Memória constituinte e movimento social: lições de um museu popular, por Raphael Millet

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Raphael Millet Camarda Corrêa é doutor em Ciência Política pela UERJ e professor do Colégio Pedro II.

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Resumo

O presente ensaio articula filosofia política com alguns elementos de antropologia extraídos de pesquisa de campo com agentes de mobilização social e mais especificamente com a reapropriação pelos movimentos sociais de uma antiga tecnologia de poder, o museu. O resultado não é tanto uma sociologia museológica mas uma ciência política das formas de mobilização social populares na atualidade.

Palavras-chave:

Museu Popular, Mobilização Social

Abstract

This essay articulates political philosophy with some elements drawn from the anthropology extracted from the field research with agents of social mobilization and, more specifically, with the reapropriation by the social movements of an old technology of power, the museum. The result is not so much a sociological museology but a political science of the forms of social mobilization that are contemporarily popular.

Key words

Popular Museum, Social Mobilization

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O presente ensaio articula filosofia política com alguns elementos de antropologia extraídos de pesquisa de campo com agentes de mobilização social e mais especificamente com a reapropriação pelos movimentos sociais de uma antiga tecnologia de poder, o museu. O resultado não é tanto uma sociologia museológica mas uma ciência política das formas de mobilização social populares na atualidade. Não se trata porém de estabelecer uma nova rede conceitual ao traduzir temas da discussão filosófica em torno da soberania e do poder constituinte das multidões ao universo local de determinadas ações sociais. Não se trata também de fundir ontologia, marxismo e psicanálise para fins sociológicos. Muito menos há aqui a pretensão de estabelecer uma museologia pós-moderna ou, (valha-me!) psicanalítica. Isso tudo já foi feito, ou provavelmente será, com maior ou menor sucesso. O uso que se faz desse repositório conceitual é, tão simplesmente, a necessidade de estabelecer um conjunto teórico provisório capaz de dotar de significado um determinado agregado de práticas nas quais se encontra a possibilidade do novo na construção da história da vida comum em sociedade. Esse novo só pode ser fruto da ação política. Veja-se bem que não se fala em novidade, como uma busca estéril pela originalidade, busca que, a despeito do que digam, encontrou o seu fim no último fôlego do modernismo artístico em meados do século XX e que depois virou ideologia de mercado. Mas no novo como criação do ser, como criação das práticas comuns. A criação do novo é como a concepção de uma criança. Não se trata da originalidade do evento, mas da potência constitutiva que dali surge capaz de determinar as condições da existência.

Introdução

Em uma frase já célebre, o escritor tcheco Milan Kundera afirma que “A luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento” (Kundera, 1987, p.10). Descontextualizada do romance onde se encontra e inserida num campo semântico que orbita a obra do autor e sua biografia, essa tese parece guardar um ensinamento ético que ressalta a virtude da memória e do ser humano sobre um poder que oprime na medida em que ignora a sua verdade subjetiva e a anula através do esquecimento. A memória seria compreendida aqui como uma força humanizadora do poder, como uma força capaz de criar aquilo necessário para sobreviver e sobrepor um poder aniquilador. Memória aqui é contrapoder.

Esse é um tema muito caro, especialmente para aqueles que sofreram os horrores do arbítrio totalitário. Nesse sentido, os mais nobres zeladores da memória das vítimas do poder – se podemos, com Kundera, utilizar essa fórmula – cumprem em geral uma tarefa bastante terrena ao tentar responder às preocupações evidentes que surgem diante do mal revelado, como anuncia muito diretamente um Primo Levi temeroso pelos efeitos historicamente negativos do que chamou de desmemória, fenômeno que afetava tanto vítimas, quanto algozes sobreviventes do universo concentracionário nazista já na década de 1980: “que pode fazer cada um de nós para que, neste mundo pleno de ameaças, pelo menos esta ameaça seja anulada?” (Levi, 2004, p.17). Uma primeira resposta: devemos lembrar. Mas sobre essa, outra segue em consequência: lembar o que? E ainda: lembra como?

A preocupação tem fundamento. O próprio Primo Levi, que transformou sua memória em um movimento político, explora a memória humana como um instrumento volátil, capaz tanto de apagar registros importantes como de modificá-los ou mesmo fabricá-los. As recordações podem ser ameaçadas por situações particulares ou extraordinárias, traumas, recalques e estados anormais de consciência; mas mesmo em situações normais, a mente saudável é incapaz de controlar esse fenômeno que assume uma condição, por assim dizer, natural: o esquecimento.

O lembrar e o esquecer sedimentam assim a história e a história é o campo no qual a humanidade compreende sua temporalidade. E o tempo, por sua vez, é onde se conserva o velho e se cria o novo, onde a política adquire a sua materialidade. Será a compreensão dessa temporalidade que demarcará os limites da ação coletiva dos contemporâneos de cada período da existência humana. Esses limites são produtos da memória que constroem o campo de significação da sua ação. Será essa compreensão do tempo que permitirá conceber a política como um movimento criativo, fonte do novo, já que livre das amarras daquilo instituído como historicamente verdadeiro. Tal movimento é sempre movimento coletivo, movimento popular e, por conseguinte, a memória na política é uma memória popular.

O popular é uma categoria interessante. No nascer da política moderna o Renascimento concebeu o povo como o elemento que resiste ao poder e fundou nessa resistência a força da democracia contra a tirania. Nessa fundação reside uma memória que se reatualiza, uma memória popular, que será sempre contrapoder na medida em que o poder em sua lógica de domínio e controle será sempre esquecimento. Esquecimento justamente desse momento fundamental, do caráter plástico da memória, da sua volatilidade que é a mesma volatilidade da multidão que constitui o povo. Ao esquecer sua própria origem o poder fecha o campo da criação do novo e nega aquilo que deve ser a própria natureza da humanidade e, assim, a sua história. Isto é a desmemória. Ao negar o caráter criador da memória o poder se desumaniza ao mesmo tempo em que naturaliza a história. O esquecimento constrói uma linha de nexos que estabelece uma relação entre luta, poder e memória. Sobre isso a criação mais ou menos recente de museus populares tem um tanto a ensinar. Sobre o que aí se aprende e sua função para compreensão daquela relação é que se dedica esse breve ensaio.

Memória constituída, memória constituinte

Confrontados com os compêndios de história eternizados nos pavilhões dos museus repletos dos gloriosos artefatos que materializam as lembranças dos vencedores da civilização, os cacos de história perpetuados pela gente miúda da população tornam-se pálidas molduras dos eventos e personagens cuja indiscutível importância foi e sempre será decisiva para o curso dos acontecimentos que desembocaram no presente. Da mesma forma como quando confrontados com o texto máximo que é a constituição de cada país, resguardada por um poder legislativo altivo e de ares aristocráticos, a população da qual sua autoridade emana, torna-se como imagem apagada, universalizada por figuras jurídicas às quais toda singularidade da multidão parece escapar e se perder em figuras de retórica. Tanto num caso quanto em outro, o que se assiste é um processo de esvaziamento da potência que é o verdadeiro motor da política, que por sua vez coloca em movimento o tempo que será inscrito como história social.

Existe, pois, um movimento que pode ser percebido nas instituições sociais que sustentam as relações de poder numa comunidade. Quando se trata de traçar a origem e a justificativa de uma comunidade política recorre-se ao seu ponto de fundação. Tendo em vista que as comunidades políticas modernas se instituíram como Estados (e depois como Estados nacionais) e que os Estados modernos são concebidos como entes jurídicos circunscritos a uma carta constitucional, não causa surpresa que esta seja promovida ao ponto de referência do movimento histórico, um movimento que uma vez iniciado deve permanecer previsivelmente contínuo e permanente. Antes desse ponto haveria apenas a escuridão da barbárie a esperar uma tocha guia que iluminasse e permitisse seguir com segurança seu caminho.

O movimento constitucional é a faísca desse movimento civilizacional, compreendido aí como a transmissão perpétua da cultura. O museu é o álibi que sustenta na cultura o estatuto que a constituição recebe do campo jurídico. A constituição e o museu demonstram a existência de um momento fundador na história capaz de tirá-la do repouso. O movimento inercial que promove o presente encontra, pois, seu impulso esquecido na história. Não cabe nesse momento escrever novas teses sobre a história mas não é inútil lembrar as palavras de W. Benjamin a denunciar um presente que se identifica fatidicamente com os vencedores do passado e sobrevive sobre seus despojos. Tal situação não esconde o fato de que todo presente tem uma origem a ser reconstruída, cujos vestígios despontam na cultura. E aqui a ideia de museu ganha seu estatuto nesta argumentação. O museu serviria como monumento às sublimes palavras constitucionais. Um bastião da história como verdade, como temporalidade sedimentada no passado. No entanto, Benjamin alerta: “Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura” (Benjamin, 1987, tese 7, p.225). A constituição, como ponto fundador, e o museu, como monumento de transmissão desse momento, escondem em si um lado obsceno.

À luz do dia, a instituição pública museu é contemporânea ao surgimento do Estado moderno. A configuração do Estado moderno, como se sabe, é a sedimentação de um processo de conflitos mais ou menos violentos que deixaram para trás as práticas descentralizadas de poder da Idade Média que foram aglutinadas em um órgão totalizador que veio a ser reconhecido como detentor legítimo da soberania. Assim como as multidões rebeladas que submeteram o Antigo Regime à sua força criadora foram domesticadas pela redução da política à representação liberal, os museus domesticaram o tempo reduzindo a história ao seu próprio princípio de representação; redução do tempo à artefatos dotados de uma narrativa linear e convincente. Os museus, antes de existirem museus populares, foram sempre tecnologias de memória a serviço dos vencedores. A constituição da história, garantia das formas instituídas de poder, serve-se dessa memória institucionalizada que é o museu.

A institucionalização da memória funciona, portanto, como a constituição da história. O museu é, assim, uma instituição formal rígida que reduz a temporalidade a um espaço tempo determinado e cuja finalidade é sustentar a base de verdade da história no qual se ancora o poder estabelecido. Esse fechamento histórico acaba por reduzir a democracia a uma transcendência, pois circunscreve de tal forma o poder popular que este figura apenas como evento extraordinário registrado como artefato a ser exibido como prova da legitimidade do tempo político que o seguiu. Nesse sentido, poder popular funciona com retórica, um imperativo ético que se impõe, imaterial e inacessível aos sentidos e aos processos terrenos da política. O máximo que permite é um retorno ao tempo cíclico da antiguidade; pode-se esperar pelo próximo momento extraordinário como um perpétuo retorno do mesmo. Se a história fica livre assim do novo, nada resta senão o mais cru niilismo. Nietzsche ressuscitado (cf. Nietzsche, 1996 [1888], pp.425-450).

Se a prática museu desenvolve uma linha que leva da fundação à imobilização da história, se o único movimento que ele permite é um reacionário ciclo político capaz instituir e destituir soberanos ao sabor da dialética que opõe um que quer governar a muitos que não querem ser governados, fica claro que se está diante de uma força com forte caráter antidemocrático. A democracia é a teoria do poder absoluto, ilimitado; o museu aprisiona, limita, logo, o museu é anti democrático.

