qual se dizia que era “mais do que a morte”, eu permanecia um membro das fileiras, exercitado na marcha. Nenhuma dúvida melindrava a crença, nada subversivo, como por exemplo a distribuição secreta de panfletos, pode me abonar de alguma culpa”. Grass, G. (2007). Beim Häuten der Zwiebel (Nas Pelas da Cebola). Rio de Janeiro, Record. p. 37.

[25] “Naturalmente, essa compreensão tardia não pode servir de justificativa para mim, sobretudo, quando se lembra que a mim – incapaz de contemplar um andaime de construção sem imaginar esta em processo de demolição – não era estranha a crença em castelos de cartas como a única habitação digna do ser humano”. Grass, G. (2006). Die Blechtrommel (O Tambor). Rio de Janeiro, Nova Fronteira. p. 290.

[26] “[E]u perdi a oportunidade de aprender a dúvida na primeira lição, uma atividade que só bem tarde, mas então para valer, me capacitou a desmontar qualquer altar e tomar minhas decisões além de qualquer crença”. Grass, G. (2007). Beim Häuten der Zwiebel (Nas Pelas da Cebola). Rio de Janeiro, Record. p. 76.

[27] “Minha obra era, pois, de destruição. E o que não conseguia destruir com meu tambor, fazia-o com minha voz”. Grass, G. (2006). Die Blechtrommel (O Tambor). Rio de Janeiro, Nova Fronteira. p. 146.

[28] “O professor Kuchen converteu o escárnio de seu amigo em traços de carvão furioso e preto como a noite: esse foi sem dúvida o retrato mais preto que jamais fizera de Oscar; na verdade, era todo preto, com exceção de uns poucos claros em minhas maçãs do rosto, nariz, testa e mãos, que Kuchen fazia sempre grandes demais, exibindo-as dotadas de nodosidades gotosas, de muita força expressiva, no centro de suas orgias carboníferas. Ibid. p. 548.

[29] Grass, G. (2007). Beim Häuten der Zwiebel (Nas Pelas da Cebola). Rio de Janeiro, Record. p. 294.

[30] Ibid. p. 77.

[31] Ibid. p. 78.

[32] Ibid. p. 79.

[33] Ibid. p. 79.

[34] Levi, P. (1988). É isto um homem? Rio de Janeiro, Rocco. p. 27.

[35] Grass, G. (2007). Beim Häuten der Zwiebel (Nas Pelas da Cebola). Rio de Janeiro, Record. p. 80. “‘Como é que aquele idiota é capaz de agüentar isso?’ […] ‘O que o faz tão teimoso?’ […] Por que não se apresenta doente e pede um atestado médico, branco do jeito que está […]’.”

[36] Ibid. p. 80.

[37] Ibid. p. 80. “Sua postura fez com que mudássemos. Dia a dia caíram os fragmentos daquilo que parecia tão firme. Ao nosso ódio, se misturava espanto, e por fim admiração travestida em perguntas […]”.

[38] Ibid. p. 81.

[39] Ibid. p. 82.

[40] “De então em diante, passou a imperar apenas a disciplina e a ordem. De pronto as pinturas que eu fazia após o meio-dia chegaram ao fim. O pincel foi lavado. Os quadros das paredes ficaram incompletos. A tinta diluída em cola secou”. Ibid. p. 81.

[41] Ibid. p. 114.

[42] Esse foi um dos efeitos perniciosos, não previstos por Freud, da clínica, não só psicanalítica, sobre a sociabilidade. E o que explica o crescimento do apelo de instituições chinesas pelo ensino disciplinado da doutrina psicanalítica, em sua acepção de controle clínico. O processo de redução da crença à regularidade não é tributário da teoria psicanalítica que a ele claramente se opõe, mas a conformação institucional tomada pelo processo de pedagogia sobre a clínica. Contudo, o processo de disseminação da cegueira acerca de si toma espaços públicos de modo mais selvagem com a idéia de terapias do comportamento, e, ainda, versões exotéricas do cuidado de si. No fim, a presença clínica na contemporaneidade concerne nada mais do que a existência de uma classe social de proprietários sem responsabilidade profissional direta. Ainda que possua a responsabilidade social intrínseca a toda pessoa humana de ação pública.