De fato, essa conclusão é verdadeira ainda que, hoje, não seja mais fiel aos acontecimentos. De fato, assim como a constituição, o museu é uma instituição criada por forças sociais. Sua forma pode aprisionar o livre movimento das forças que a constituíram, mas isso não nega que sua existência seja devida a liberdade dessas mesmas forças e, portanto, independente de sua forma específica ou uso conjuntural; sua existência mais afirma do que nega esse movimento originário. O museu como instituição limitadora da história, e por isso antidemocrático, pode produzir o esquecimento do poder constituinte, sombra indelével do poder constituído que sustenta. Mas assim como a constituição no seu fazer e refazer revela a verdadeira potência por trás dela, a agir com maior ou menor sucesso de criar condições de emancipação, o museu também é reapropriado como contrapoder. À memória como forma de esquecimento, o museu-movimento social opõe uma contra memória como outra história capaz de oferecer as condições necessária para a emergência do novo.

O político como gramática do tempo

Desde que o século XIX produziu a subjetividade revolucionária da modernidade que na linha tradicional de demarcação temporal o presente foi elevado a elemento principal, uma espécie de protagonista dos elementos que constituem a temporalidade. Esse sujeito do presente, sujeito do discurso filosófico da modernidade, como quer Habermas, está finalmente livre dos exemplos do classicismo e da referência a um tempo ultrapassado e, por isso, rejeitado como matriz de verdade e de construção de qualquer projeto futuro. Será o critério de auto certificação da modernidade que procurará constituir a atualidade como uma interseção entre o tempo e a eternidade (cf. Habermas, 2002, pp.14ss), estabelecendo simultaneamente sua função frente ao progresso e um núcleo ético capaz de orientar sua ação. O presente aparece, portanto, nessa perspectiva, como berço de uma força messiânica capaz de estabelecer uma imparável transição para o futuro: ao mesmo tempo em que dá sentido para o presente, redime o passado para o qual se exime de qualquer culpa ou responsabilidade. Tal relação com o tempo perde-se ou em um transcendentalismo que leva à inação ou numa dialética engessada pela lógica da necessidade que culmina em teleologias totalizantes nas quais não se encontra nenhum sujeito, por assim dizer, com os pés sujos de terra.

Memória e história são sedimentações do tempo. Nenhum transcendentalismo serve à multidão em movimento. Nem o passado glorioso, nem o futuro apoteótico guardam para a ação do movimento social alguma função, quer de guia, quer de motor que force o leme para novos rumos. Os sedimentos sólidos da história e da memória só podem ser reconhecidos na materialidade dos signos que representam. Os referentes que organizam o pensamento e constituem o próprio sentido das ideias de memória e história são frutos da produção, da seleção e das escolhas que constituem o próprio social em um dado momento. Se foi dito que memória será sempre popular isso ocorre porque a memória será sempre memória social, uma construção, uma montagem na qual o passado é escolhido ou construído de acordo com o futuro que se deseja. A memória, social ou popular, é esse processo de construção do campo de possibilidades (cf. Gondar, 2005, cap.1).

Ao que parece, nesse jogo de reivindicações sobre um tempo transcendente de uma verdade possível e um tempo prático imanente onde se tomam as decisões que vão delinear o campo dos condicionantes para as transformações sociais, duelam duas qualidades de tempo. Um tempo histórico, universalizado, e um tempo antropológico, singularizado. Esse tempo antropológico, singularizado, fruto também da subjetividade moderna revelada através de um processo genealógico é justamente o resultado de um movimento que retira o tempo da continuidade histórica que o aprisionava e abre a possibilidade de construção das práticas capazes de sobredeterminar o destino. A força capaz de sobredeterminar o destino e fazer existir o novo será sempre singular, resultado de um conjunto de afetos reveladores de toda a sua potencialidade. Esse é o campo que a filosofia nomeia a experiência comum das transformações sociais como todo e qualquer limite imposto a ela, quer seja um limite histórico, jurídico ou cultural. Essa ultrapassagem é poder constituinte – o que cria o novo, o que institui não apenas o Estado, mas também a linguagem, a ética e a lei.

Portanto, se a política moderna é uma tecnologia renascentista, essa é uma tecnologia do tempo. Isso significa que não apenas o tempo passa ser visto como uma espécie de protagonista do desenrolar dos eventos histórico, mas que o domínio da sua sintaxe e semântica se tornam fundamentais para qualquer reorganização da realidade. Essa tecnologia renascentista é nomeada por Negri, em sua investigação sobre a potência criativa da multidão, de paradigma maquiaveliano (Negri, 2002, cap.2). A gramática do poder que ele encontra nesse paradigma indica como a potência surge de um jogo temporal. “Na superfície, o jogo temporal é feito de fraude, de logro, de violência, de crueldades exemplares, mas na realidade ele é constituído por rarefações e/ou precipitações do tempo, de longos silêncios, esperas sinistras, assaltos selvagens, surpresas ferozes, de lucidíssimas análises e de um frenesi de ação” (idem, p.64). Quem conhece a história das disputas políticas da Itália renascentista sabe que essas imagens romanescas não deixam nada a dever à realidade (cf. Burckhardt, 1991). Tempo, silêncios, esperas, surpresas, análises e ação são os elementos que constituem esse jogo temporal que deve ser aprendido.

Qual a lógica das trajetórias temporais que se quer dominar? Primeiro, se o tempo é promovido à substância do poder, é necessário compreendê-lo como elemento necessário à construção dos vínculos de identificação inerentes à organização dos grupos humanos e, por extensão, do comum como universo da sua existência. Ninguém poderá negar que é disso que se trata o político. Disso e do dilema sociológico matriz, surgido, pois, como questão moderna que levou à construção de um corpo teórico para tentar respondê-lo, a saber, a problemática do laço social como relação entre o individual e o social. Bem, se qualquer lógica das trajetórias temporais fundamentam a política, essas só podem ser construídas em uma dinâmica da ação social propriamente dita. Aqui, uma formalização remeteria a uma normatividade transcendente cujo resultado, como visto acima, é justamente o aprisionamento do tempo e o esvaziamento da potência democrática que envolve o seu domínio. Uma formalização para esse fim pode, no entanto, seguir um princípio alegórico, na medida em que a distância entre o referente da analogia é grande o suficiente para iluminá-la sem aprisioná-la. Tal alegoria pode ser encontrada em uma fonte incomum, um sofisma analisado em um texto publicado em 1945 no Cahiers d’Art, em uma Paris pós-guerra ciosa de compreender os fundamentos sociais, políticos e psíquicos das questões gravíssimas trazidas pela guerra, pela ocupação, pela resistência e pelo colaboracionismo.

O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada: um novo sofisma foi escrito por aquele que seria o grande mobilizador da psicanálise na França pós-guerra, J. Lacan, a quem foi creditado a sobrevivência desse saber clínico à morte de Freud, seu criador. Lacan privilegiou também o tempo quando teorizou sobre a constituição do sujeito, quando propôs uma técnica de sua interpelação na clínica e, quando a isso foi chamado, também na política como constituição de vínculos sociais e como revolução. Essa é uma escola que se esvaneceu com a morte do principal difusor da psicanálise, em especial sua leitura lacaniana, no universo filosófico e político, Louis Althusser. O paradigma althusseriano perdeu seu poder de significação da realidade no século XXI e funciona, em grande medida para uma genealogia do poder do novo também no âmbito acadêmico e teórico. Sua obra tornou-se um evento do pensar a contemporaneidade. Aqui não será o lugar para seguir nessa reflexão. Ficará, como que pinçada com cuidado, a alegoria do sofisma de Lacan, que servirá ao esclarecimento da lógica temporal que permeia o lugar da memória como força constituinte revelada no surgimento de museus populares. Ficará ainda a sombra de Althusser como fiador da leitura de Negri sobre Maquiavel, de onde extrai seu paradigma do poder constituinte, como “pensador da ausência de todas as condições de um princípio e de uma democracia” (Negri, op.cit., p.148), que dá sustentação a argumentação desenvolvida aqui.

O texto de Lacan foi produzido quando o mundo refletia sobre as causas do fascismo e do nazismo e do contraste que estabeleciam com democracias liberais modernas, como a inglesa. A ideia desprendida de Freud, do fascismo como um fenômeno caricato de identificação do grupo com um líder viril e virtuoso deveria dar espaço, também, para a prática do comunitarismo inglês onde o que era visto com certa unanimidade como declínio da figura paterna freudiana dava lugar a “grupos sem chefe”, associações horizontais que preservavam a liberdade dos indivíduos sem comprometer os laços sociais e as funções que tais laços constituíam para instituição do comum. Neste social como negação do fascismo, a adesão ao grupo substituía a obediência militar à disciplina do líder. Essa leitura guardava em si uma inclinação do autor pela filosofia empirista e utilitarista inglesa sobre o organicismo francês, ainda que reconhecesse em toda filosofia o mérito principal do movimento da investigação, da busca pelo desvelar da verdade, e, como pressuposto a tudo isso, que o verdadeiro deveria ser necessariamente o novo e, este, por sua vez, resultado de uma decisão subjetiva.

Eis o sofisma, tal como aparece em o tempo lógico, que serve de alegoria à lógica do tempo no que tange a liberdade humana e a prática política da constituição do comum: o diretor de um presídio faz comparecer diante de si três detentos aos quais propõe em troca de sua liberdade uma prova pela qual terão de passar: “‘Vocês são três aqui presentes. Aqui estão três discos que só diferem por sua cor: três são brancos e dois são pretos. Sem dar a conhecer qual deles terei escolhido, prenderei em cada um de vocês um desses discos nas costas, isto é, fora do alcance direto do olhar; qualquer possibilidade indireta de atingi-lo pela visão estando igualmente excluída pela ausência aqui de qualquer meio de se mirar. A partir daí, estarão à vontade para examinar seus companheiros e os discos de que cada um deles se mostrará portador sem que lhes seja permitido, naturalmente, comunicar uns aos outros o resultado da inspeção. O que, aliás, o simples interesse de vocês os impediria de fazer. Pois o primeiro que puder deduzir sua própria cor é quem deverá se beneficiar da medida liberatória de que dispomos. Será preciso ainda que sua conclusão seja fundamentada em motivos de lógica, e, não apenas de probabilidade. Para esse fim, fica convencionado que, tão logo um de vocês esteja pronto a formulá-la, ele transporá esta porta, a fim de que, chamado à parte, seja julgado por sua resposta’. Aceita essa proposta, cada um de nossos três sujeitos é adornado com um disco branco, sem se utilizarem os pretos, dos quais se dispunham, convém lembrar, apenas em número de dois. Como podem os sujeitos resolver o problema?” (Lacan, 1998, pp.197-8).

O enigma tem uma solução perfeita. Os três prisioneiros, depois de se olharem “por um certo tempo” dão juntos “alguns” passos e atravessam simultaneamente a porta e apresentam ao juiz da prova as mesmas razões para sua conclusão: “Sou branco, e eis como sei disso. Dado que meus companheiros eram brancos, achei que, se eu fosse preto, cada um deles poderia ter inferido o seguinte: ‘Se eu também fosse preto, o outro, devendo reconhecer imediatamente que era branco, teria saído na mesma hora, logo, não sou preto.’ E os dois teriam saído juntos, convencidos de ser brancos. Se não estavam fazendo nada, é que eu era branco como eles. Ao que saí porta afora, para dar a conhecer a minha conclusão” (idem, p.198).

Não será o caso aqui de esmiuçar possíveis impasses lógicos no sofisma dos prisioneiros. O que o psicanalista francês propõe é uma crítica a uma concepção existencialista e, portanto, transcendental, de liberdade por uma perspectiva, por assim dizer, mais fenomenológica que pode, mais facilmente, ser trazida para um chão materialista. O que a análise do sofisma propõe é a liberdade humana como fruto de uma prática política que depende de uma temporalidade que pode ser traduzida para cada sujeito inserido em um vínculo social horizontal em uma decisão lógica tomada a partir do que o autor chama de um “tempo para compreender” que, por sua vez, se reduz a uma evidência sem a qual nenhuma decisão verdadeira seria possível.

O que faz funcionar esse grupo sem líderes? Lacan responde: a pressa; uma pressa que leva a uma tomada de decisão “verdadeira”, isto é, que assenta o fundamento da emancipação humana. Essa “asserção da certeza antecipada” é a lógica da temporalidade que Negri nos ensina ser o fundamento do paradigma maquiaveliano do poder constituinte, que por sua vez é a chave para a democracia compreendida como “absoluto”, que por sua vez nomeia a liberdade humana em questão aqui. Não existe, portanto, uma liberdade originária para qual são construídas correntes que acabam por aprisionar a humanidade que as forjou. A liberdade é uma decisão, e dirá Lacan, uma decisão lógica que se impõe na medida em quem a toma o faz a partir de uma experiência temporal em grupo. Dizer que o político funciona com uma gramática do tempo, é dizer que a lógica do político é sempre uma lógica baseada em decisões sobre evidências, essa lógica por sua vez não poder ser outra coisa que não uma lógica coletiva, uma lógica do comum.

Como revela Maquiavel e sua leitura por Althusser, por sua vez citado por Negri, as evidências que levam a tomada de decisão política são constituídas por aquilo que se vê, mas principalmente pela ausência deixada por aquilo que não se vê. E nessa afirmação não se esconde nenhum imperativo de juízo. “O pensamento moderno mostrou que todo juízo é essencialmente um ato” (ibidem, p.208) e a essa conclusão Lacan chega também através da alegoria do sofisma que analisa. O ato é parte da temporalidade da experiência. Essa temporalidade é constituída em três tempos, o “instante do olhar”, o “tempo para compreender” e o “momento de concluir”.

Fora a solução perfeita do sofisma, outras duas possibilidades de dedução devem ser levadas em consideração para o raciocínio. Isto é, se entre os três sujeitos, A, B e C, por exemplo:

1. A vê dois discos pretos, deduz que é branco e sai imediatamente e;

2. A vê um disco preto e um branco e pensa que se fosse ele C e visse dois pretos em A e B, sairia pronto, como C não sai, deduz que ele, A, é branco e sai tão logo termine o raciocínio.

Como visto mais acima, no contexto da experiência da decisão dos prisioneiros, todos os três carregam discos brancos nas costas e, portanto, se comportam na situação real a qual foram submetidos. Nessa situação, a dedução de A é realizada em dois tempos simultaneamente a B e C. Num primeiro tempo, A supõe-se preto e se coloca no lugar de B a atribuir uma dedução a C, e vice-versa. Nessa hipótese A atribui a C a dedução [2], ao ver que C hesita em sair, conclui pela negativa que é, de fato, branco. Como todos chegam a conclusão ao mesmo tempo, partem simultaneamente para dar ao juiz sua conclusão. Ora, eis que nesse momento A tem que voltar atrás na sua formulação, pois vê seus companheiros se porem em movimento e suspeita que estes vejam nele um círculo preto. Para recolocar para si a questão ele se detém, ao que param ao mesmo tempo B e C, pois cada um se vê com a mesma dúvida ao mesmo tempo que ele. Nesse segundo momento, independente da dedução que atribua a B e C, ele conclui que é mesmo branco, pois se fosse preto, seus companheiros deveriam ter prosseguido, ou, pelo menos voltado a mover-se antes dele, de acordo com a dedução [2]. É porque B e C não fazem nada que ele se coloca novamente em movimento, e assim todos o fazem para declararem-se branco ao mesmo tempo.

Pois fica claro aqui que cada um se reconhece branco não ao ver os outros saírem, mas justamente ao vê-los hesitar em sair. Nesse tempo é a espera e a surpresa que provoca que leva à ação baseada em uma “lucidíssima” análise “aqui e agora” da situação. O ato se antecipa em sua certeza e a “asserção de certeza antecipada” revela-se como o processo de pressa, já referido, no qual o tempo de compreender se reduz ao momento de concluir que, por sua vez, se confunde com o instante do olhar. Ou ainda, nos termos um tanto barrocos de Lacan: “Assim a objetividade desse tempo vacila com seu limite. Subsiste apenas seu sentido, com a forma que gera de sujeitos indefinidos, a não ser por sua reciprocidade, e cuja ação fica presa por uma causalidade mútua a um tempo que se furta no próprio retorno da intuição que o objetivou” (op.cit. p.205). O tempo molda-se à potência dos sujeitos da ação que o mobiliza de acordo com a intuição que extrai dele significado comum. Seguindo a sua gramática, o sujeito cria seu tempo quando o objetiva com sua decisão e os efeitos que dela decorrem.

Essa plasticidade do tempo que cede e se estende de acordo, não com um capricho qualquer, mas com uma lógica coletiva da ação, é da mesma qualidade da plasticidade da memória, mobilizada para fins similares. Esse tempo subjetivo caracterizado no instante do olhar, tempo para compreender e momento de concluir, e os hiatos que os aproxima ou superpõe são a própria interiorização do tempo histórico em um tempo subjetivo e, por assim dizer, antropológico (Negri, op.cit, p.69). Essa interiorização é o que confere singularidade à potência revelada da multidão e que aqui aparece a moldar a memória a fim de fazer do processo histórico mais uma vez o lugar da transformação pautada pela emergência do novo.

Pela sua plasticidade e pelo papel que desempenha na contextualização do ato de decisão que provém do tempo lógico – compreendido em uma gramática que revela o poder constituinte como um poder comum, coletivo, subjetivo e singular – a memória pode ser reinventada. “Salvar a memória da humanidade é reinventá-la – um poder constituinte” (idem, p.108). Essa reinvenção da memória pressupõe a destruição (e não o esquecimento) de uma memória baseado em princípios verticais de identificação que constituíam a vida política nos termos da soberania hierárquica do contrato social ou da simples dominação burocrática militar cuja origem remonta a praticas mais violentas de dominação. Essas práticas de dominação e emancipação estendem-se por um lugar e, por vezes, confundem-se com ele.

Espaço e resistência da memória

A plasticidade da memória não é apenas uma ideia que revela uma problemática em seu conjunto, isto é, sua formulação e possibilidades de solução. Ela se insere numa resposta a uma crise mais ampla que é a própria crise do político no sentido de produção de um espaço público, de um espaço comum, depois das revoluções da modernidade. Essa crise associa-se, em grande medida, às questões que se impõe ao materialismo hoje, a partir das transformações ditas pós-modernas cujos frutos mais evidentes são as metamorfoses das relações de produção e da força de trabalho, da falência da teoria do valor-trabalho e vitória dos fundamentos do sistema capitalista que, ao promover um esquecimento seletivo das forças criativas que o instituiu, acaba por incluir-se fora da história e, assim, tornar-se totalitário. Toda dialética de emancipação que procurou superar a moderna exploração do capitalismo fundamentou-se em reafirmar o caráter histórico desse modo de produção.

Existe, porém, uma forma materialista e não dialética de pensar essa instituição do político como condição de qualquer emancipação. A base desse modo de filosofar a prática do ser no político é espinosiana e recebe o nome de potência em ato derivado do conceito de conatus (da insistência na vida). Fora da dialética, mesmo da dialética negativa, o que surge como potência de movimento na sociedade política hoje é a experiência da pobreza, a subjetividade criada nessa experiência, isto é, os pobres. “O pobre é a eternidade nua da potência do ser” (Negri, 2003, p.120), portanto, os territórios da pobreza no sentido que lhe empresta a filosofia política é mais radical do que aquele que a sociologia difundiu. Se a união dos proletários do mundo foi encerrada em uma utopia que acabou por transcender à experiência, a “pobreza [surge] como desutopia, ela está naquele limite absoluto de liberdade que é o vazio de possessão (lógica ou prática); mas precisamente por isto lhe é concedido ser condição de possibilidade de um novo príncipe, de uma nova urgência e de uma nova oportunidade de transformação do real” (Negri, 2002, p.118). Existe portanto um tempo e um espaço da pobreza de onde emerge a resistência e a ação capaz de conferir significado a qualquer reivindicação de um porvir novo.

Os territórios da pobreza são nesse ponto o local onde será reivindicada e construída a memória social capaz de impor a potência criativa popular contra o esquecimento que a quer encerrar no imobilismo e na servidão. A experiência de mobilização social em áreas de pobreza submetidas ao extremo da opressão, como a experiência da violência armada pulverizada dos dias atuais, retoma um movimento fundamental que identifica no oprimido o motor da vida comum, do político. A reação se dá não apenas ao campo da economia, onde à miséria se impõe a exploração do trabalho, mas em diversas determinações transcendentes, como na condição existencial do ser humano como ser-para-a-morte ou na submissão da ignorância às regras do saber. A exploração do pobre não é novidade, “na civilização e na filosofia clássica, o pobre é o escravo” (Negri, 2003, p.122). O novo para o escravo só advém com a quebra das correntes.

A história do poder constituinte mostra que não apenas no tempo a resistência e a luta contra a dominação revelam seu poder criativo, a potência constituinte da multidão. Também o espaço já foi originariamente reivindicado como objeto privilegiado das lutas por alternativas políticas, como se mostrou nos movimentos da Revolução Americana em sua luta pela independência (cf. Negri, 2002, cap.3). Essa potência, quer como conceito, quer como nome utilizado para dar sentido a qualquer prática que procure reinventar o comum através da reinstauração do político como força criativa, reúne hoje uma soma dessas experiências espaço temporais que confere protagonismo ao político em uma paisagem de imobilidade inercial na qual o econômico aparece como razão utilitária a determinar tudo que envolve o social. Se a memória reorganiza uma sintaxe do tempo, essa nova organização precisa de um lastro semântico que, por sua vez, é encontrado no espaço do território, no cotidiano do local.

Nos território da pobreza, portanto, o espaço da memória é espaço de resistência. O espaço se torna a matéria que alimenta um movimento que não é outra coisa senão contramemória, contrapoder. Uma fórmula que sintetiza essa resistência que se torna ação é, em si, uma teoria do contrapoder e inverte as fórmulas tradicionais da soberania, pois nela, “o povo é a força que autoriza a lei” (idem, p.176) e não uma transfiguração de sua origem massificada pela lei originária. Dito dessa forma, não basta ao povo instituir uma nova temporalidade revolucionária que transforme o futuro de um projeto utópico em devir material ancorado no “aqui e agora”, é necessário que esse “aqui e agora” se materialize no espaço e constitua uma força em expansão capaz de sentir nas solas dos pés o deslocamento constante de suas fronteiras. É no deslocamento espacial que o tempo encontra o sentido que revela a plenitude de sua potência transformadora, o espaço pode ser compreendido aí como expressão da liberdade.

Uma espacialização da memória é, nessa linha de compreensão do político, uma parte da espacialização do poder popular. Quando o senso comum denuncia os espaços populares como exceções ao poder constituído, refratários ao imperativo da constituição, quer fazer supor que se tratam de espaços da barbárie. Quando o senso comum se torna razão de Estado, vem à luz o caráter fascista dessa, vamos dizer assim, estratégia discursiva. Essa evidência repressiva revela, porém, a força potencial capaz de quebrar com as hierarquias de poder existentes de uma ordem social antiga ao mesmo tempo em que constitui uma nova subjetividade indispensável ao próprio político. A violência que ameaça o status quo originada de uma subjetividade periférica capaz de precipitar o novo contra todas as expectativas de inércia social não pode ser confundida com as práticas criminosas das forças repressivas difusas na violência armada pulverizada em seu território ou na violência concentrada na resposta Estatal. Todo uso ostensivo de armas nessa situação é prática fascista.

Não há representação ideológica mais deturpada e perversa do que a imagem da criminalidade violenta como povo em armas, como revelação do poder constituinte latente. A deturpação inicial é que, ao contrário da igualdade oferecida pela insurreição armada, como na imagem de igualdade do “príncipe popular”, como povo em armas (a violência anticolonial em Fanon, 1979), o que o cenário da criminalidade armada mostra nos dias de hoje é uma hierarquia baseada em critérios individualistas e imprevisíveis que demarcam uma profunda desigualdade. A igualdade é condição do poder constituinte em ação e o processo do seu reconhecimento pode compor o cenário da sua existência latente no universo popular. O poder como decisão pura, como decisão sobre a vida e morte – tal como aquele de uso exclusivo do Estado ou do indivíduo aramado em causa própria – leva a uma concepção e uma prática de poder que neutraliza a potência da multidão, que neutraliza a instauração do político pelo campo popular e conduz justamente a afirmação atual de fim da política popular. O fim da política popular revela uma vontade fascista do fim de toda política como máxima arenditiana – fim da política como início da violência fascista.

O que ocorre de fato: uma subjetividade periférica torna-se sujeito histórico que sobredetermina a própria história como força de mutação. Se esta subjetividade é fruto de um local, não é um absurdo pensar o territória da pobreza, a favela nesse caso, como sujeito histórico (um moderno principado dos pobres?) mais importante que esse ou aquele ator individual. Em uma suposta crise de extinção gradual da política, as favelas, de alguma forma, resistiriam a essa crise quando sobredeterminam o contexto natural e fluido do tempo e lhe impõe nova temporalidade e sentido. É nesse movimento (e não tanto em sua substância ou conteúdo) que se revela o caráter emancipador da política popular. Só se pode pensar a mutação a partir desse lugar e a imprevisibilidade que sua ação acarreta antes confirma a hipótese do que a refuta. A evidência é evidência de que há evidência. Logo, uma conjuntura de opressão armada também não constitui substância do momento político, mas mostra o caráter profundo de crise que se instalou no movimento de construção de democracias modernas na atualidade. Não se pode negligenciar ou subestimar que a potência é revelada no uso ostensivo das armas em momentos de sublevação, mas aqui, ficará claro que o uso ostensivo das armas na situação da criminalidade violenta é uma perversão fascista da potência constituinte da multidão que acaba por autorizar a estratégia discursiva referida mais acima. Não se condena a violência em si ou se nega seu caráter subversivo – a história está repleta de conflitos armados considerados justos e emancipadores (cf. Walzer, 2003) – mas sim as suas consequências que, de forma violenta, hierarquizam, controlam, uniformizam os espaços populares.

O espaço, tal como revelado pelos conflitos trazidos pela existência que se quer dicotômica entre centro e periferia, favela e asfalto, acaba por caracterizá-lo como objeto específico da luta política. É no espaço que o social é reapropriado pelo político como potência criativa e emancipadora, pois esse é o seu único espaço de expressão. Fora do espaço político cuja natureza é a construção do comum, o social se resume a ideais pluralistas e ao jogo dos interesses particulares. Quanto mais distante estiver a manifestação do social do comum fundado pela política, mais aberto estará para manifestações opressivas de violência e desordem. Qualquer local ocupado ou palco de uma intervenção militar revela a verdade dessa afirmação.

Se Weber apontava para a condição do uso da violência para a fundação do Estado liberal moderno, Tocqueville por sua vez diante das primeiras revoluções burguesas da história, das quais foi contemporâneo, não pode deixar de observar que “entre os costumes democráticos e os costume militares existem relações ocultas que só a guerra revela…” (apud, Negri, 2002, p.265). A frase de Tocqueville recuperada por Negri demonstra o pessimismo daquele autor em relação as instituições americanas devido ao reconhecimento de que o “poder constituinte é um fator irresistível de desequilíbrio, inquietude e ruptura histórica” (idem). O mesmo ocorre em qualquer local tomados por uma ação militar. Espaços onde a pobreza e a violência armada convivem, ao contrário do que possa parecer, acabam por revelar as contradições próprias dos fundamentos da política e do caráter popular da democracia ao invés de determinar o seu fim. Justamente pelos argumentos já analisados, qualquer fala em torno do fim da política nada mais faz do que fechar o evento da construção da sociedade numa posição despótica e aristocrática, em tudo avessa ao que emergiu como poder popular com as revoluções que fundaram a modernidade.
Memória, museu e movimentos sociais

O fechamento da possibilidade de mutação da sociedade sob a força criativa do popular é o próprio esquecimento da potência da multidão como força constituinte, como o que por si só autoriza a lei. Esse campo do esquecimento promove os nexos em análise aqui das relações entre luta, poder e memória. Essa relação pode ser compreendida sobre um novo campo de sentido que gira em torno das palavras/conceitos “memória”, “museu” e “movimentos sociais”. Esse sentido ainda não está estabelecido, pelo contrário, parece um novo campo de disputa que emerge. É, no entanto, uma disputa que traz consigo ares de renovação para as possibilidades de reorganização de fenômenos associativos que, até um passado recente, mobilizaram diferentes setores das sociedades em lutas mais ou menos vitoriosas, tanto por direitos fundamentais, quanto contra diferentes formas de opressão. A violência da reatualização de antigas formas de segregação e opressão estabelecidas na esteira de um projeto de modernização que remonta ao século XIX, somada a uma crescente apatia e desmobilização de grupos populares outrora combativos, construiu, no começo deste século, um cenário bastante pessimista quanto às possibilidades de emancipação do povo. Mas como diz a sabedoria popular, “não há bem que sempre dure nem mal que não se cure” e os anos de transição entre os séculos XX e XXI trouxeram também algumas surpresas. Entre uma das mais inusitadas foi a reinvenção popular do museu e sua integração em uma nova gramática de ação pelos movimentos sociais. É esse fenômeno que será investigado agora a partir de ferramentas de uma antropologia política cujos resultados científicos podem ser reivindicados pelas ciência sociais enquanto suas implicações, tanto históricas quanto éticas e estéticas, não serão irrelevantes para a teoria política contemporânea empiricamente orientada.

O museu como reivindicação popular é um acontecimento relativamente novo e ao tomá-lo de uma perspectiva abrangente o fenômeno não parece circunscrito a alguma região ou país específico1. Está presente tanto no Brasil e na África do Sul, como nos Estados Unidos e na Inglaterra. Mas alguns indícios levam a crer que é nas periferias do capitalismo global que essa forma de mobilização social guarda a força criativa do novo. Não existem ainda estudos que comprovem essa impressão, mas pode-se especular que aspectos comuns desses países os aproximam na forma como são realizadas reivindicações públicas pelos setores populares. São países de capitalismo tardio que compartilham características comuns como, por exemplo, formas acentuadas de segregação social que modelam as desigualdades ao restringir a universalização do acesso aos direitos de cidadania. São sociedades que instituíram formal ou tacitamente uma reconfiguração das formas de segregação de caráter estamental, conjugando administração moderna do Estado com a tradicional existência de cidadãos de primeira e de segunda (e até de terceira) classe.

Os museus populares sugerem hoje uma nova interpretação para os herdeiros das famigeradas organizações de massa cujos destinos acompanharam a decadência dos grandes projetos políticos do século XX. O fim de determinadas tecnologias políticas, como os partidos de massa e o movimento associativista, não significa o fim da história, mas sim a inauguração de novas linhas de força, de novas tecnologias de ação, ainda que não se mostrem por inteiro logo de início. Se houve um eclipsamento de um sujeito histórico antes vivo e ativo em um setor específico da população, a consequência não é o aniquilamento mas a difusão de sua potência constitutiva para a multidão. É, portanto, espalhada pelo campo popular que está preservada sua potência. Um projeto constituinte derrotado sobrevive de forma latente e constitui a esperança que alimenta as possibilidade de transformação que subjazem em qualquer momento de poder constituído (“vive neles, em todos e em cada um, uma formidável confiança na possibilidade de reconstruir as relações sociais e políticas através de uma revolução democrática permanente, operada pela multidão.” Negri, 2002, p.206).

Em um momento de grande descrença, de ruína de universos simbólicos cuja força dominou todo um século, da re-hierarquização da economia frente à política, o cinismo desesperançoso também pode ser acompanhado de estratégias de superação do trauma do fracasso. Tomada a consciência que a derrota política não tem nada de predeterminado ou merecido (cf. idem, op.cit., p.198) a superação consiste, em grande medida, em construir um campo simbólico capaz de trazer inteligibilidade para as experiências cotidianas e fundamentos para planejamentos e ações futuras. Nesse momento os grupos sociais em movimento passam a se manifestar em um novo contexto de comunicação e a produzir novas estratégias de visibilidade. É nesse quadro que uma determinada memória é buscada como elemento fundamental para construção de novas representações. Como esse jogo de representações não são nem naturais nem propriedade intransferível de um grupo específico, acabam por constituir um verdadeiro campo de disputa, uma verdadeira política das representações. A política não é outra coisa senão um processo criador.

Nas diferentes esferas da vida social, os meios de manifestação pública são limitados apenas pelo campo de possibilidades materiais e criatividade de seus agentes. No entanto, a análise aqui recai em apenas uma dessas manifestações, no enredo dessa nova disputa que se desenrola em um cenário específico, o museu. As experiências hoje existentes mostram museus que reivindicam causas populares e causas populares que reivindicam museus. O que poderia parecer uma demanda abstrata ou uma aposta no novo mercado de bens imateriais é, de fato, observada em manifestações muito concretas e com significativos efeitos políticos. Não se pode negar que o chamado patrimônio imaterial também foi colonizado pela lógica capitalista de mercado. Mas a dinâmica do capitalismo não é um processo estático, ele se atualiza. Como também se atualizam as manifestações que resistem ao seu avanço. A materialidade do ressurgimento de um ímpeto reivindicatório popular se constituiu nas fronteiras de um território até então proibido e reclamou para si uma institucionalidade que há muito estava restrita à lógica de afirmação elitista do Estado sobre a história de construção de uma nação. O museu, essa instituição social perdida na ambiguidade do anacronismo e da necessidade, foi surpreendentemente reapropriado como movimento social. Exemplos marcantes dessa nova experiência podem ser observados ao redor do mundo, como nos dois museus apresentados aqui, situados em países separados por um oceano, mas com surpreendentes coincidências e analogias na história de suas formações sociais. São eles o District Six Museum na Cidade do Cabo (África do Sul) e o Museu da Maré, no Rio de Janeiro (Brasil).

A seguir serão apresentados de forma breve as experiências desses dois museus e sobre elas serão traçadas algumas reflexões em forma de apontamentos que compreendam essas manifestações de mobilização social nas discussões contemporâneas sobre o papel do popular como força constituinte de democracias. Esses apontamentos se alimentam da ideia que pressupõe que a memória de um povo não é um elemento dado, mas um campo em disputa. A memória, ao ser tomada como elemento importante de reivindicação inaugura uma nova possibilidade de política de representação da qual esses museus como movimentos sociais são protagonistas. Essas são propostas exploratórias que procuram colocar o tema em debate. As perguntas emergiram como fruto de pesquisa de campo de caráter etnográfico e foram formalizadas de acordo com sua pertinência e utilidade para a discussão. As respostas e conclusões surgirão do aprofundamento e amadurecimento do debate e da ação política em seu entorno e que, como não podem ser todas contempladas aqui, ficarão para outro ensaio.

Três proposições orientam o debate que articula luta, poder e memória e, por conseguinte, os museus populares. Todas compreendem o aprofundamento da democracia e sua radicalização como horizonte ideal:

* A luta por memória é uma atualização das formas de enunciação utilizada pelos movimentos sociais que a incorporam em seu repertório de ação.

* Os museus são utilizados como atualização de uma tecnologia política de luta social e são assim assim absorvidos pelo dispositivo movimento social.

* Museu e movimento social são dispositivos distintos, e o interesse do primeiro no segundo é muito diferente daquele que o segundo tem pelo primeiro (ao movimento social pouco interessa a sobrevivência do museu enquanto instituição; a instituição museu, por sua vez, enxerga no novo trazido pelos movimentos sociais a possibilidade da sua sobrevivência).

District Six Museum (África do Sul)

A experiência do Museu do Sexto Distrito (District Six Museum) na África do Sul é um caso exemplar do que parece ser a semente de uma nova tendência: a incorporação do museu aos movimentos sociais. Ao analisar o processo de criação desse museu/movimento é possível ver como um movimento reivindicatório absorve na dinâmica de sua luta a questão da memória. Esta constitui elemento fundamental para o objetivo de ação da organização e para construção de sua legitimidade frente ao poder constituído e à sociedade em geral. Nesse processo acaba por colocar em questão a própria lógica tradicional do museu e seu lugar na política das representações na construção de uma nação específica. Assim também desafia as identidades tradicionalmente estabelecidas e cria um novo campo de luta para transformações políticas e sociais. Esse é, portanto, um processo que apresenta diferentes aspectos em um quadro mais amplo. Os movimentos sociais se apropriam do museu como um novo elemento de mobilização humana em direção à política. Os museus buscam enxergar na contestação do seu tradicionalismo novas formas de pensar a si mesmos como instituição em relação à sociedade. A sociedade torna-se palco de uma nova disputa em torno da sua história oficial proposta justamente por aqueles que foram por ela marginalizados. Encontra-se nessa equação espalhados as ideias/conceitos de memória, poder e luta. De acordo com o ponto de vista tomado eles apontam para diferentes aspectos da realidade e podem revelar a potência constituinte da multidão como força latente da realidade que está porvir.

A apropriação do museu pelos movimentos sociais é um episódio recente da história e em especial da história sul-africana. Como foi esse processo? Esvaziada a ameaça de uma convulsão social violenta ou de uma revolução a partir das armas, a organização que viria a ser museu surgiu como mais um dos movimentos organizados que eclodiram durante a peculiar transição sul-africana para democracia, quando o Estado decretou o fim do regime do apartheid e convocou as primeiras eleições livres multirraciais de sua história. O fim do regime da “supremacia branca” foi alcançado depois de anos de intensa luta de grupos organizados no país e no exterior quando as armas eram de fato extensão do poder constituinte popular.

Em 1990, o mundo testemunhou o início do fim das infames leis de “desenvolvimento separado” que segregou da minoria branca a população majoritariamente negra e a reduziu à humilhante situação de repressão política e marginalização econômica. Depois dessa data, com a chegada ao poder do CNA2 de Nelson Mandela, foi iniciado um processo concreto de reconstrução da nação. Esse projeto implicou não apenas um árduo trabalho para construção da democracia, mas também a reconstituição da sua história. Esta nasce de um passado tirânico, já com algumas centenas de anos, e sobre o esquecimento promovido pelos anos de opressão uma memória tem que ser reconstruída pela população então oprimida a fim de promover uma ressignificação dos anos conduzidos pelas políticas coloniais e do apartheid. Nesse processo de verdade e reconciliação muitos entediam estar o segredo de um porvir pacífico e socializante onde se previa sangue e novas formas de opressão.

Como reage em um momento como esse um povo que vislumbra pela primeira vez o caminho da sua liberdade aberto por ele mesmo? A potência represada da sociedade civil foi liberada e entre diferentes formas de manifestação que antecederam as eleições livres em 1994 surgiu na Cidade do Cabo o movimento “Hands Off District Six” (HODS – “Não toquem no Sexto Distrito”). Entre as manifestações pacíficas, o movimento foi uma resposta às intenções de “revitalização” do antigo bairro conhecido como Sexto Distrito. O Estado associado a grandes multinacionais iniciou um processo para “colocar as mãos” no bairro que havia sido no passado uma dinâmica comunidade multirracial até seu destino ser violentamente alterado por sucessivas intervenções tanto do poder colonial quanto da engenharia social do apartheid. Para compreender o movimento e como seu desdobramento tomou a inusitada forma de museu é necessário conhecer, ainda que de forma breve e pontual, o histórico desse lugar.

O bairro conhecido como Sexto Distrito (District Six) recebeu esse nome ao ser estabelecido como o sexto distrito da municipalidade da Cidade do Cabo, ainda em 1867. Originalmente era uma comunidade portuária, contígua ao centro da cidade, constituída por escravos libertos, mercadores, artesãos, trabalhadores e imigrantes oriundos das diferentes atividades que deram vida ao antigo entreposto comercial. Desde o começo do século XX, no entanto, essa comunidade sofreu com políticas de remoção e segregação. Em 1901, a população negra africana residente no local foi removida e reassentada à força nos limites da cidade ou na, ainda mais distante, zona rural. Mais de cinquenta anos depois, em 1966, mesmo com o movimento de ocupação dos subúrbios pela população mais abastada e a negligência reservada ao Sexto Distrito, a área foi considerada exclusiva para os brancos de acordo com uma lei de 1950 (Group Areas Act3). Estava lançado o marco legal que bloqueava completamente a espontaneidade criativa do principal ponto de encontro de culturas e núcleo produtor do novo nessa antiga colônia. Entre 1966 e 1982 o bairro foi sistematicamente demolido e toda sua população removida para as periferias mais remotas da cidade conhecidas como Cape Flats. Mais de 60 mil moradores habitavam aquele bairro que em quinze anos foi levado ao chão pelos tratores do apartheid.

Em 1994 a África do Sul experimentava pela primeira vez a liberdade de um regime democrático, ou melhor, as expectativas e esperanças de uma democracia por construir. Sentia que era possível liberar as forças criativas da sociedade e experimentar mais uma vez o novo. Foi nesse momento que um grupo de ex-moradores do Sexto Distrito se mobilizaram para contestar a utilização da área que outrora abrigara sua animada comunidade, alvo então da especulação imobiliária de grandes multinacionais (cf.Rassool & Prosalendis, 2001). Estava plantada a semente do que viria a ser o District Six Museum.

O movimento HODS ao se organizar para reivindicar voz sobre uma área da qual fora privado e que originalmente era sua, transforma força latente em ação criadora. Através da política escreve, pela primeira vez, a história do bairro. Sua luta podia ser inicialmente identificada com a reivindicação pela terra por aqueles que foram forçadamente removidos. Como uma população colonizada ávida por independência era possível alegar que a propriedade era a possibilidade de expandir as fronteiras da liberdade. Mas, de fato, sua luta política foi, e ainda é, maior que um fim circunscrito à um título jurídico, é também uma luta por hegemonia que busca reescrever a história dessa nação sob uma nova perspectiva, a democracia cuja autenticidade vem sempre de baixo (cf. Jeppie & Soudien, 1990).

Essa luta começou a ser travada em um ambiente no qual tanto o Estado da nova África do Sul quanto uma série de empresas, muitas delas multinacionais, passaram a ser cobrados frente às sua intenções comerciais a partir de uma lógica de responsabilidade social. Esse processo de responsabilização social dos governos locais e das empresas, com grande apoio de setores “progressistas” da sociedade civil, fez com que empresas e organizações que tiveram ligações estreitas com o regime do apartheid buscassem formas de apagar seu passado a partir de medidas compensatórias de grande apelo publicitário. A ideia de “participação” e de “dar poder” aos despossuídos tornaram-se chaves para a exequibilidade de qualquer iniciativa naquela área. A luta por hegemonia, portanto, persegue também meios para desautorizar as tentativas de apropriação do legado histórico do Sexto Distrito justamente por aqueles que há pouco tempo eram coniventes com o regime de opressão. Aqui a memória se revela no social como resistência e contrapoder, como contramemória.

A concepção dos próprios integrantes do HODS sobre o caráter de sua luta, na medida em que extrapolam uma luta apenas por moradia, acaba encontrando eco para além dos limites de sua realidade nacional. A força constituinte dispersa na multidão revela sua universalidade quando uma luta local por habitação pode ser transportada para o cenário mundial como uma luta pela democracia e contra formas concretas de opressão. Esse é o contexto a partir do qual é possível pensar uma tendência de organização de movimentos políticos que incorporam a forma museu como dispositivo de ação. A memória organiza como contrapoder e confere significado à potência criativa da multidão que pode, assim, reivindicar uma identidade. Essa identidade reveste o sujeito da ação política que começa a encontrar meios de transformar essa potência latente em um projeto de transformação inteligível para os novos tempos. Não produz um sujeito totalizante que toma as rédeas da história através de uma revolução global, mas promove um novo contexto no qual as revoluções moleculares que promoveram os movimentos de minorias e de direitos civis do século XX encontram o caminho do seu porvir dentro do social e reafirmam o revolucionário como caminho necessário do político.

Não se deixa de observar, é claro, que na nova África do Sul ainda é palpável a crise orgânica do Estado apartheid que impediu que a classe dominante continuasse a exercer o seu papel de classe dirigente. Nesse cenário os fundamentos do euromarxismo ajudam a enxergar como o principal partido da maioria negra (CNA) torna-se classe dirigente enquanto a minoria branca ainda constitui a classe dominante e ocupa os principais postos no corpo judiciário, nas forças armadas e nas principais organizações econômicas do país. A eficácia moral da influência militar, econômica e cultural do antigo grupo no poder ainda é muito poderosa. Reinventar a África do Sul pós-apartheid é um complicado exercício de busca de verdade e construção também simbólica da democracia a partir do julgamento dos criminosos do passado e da reconciliação com a maioria apática no seu silêncio conivente. Transformações radicais em sociedades contemporâneas não se efetivam apenas com o controle do Estado, é fundamental que os avanços perseguidos se espalhem por toda a sociedade, especialmente no campo mais amplo da cultura, campo privilegiado que traduz e retraduz memória em história e vice versa. Terminada a luta com as forças tradicionais de repressão, tornou-se necessário para os grupos comprometidos com uma sociedade justa e democrática avançar sobre os diferentes setores capazes de contribuir para a formação dos corações e mentes da população na disputa pela eficácia moral de um regime multirracial democrático.

Todo sistema cultural em sua capacidade de exercer influência sobre uma nação tem uma história e uma memória que são elementos para a construção das identidades que formam o tecido nacional. Reconstruir essa história e buscar pela memória violentamente reprimida em seus diversos fragmentos passa a ser um exercício fundamental em disputas como a que está envolvida o Museu do Sexto Distrito. O resgate para o presente deste lugar, símbolo de conflitos e lutas que constituem um poderoso traço de identidade de populações periféricas hoje, é uma necessidade que surge na própria dinâmica da luta dos grupos historicamente dominados pelo reconhecimento do seu lugar na história da nação (Jeppie & Soudien, 1990). Nessa história, antigas identidades impostas pelo Estado opressor são reapropriadas e utilizadas de forma positiva. Essa reapropriação histórica ganha no museu um espaço privilegiado para existir e se difundir pela sociedade.

Por que então o museu? O museu é uma instituição tradicional. Sua existência como instituição pública remonta à Europa do século XVIII. Sua definição contemporânea, estabelecida pelo Conselho Internacional de Museus, é objetiva e faz jus à sua história:

Um museu é uma instituição permanente, sem fins lucrativos, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento, aberta ao público, que adquire, conserva, pesquisa, divulga e expõe, para fins de estudo, educação e lazer, testemunhos materiais e imateriais dos povos e seu ambiente (ICOM, 2004).

No entanto essa objetividade é bastante ambígua quando se confronta seu caráter permanente com a qualidade dos “testemunhos dos povos” que procura conservar e expor. O que será, de fato, “estar a serviço da sociedade e seu desenvolvimento”? Quais testemunhos, materiais e imateriais, são selecionados para os diferentes fins expostos? Quem são seus autores? Quais seus critérios? A neutralidade buscada na definição parece querer aproximar a instituição de uma cientificidade, como se o testemunho dos povos compartilhassem da logicidade do testemunho dos prótons. Deixa a entender, assim, que sua função por si só é clara e objetiva o bastante para seus fins falarem por si e a dinâmica de sua existência passar ao largo do conturbado mundo das disputas e da criação, do mundo da política.

Para que tal visão seja aceita como verdadeira e tenha eficácia social é necessário que alguma metafísica essencialista esteja nos alicerces da sociedade. As visões de mundo reificadas que permearam o século XX legitimaram, entre outras dinâmicas políticas, a produção e reprodução dos colonialismos e da Guerra Fria, pilares de sustentação de ditaduras e regimes autoritários, os quais sustentou material e ideologicamente. Com as transformações ocorridas ao final do século XX, a força dessa forma de totalidade social perdeu sua centralidade. As instituições que nasceram a seu reboque também foram mortalmente abaladas e acabaram eliminadas ou condenadas a uma existência residual de acordo com a profundidade da sua interdependência com o setor econômico, testemunha privilegiada dos processos mais rápidos de transformação social.

O museu, então, pode ser pensado como uma instituição ligada a essa época. Ele não passou imune aos processos político-sociais que marcaram a modernidade tal como foi consolidada ao final do século passado. É como se sua própria existência precisasse ser assegurada já que o centro no qual se apoiava foi deslocado. A descoberta dos bens imateriais deu início a esse processo. A lógica dos movimentos sociais serviu de agente catalisador. A mudança estava relacionada aos conflitos surgidos com a pluralidade de identidades que emergiram na cena política através de centenas de revoluções moleculares a partir da destruição das fronteiras dicotômicas que operavam até então.

E como esses eventos tomaram forma na Cidade do Cabo? A experiência da luta por restituição dos ex-residentes do Sexto Distrito incorporou o museu e lhe definiu uma nova missão que em nada lembra a assepsia objetiva do seu modelo tradicional. Ao substituir o racionalismo positivista da tradição moderna por uma subjetividade ancorada na diversidade das sigularidades de uma nova forma de pensar o social, o museu popular descreve sua missão de outra forma, como exemplifica o District Six Museum:

A Fundação Museu do Sexto Distrito foi estabelecida em 1989 e lançada como um museu em 1994 para manter vivas não só as memórias do Sexto Distrito, mas das pessoas removidas em qualquer lugar. Ela foi criada como um veículo para promoção da justiça social, como um lugar de reflexão e contemplação e como uma instituição para desafiar as distorções e as meias verdades que pautaram a história da Cidade do Cabo e da África do Sul. Como um espaço independente onde compreensões esquecidas do passado são ressuscitadas, onde interpretações diferentes do passado são facilitadas através de suas coleções, exposições e programas educacionais, o museu está comprometido em contar as histórias das remoções forçadas e auxiliar na reconstituição da comunidade do Sexto Distrito e da Cidade do Cabo, pautando o debate público com sua herança não racialista, não sexista e contra toda discriminação de classe. [4]

Em uma definição curta: a missão do Museu do Sexto Distrito é assegurar que a história e a memória das remoções forçadas na África do Sul sejam mantidas e que o processo de memoração sirva para desafiar todas as formas de opressão. Contramemória é contrapoder e seus efeitos são medidos na materialidade da vida cotidiana. Essa missão está inserida no contexto em que surgiram movimentos sociais que começavam a exercer sua liberdade e direito à voz em um novo ambiente democrático, através da exigência de reparação pelas atrocidades cometidas pelo governo do apartheid. O que de fato o museu popular quer preservar é a capacidade dos povos em transformar sua vida comum.

Confrontando as duas definições podemos perceber que a proposta de existência do Museu do Sexto Distrito abandona a suposta neutralidade científica e natureza passiva do museu tradicional para adotar uma postura política explícita do que acredita ser “estar a serviço da sociedade e seu desenvolvimento”. Torna-se assim agente catalisador de um conflito que envolve além da restituição material daqueles prejudicados por um regime de opressão, uma luta pela memória capaz de reinscrever sua história e produzir lógicas de representação condizentes com o que se deseja para o porvir de uma Nova África do Sul democrática de fato. Não se trata portanto de um movimento com um caráter apenas utilitário, mas se propõe também a transformar valores e normas que constituem a sociedade.

A busca por novos meios de transformar antigos valores enraizados numa cultura pouco democrática também está presente no universo brasileiro que envolve museus e movimentos sociais. No Brasil o Sexto Distrito é a favela da Maré.
Museu da Maré (Brasil)

Ao olhar para o Brasil verifica-se que a trajetória de sua formação social tem diversos elementos que a distingue daquela presente na história da África do Sul. As idiossincrasias de cada país guardam, no entanto, algumas semelhanças que ressaltam o papel da resistência e da ação popular como força constituinte. Eventos e contextos importantes de sua história ganham relevância quando confrontados, como o fato de ambas trazerem em sua origem um passado colonial e terem experienciado no século XX formas específicas de Estados ditatoriais que através do seu poder de coerção militar impuseram unilateralmente uma ordem de princípio moralista, “anti-comunista”, por um lado, e da “supremacia branca”, por outro. Tanto em um caso quanto no outro o esquecimento da sociedade civil na construção dos caminhos da coletividade resultaram em graves violações dos direitos humanos e na interrupção de seu desenvolvimento democrático. Como marco de superação dessa origem, ambos os países iniciaram seu processo de democratização somente ao final do século XX. No Brasil, um presidente eleito pelo voto direto assumiria o governo em 1990, depois de cerca de vinte anos de regime ditatorial; no mesmo ano a África do Sul dava inicio às negociações para o fim do regime apartheid e realizaria a primeira eleição democrática de sua história quatro anos depois. Ambos os países hoje estão submetidos às tendências econômicas do novo sistema internacional e conjugam crescimento de suas economias e ampliação de sua influência na esfera internacional com indicadores alarmantes de pobreza e desigualdade social que por sua vez são combatidos com políticas domésticas de distribuição de renda com maior ou menor sucesso.

Um ponto específico se destaca na construção da memória social na África do Sul, como foi visto com o surgimento do Museu do Sexto Distrito. Em 1966 o Sexto Distrito foi classificado como favela (slum) pelo governo sul-africano, um local que merecia atenção da vigilância sanitária e deveria ser erradicado. Com esse argumento, somada a uma posição moralista segundo a qual as relações inter-raciais na comunidade geravam conflitos e desordem social, foi colocada em prática uma política de remoção dos moradores seguida pela destruição das edificações até então existentes. O fato do bairro estar situado na zona portuária, vizinha da do centro comercial da cidade, indica que não apenas os aspectos sanitários e morais orientaram a engenharia social do apartheid, mas os fatores econômicos também foram cruciais para que áreas fossem identificada como “apenas para brancos”. Como resultado da remoção da recém-classificada favela, todos os seus habitantes foram removidos para novas favelas e conjuntos habitacionais, agora localizados em uma área inabitada e distante do centro da cidade.

O caso sul-africano não é muito diferente do surgimento de muitas das favelas cariocas. A Maré, por exemplo, teve algumas de suas comunidades formadas a partir da população que foi removida de outras favelas situadas na Zona Sul da cidade ou em outras áreas de interesse do Estado. Como na Cidade do Cabo, foi também nos anos 1960 que a partir de políticas de remoção surgiu, por exemplo, a Nova Holanda, uma das atuais dezesseis comunidades da Maré. Inicialmente, essa comunidade era formada por habitações provisórias construídas pelo Estado para receber moradores que foram removidos de suas comunidades em outras regiões da cidade. O mangue inóspito de metade do século passado e suas palafitas deu lugar ao maior território da pobreza no Rio de Janeiro; estima-se que na favela da Maré vivam hoje aproximadamente 130 mil habitantes. Em sua história, a comunidade já produziu movimentos políticos partidários, religiosos e associativos de diferentes matizes. Já melhorou muito suas condições materiais iniciais e passou de uma ocupação ilegal para um bairro formal. Não houve, porém, real integração ou superação do estigma do favelado. A pobreza e o bloqueio às oportunidades de mobilidade social frutos do preconceito e das dinâmicas de segregação urbana sempre fizeram parte da realidade local, enquanto formas novas de opressão, resultado do aumento da violência armada, surgem como mais um obstáculo para que o poder latente desse pequeno continente popular possa se manifestar como força de transformação da sociedade.

Foi nesse ambiente que em 2006 foi inaugurado o Museu da Maré, uma pequena mobilização em torno da memória social da comunidade e levado a cabo como um verdadeiro empreendimento afetivo, de amor ao lugar no qual se descobre sua história5. O que há de marcante nessa inauguração não é tanto o fato da iniciativa ser o primeiro museu localizado em uma favela, como quis parte da opinião pública (apesar de existirem outros museus que reclamam esse feito), mas o fato dele constituir um instrumento criado pelos próprios moradores como parte de sua luta política. Sua origem, assim como o Museu do Sexto Distrito, também está enraizada na lógica dos movimentos sociais, pois é fruto de uma iniciativa da Rede Memória do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM), ainda que ao herdar desses sua organização e quadro de militantes, também inova ao construir mais um meio de ação ao incluir o museu aos já conhecidos repertórios de reivindicação dos movimentos sociais. O Rede Memória é uma típica associação civil sem fins lucrativos que pipocaram nos anos 1990 como resposta a uma já desacreditada política partidária como canal de manifestação das possibilidades constituintes do poder popular. Fundada por moradores e ex-moradores da favela, liderados por um jovem grupo que conseguiu, a despeito de sua origem periférica, chegar à universidade, o grupo já tinha uma experiência acumulada de ação social devido à sua participação nos diferentes movimentos sociais que surgiram ao longo da história da favela. A fundação da organização tinha como objetivo desenvolver projetos para superar as condições de pobreza e exclusão social dos favelados através da educação, uma micro revolução cujo enfoque principal estava em oferecer cursos pré-vestibulares para que ao ingressar no ensino superior a favela pudesse formar novos intelectuais orgânicos locais capazes de iniciar um círculo virtuoso de produção popular para sua própria emancipação.

A iniciativa do CEASM já havia, de início, mudado o foco dos movimentos reivindicatórios existentes na Maré, até então fortemente amparados pela Igreja e por partidos políticos de esquerda e que teve nas associações de moradores seu grande expoente. Esses movimentos lutavam principalmente por acesso à infraestrutura necessária a uma comunidade do seu porte, como água encanada, luz e esgoto, e assim procuravam, pelo menos no acesso aos serviços públicos fundamentais, ser reconhecida como parte integrante da cidade (Pandolfi & Grynszpan, 2003). O foco da nova organização era a educação e projetos relacionados a ela como a aquisição de bens culturais para o bairro. Sua atuação trouxe para à prática o debato a respeito da sobredeterminação ou não do político pelo econômico. Essa forma de agir tornou-se uma característica das transformações dos movimentos associativos com o objetivo de prestar um serviço público a partir do final dos anos 1980. Até hoje existe uma certa polêmica sobre a forma correta de classificá-los de acordo com suas atividades de fato ou o seu enquadramento jurídico e sociológico (Ong ou terceiro setor? Movimento social ou organização comunitária?) e mesmo à sua eficácia em termos de mudança estrutural das condições de pobreza (CEDES, 2007). Foi a partir da educação que os diferentes projetos da organização foram articulados em redes temáticas (trabalho e educação, cultura, comunicação, memória e observatório) das quais uma se dedicava a trabalhar a memória da comunidade para produzir a história desse lugar, deixada à margem da história oficial da cidade e ignorada até mesmo pelos seus moradores mais jovens.

A reivindicação de memória como um bem cultural foi a ideia precursora que iria encontrar mais tarde seu corpo material no museu. O primeiro museu em uma favela criado, estabelecido e mantido por moradores compromissados com uma proposta política orgânica ao local. Seu objetivo? “A criação de canais que venham fortalecer o vínculo comunitário entre os moradores da Maré. Não mais como um sentimento calcado na experiência coletiva de exclusão e discriminação, mas como sentido comunitário orientado pela identidade histórica e cultural dos moradores”6. Que lugar é esse que busca sua memória e transforma sua busca em museu? Algumas informações breves serão úteis para compreensão do tema em discussão.

O bairro da Maré surgiu como uma favela a partir da década de 1940, povoada por imigrantes em busca de trabalho e por aqueles que fugiam da especulação imobiliária dos subúrbios cariocas. O Rio de Janeiro de então crescia e se modernizava sob forte inspiração das cidades europeias. No horizonte europeu das elites não havia espaço para os pobres e um processo de segregação através de intervenção urbanística teve início. As classes populares foram progressivamente removidas do centro da cidade, espaço que deveria ser reformado para uso exclusivo das elites. Como na Cidade do Cabo a medida atendia aos imperativos sanitários e morais, os álibis científicos e políticos que parecem constituir esse espírito do tempo subdesenvolvido da época. A população removida encontrou suas próprias estratégias de resistir e permanecer na cidade ocupando áreas então ainda vazias de moradores e das leis de mercado. Como consequência das lutas reais por moradia e acesso à cidade, um inevitável processo formal de reconhecimento incluiu diferentes favelas no planejamento urbano do município com o passar das décadas. Esse reconhecimento foi, de fato, incluído sob a ameaça da força popular que emanava dos seus territórios como forma de domesticar seu poder constituinte e manter na latência, o quanto possível, qualquer possibilidade de sublevação violenta que de fato rompesse como a segurança do poder constituído.

Entre 1985, data do início da Nova República e inicio do processo de democratização do país, e 2006, áreas consideradas de favela no Rio de Janeiro, como Rocinha, Jacarezinho, Alemão e Maré deram origem às Regiões Administrativas e bairros no Plano Urbanístico da Cidade. Extinta as possibilidades institucionais de manter o povo impunemente domesticado pela força, a legislação de um país que se quer democrático tem que se dobrar a evidência de que “é a força do povo que autoriza a lei”. Em 1986 foi criada a XXX RA da cidade do Rio de Janeiro (Região Administrativa da Maré) a partir do decreto No. 6011 de 04 de agosto. Em 1994, com a lei No. 2119 de 19 de janeiro, os limites da XXX RA passam a demarcar o bairro da Maré. Em 2001, o novo bairro já em censo oficial contava com uma população de 113.807 habitantes e um crescimento vegetativo de 0,1%. A inclusão jurídica na cidade, no entanto, não foi por si só capaz de eliminar o estigma da favela. A concretude de seus indicadores socioeconômicos deixam claro a força da segregação e a urgência de que suas estratégias de mobilização e política superem os obstáculos que enfrenta até hoje. Em dados do ano 2000, quando foi contabilizada sua população, registraram-se também os seguintes aspectos relevantes: IDH de 0,722; esperança de vida de 66,58 anos; 35,7% de adolescentes fora da escola, renda per capita de R$187,2. A esta conjuntura soma-se o fato de estar localizada em uma das regiões mais violentas da cidade, cuja taxa de homicídio por arma de fogo é de 115 por 100 mil habitantes.

Nesse contexto a reivindicação pela memória da comunidade ganha outra concretude, não apenas pelo tamanho da comunidade como pela ausência ou viés discriminatório de sua trajetória na história oficial da cidade. A instauração do político ali começou pelas bicas de água, passou na luta contra um Estado autoritário e apresenta hoje uma pauta múltipla que quer perfurar o universo político constituído para através desses poros deixar vazar, ponto a ponto, a força democratizadora das reivindicações populares. Nessa nova rede de movimentos sociais, um projeto que começou com um centro de documentação e referência terminou por dar origem ao museu.

O Museu da Maré, assim como o Museu do Sexto Distrito, procura também realizar uma reapropriação do local como referência de identidade para seus moradores com o objetivo de reclamar, não uma terra da qual foi retirado, mas a memória dessa terra, local no qual foram criados. A partir dessa nova apropriação de sua história, a criação pela memória traduz esse lugar como parte de uma conquista realizada, não a revelia ou como consequência indesejada de um projeto modernizador da nação, mas como parte integrante e necessária dele. O fato da estigmatização perdurar até hoje e se reinventar a cada momento denuncia a ausência de democracia no projeto de nação das elites dirigentes do país; a memória denuncia o esquecimento. Ao longo da história, as elites dirigentes responsáveis por um projeto nacional não incluíram nele as classes populares que, como sujeitos políticos também responsáveis pela criação do espaço público, deveriam ser protagonistas da construção republicana com a mesma diligência e espírito modernizador dedicados ao restante da cidade.

Na Cidade do Cabo um dos fundadores a do Museu do Sexto Distrito diz que qualquer comunidade do porte da sua (60 mil moradores) tem a necessidade de ter um espaço de memória na forma de um museu. (Nagia & Miller, 2001). A proposta pode parecer uma obviedade, especialmente quando se vê a onipresença de museus de memória local em grande parte dos municípios brasileiros; mas não é. As favelas cariocas ilustram bem o descaso dedicado à história desses lugares. Apesar de seu tamanho e importância na cidade, ainda são vistas no discurso público como um desvio, uma patologia de uma cidade cujo destino seria uma inescapável “modernidade”. O discurso estigmatizante fica ainda mais frágil quando os aspectos de identificação e bairrismo no Rio de Janeiro estão intimamente ligados a manifestações populares com laços estreitos com as favelas e seus moradores, como o carnaval, o samba e a miscigenação. Está claro que as favelas não são uma patologia da cidade, mas parte histórico-estrutural de sua modernidade capitalista tardia. Pode-se até dizer que são parte de um projeto específico, isto é, o mesmo que concebeu grandes obras de infraestrutura urbana como as Avenida Brasil e a Ponte Rio Niterói sem com isso planejar e implementar uma política de habitação e estabilização para os milhares de trabalhadores que afluíram de todo o país para nelas trabalhar. Esse é um dos aspectos histórico-estruturais dos territórios da pobreza que se pode aprender no Museu da Maré.

Assim em ambas as cidades esses museus se tornaram, por seu pioneirismo e sucesso, catalisadores para que outras comunidades pudessem dar expressão às suas próprias questões quanto ao seu porvir e sua existência hoje. Como instaurar diante das adversidades atuais a força política dessa multidão? Parte da resposta está no êxito dos museus populares e da difusão de uma memória política que está reinscrevendo o lugar dessas comunidades no espaço do poder constituído. Algumas idiossincrasias dos museus descritos aqui ajudam a pensar o seu sucesso e problematizar a capacidade de expansão desse dispositivo de luta política. Como são experiências simultâneas em dois países diferentes, as características que têm em comum podem apontar para algumas possibilidades de generalização. Nelas o sucesso do museu e luta pela memória se valeu de: a) sua necessidade, reclamada pelo tamanho de suas comunidades; b) sua capacidade de catalisar experiências inspiradoras para outras comunidades em sua luta; c) o fato de serem comunidades, pelo seu porte e relação com o poder público, relativamente bem documentadas e; d) o fato de gerarem um sentimento de propriedade e identidade de seus moradores, o que gera legitimidade para suas ações e assim assumem de forma consciente um discurso que os caracteriza como “agentes de seu tempo em luta para escrever sua própria história”.

“Coalizão Internacional de Museus Locais de Consciência”

Nessas duas experiências periféricas, na África e na América Latina, é possível ver um movimento no qual o museu é incorporado como um dispositivo útil para atualização das diferentes linhas de ação que caracterizam os movimentos sociais. Esse é um fenômeno que exige atenção para estabelecer o seu significado para as lutas populares na atualidade. Além disso, essas experiências permitem que o próprio museu, enquanto uma instituição e um dispositivo historicamente utilizado nos interesses de grupos dominantes e dirigentes passem a questionar internamente sua função e seus métodos. O que se verifica de fato são dois movimentos distintos, a atualização das formas de luta pelos movimentos populares e a possibilidade de democratização e sobrevivência da instituição museu. Um museu construído em torno de uma história ou mesmo de uma reivindicação popular não constitui necessariamente um movimento social. Para tanto parece ser fundamental verificar sua origem, seus fundadores, sua missão e especialmente seus métodos.

No entanto, mesmo sem constituir um movimento social o museu pode ser ressignificado e se transformar em ferramenta para a construção ou aprofundamento da democracia nas sociedades por transformações em sua estrutura que ressoam dos movimentos populares. Uma forte evidência dessa tendência pode ser confirmada ao analisar a instituição em diferentes lugares do mundo de organizações com essas características. Museus que procuraram reinventar suas formas de atuação pública existentes em diferentes lugares do mundo formaram no final dos anos 1990 uma coalizão internacional. De acordo com a apresentação formal dessa rede, batizada de Coalizão Internacional de Museus de Locais Históricos de Consciência (ICHSMC7, na sigla em inglês), seus objetivos em muito se assemelham às diretrizes de diferentes movimentos sociais ligados aos direitos humanos ou as diferentes formas de luta popular:

A Coalizão pretende trabalhar para capacitar os locais históricos ao redor do mundo a favorecer o diálogo sobre as questões sociais prementes e promover valores democráticos e humanitários. Procura transformar o papel dos locais históricos na vida civil de centros passivos em centros para a participação ativa dos cidadãos. Desenvolve locais de consciência como lugares para as comunidades travarem diálogos contínuos sobre o sentido do seu passado e as formas de seu futuro – como locais para construção de uma duradoura cultura dos diretos humanos. (Sevcenko, 2004, p.4)

A ideia dos “historic sites of conscience” (locais históricos de consciência) está relacionada a locais onde ocorreram terríveis violações dos direitos humanos e que por isso podem servir de exemplo para que as atrocidades cometidas não sejam esquecidas e não voltem a acontecer. São testemunhos dados não pela mão ou voz dos sobreviventes, mas pela concretude e silêncio das construções e espaços onde eles sofreram ou sofrem. O local como testemunho confere perenidade ao sujeito que dá seu depoimento e revela, com a sua naturalização na paisagem cotidiana da sociedade, a força que a memória opera na construção do espaço público.

Não é difícil associar essa proposta ao trabalho realizado em locais como o District Six Museum, que luta por um bairro cuja população foi removida pela da cor de sua pele por um Estado que pregava a “supremacia branca” e que inscreveu essa prática em sua própria instituição legal. Mas, será tão fácil para a sociedade brasileira olhar para as favelas e encará-las como locais nos quais ocorrem terríveis violações aos direitos humanos de milhares de trabalhadores urbanos? Será que o estigma que ainda acompanha os moradores de favelas no Rio de Janeiro está relacionado a um silêncio entre os formuladores de políticas públicas a respeito da origem desses territórios da pobreza e das precárias relações de cidadania entre os moradores desses locais, em contraste com a atenção dedicada a outras localidades? No debate público sul-africano não há quem defenda publicamente remoções e políticas do apartheid; um consenso civil conquistado tanto formal quanto praticamente a partir de intensa luta contra um regime tirânico. Por que em um país como Brasil, considerado mais tolerante e cordial, a manifestação pública de aprovação a políticas de remoção e extermínio de populações localizadas em determinados locais da cidade é tolerada, compreendida e justificada?8

Questões como essa determinam diferenças importantes nas problemáticas experienciadas por cada sociedade e as formas que tomam as lutas nelas travadas. O fato de que formas distintas de reivindicação e de luta política possam em um determinado momento a assumir forma de museu em diferentes partes do mundo é um questionamento relevante e cuja resposta pode iluminar não apenas as formas contemporâneas de movimento social como a própria instituição museu e por extensão outras instituições sociais que vão da escola até a própria estrutura do Estado. O que, de fato, ilumina o poder constituinte espalhado na multidão.

A ICHSMC pode servir como amostra para analisar os modos através dos quais o dispositivo museu é ressignificado e revela uma força latente de luta política através da memória na construção de democracias. Esse é um fenômeno que extrapola o caráter de combate intensivo de determinados movimentos sociais. O conceito de memória é o primeiro passo a partir de onde diferentes formas de movimentos e lutas populares vão encontrar um ponto em comum. A relação íntima estabelecida entre memória e museu é associada a uma igualmente forte relação entre memória e lugar. A partir dessa equação o lugar passa a estar mais próximo do museu na medida em que essa associação seja empreendida em torno de uma causa específica. Une-se com um determinado propósito a razão trazida pelo museu à emoção atrelada ao lugar. Um dos meios pelo qual ativistas envolvidos com Museus de Consciência buscam atingir seus objetivos é a partir do “poder emotivo” presente nos lugares capazes de “catalizar o pensamento crítico” sobre questões sociais atuais. Em outras palavras transformá-la em uma tática consciente a serviço dos direitos humanos e da justiça social (Sevcenko, 2003).

As áreas onde estão o Museu da Maré e o do Sexto Distrito apresentam questões muito similares a, por exemplo, um dos museus norte-americanos fundadores da coalizão, o “Lower East Side Tenement Museum”, que trata da memória de imigrantes em Nova Iorque submetidos a questões como “exploração do trabalho, discriminação étnica e racial, pobreza e restrições de imigração”. A diferença talvez esteja na persistência dessas condições nas populações atuais quando se trata de países de terceiro mundo. É claro que por estar situado em um bairro onde quatro a cada dez moradores são imigrantes, muitas das questões levantadas pelo museu nova-iorquino ainda persistem. Como uma reação à situações de abuso ainda existentes, a instituição propõe conversas sobre imigração, bem-estar, moradia, identidade cultural e outros temas relacionados. Ela acredita que assim locais históricos são capazes de catalisar a consciência e o ativismo público sobre essas questões. Expandido em escala internacional é possível entrever uma “virada da memória” em relação às lutas das populações subalternas contras as formas específicas de opressão em que se encontram.

Amparado na vontade de difundir essa experiência, o museu norte-americano fundado em 1999, propôs uma Coalizão Internacional de Museus de Locais Históricos de Consciência, formado hoje por nove integrantes, dos quais quatro estão localizados no antigo Terceiro Mundo (África do Sul, Bangladesh, Senegal e Argentina), dois em ex-repúblicas socialistas (Rússia e República Tcheca) e três em países capitalistas desenvolvidos (dois nos EUA e um na Inglaterra). Foi através dessa coalizão que se formalizaram as linhas gerais que definem o que é um “Local de Consciência” e sua forma de ação, esses locais devem ser uma iniciativa que: a) interpreta a história a partir de um local; b) produz programas capazes de estimular o diálogo sobre questões sociais prementes e promover valores democráticos e humanitários e; c) promove o envolvimento público nas questões específicas levantadas pelo local (Sevcenko, 2004, p.6).

Ao olhar os primeiros museus que formaram a coalizão é possível identificar que todos tem em comum um quadro de coordenadores que não possuem a formação tradicional dos administradores de museus. Em sua maioria são ativistas de diferentes formas de movimentos sociais que encontraram em locais históricos, por um motivo ou por outro, um meio de levar adiante sua luta. Seus membros estabeleceram uma carta de princípios na qual está incluído pelo menos quatro procedimentos para defesa dos direitos humanos através dos museus que consistem em promover: i) a verdade e construir uma cultura do “nunca mais”, ii) a reparação; iii) a reconciliação e ; iv) o engajamento cívico e a construção da democracia.

Essas ferramentas podem ser encontradas nas experiências dos museus/movimentos que compõe a coalizão. Como exemplo, na Argentina existe o “Memória Abierta”, uma rede de organizações de direitos humanos que transformaram um acervo de documentos, fotografias e locais urbanos em um arquivo sobre os abusos dos direitos humanos infligidos durante a ditadura militar dos anos 1970 e 80. Transformaram assim a cidade inteira em um grande Museu de Locais de Consciência ao indicar para o público os diferentes lugares de uso cotidiano dos cidadãos que foram utilizados como centros de tortura em um passado ainda recente. O grupo busca, assim, a verdade a fim de que cada visitante da Escuela de Mecanica Armada, prédio utilizado como principal centro de torturas clandestino e que passará a abrigar o Insituto Espacio para la Memoria, possa se questionar “Quais são os passos que uma sociedade toma para transformar o horror em algo normal? Se eu vejo uma injustiça acontecendo, isso me diz respeito? Como posso ser responsável ou estar implicado nesse processo?”9 Conferir materialidade a todas as formas de opressão, especialmente as mais violentas, cria na lembrança cotidiana de sua possibilidade e, principalmente, na sua recusa uma cultura do “nunca mais” junto a percepção concreta da possibilidade de transformação do próprio espaço e da própria cultura, desnaturalizando o mal unilateral ao apontar para um bem comum a construir.

Buscar reconciliação é outra das formas de promover os direitos humanos que museus/movimentos utilizam como ferramenta. Na Rússia o Museu do Gulag procurou promoveu encontros entre antigos prisioneiros e guardas, cada grupo guiando o outro no campo de concentração preservado a partir de sua própria experiência passada (Sevcenko, 2004, p.11). O objetivo da organização não é apenas promover a reconciliação entre alguns indivíduos, mas alertar através da memória do sistema do Gulag os perigos totalitários presentes em uma dinâmica social na qual a sociedade civil se aliena em práticas de cidadania passiva e confere ao outro o poder absoluto de criação do espaço político, social e constitucional. O bloqueio do poder constituinte da população é uma forma de impedir a transformação e o surgimento do novo. Não há porvir comum sem a comunidade, não há instituição do social sem a plasticidade criativa da sociedade. Não se trata de uma crítica ideológica de um regime em prol de outro que se lhe opõe, mas de uma crítica generalizada a todas as formas de esquecimento da força política da multidão promovido pelo poder constitucional instituído. A verdadeira reconciliação é a reunião do povo com as possibilidades de manifestação de seu poder.

Os membros integrantes da coalizão apresentam diferentes tipos de perspectiva de luta e posições políticas diversas, o que deixa claro que o museu é um dispositivo e como tal pode ser agenciado por linhas ideológicas diferentes. Essa diferença se apresenta com mais força em uma dualidade que diz respeito a uma postura multiculturalista de reconciliação e uma relativização das responsabilidades presentes em alguns museus, em oposição a posturas mais radicais e conscientemente intransigentes de outros. Aqueles buscam em sua premissa trazer para o mesmo espaço as diferentes partes de um conflito específico, acreditando que a melhor forma de resolver os conflitos é através de uma política de acordos com concessões de ambas as partes. Esse equilíbrio já parece impossível para grupos que lutam por questões de justiça que envolvem um padrão moral que não pode ser negociado e, portanto, não há reconciliação possível, apenas punição. É necessário, nesse caso, procurar revelar a verdade para que não haja suspeita sobre fatos que foram atentados violentos aos direitos humanos, o que significa buscar a verdade jurídica para reconhecer os culpados e os levar à justiça. Somente assim acreditam que um processo de reconciliação pode ter continuidade.

Museu como Movimento e o Movimento dos Museus

Em um “movimento político” a palavra movimento já remete para uma forma de organização não institucionalizada de ideias, grupo ou atividade e portanto não diz respeito necessariamente aos partidos ou outras instituições ligadas ao Estado. O fato de ser político remete diretamente aos objetivos desse movimento que procuram influenciar a esfera das decisões públicas ou questionar as formas de poder instituídos (especialmente o governo) e influenciar os processos decisórios. É possível relacionar a atividade de movimentos políticos em uma sociedade com sua vitalidade política na medida em que eles explicitam as contradições nela existentes ao mesmo tempo em que buscam superá-las. Por existirem fora dos sistemas institucionalizados dos campos do poder e por serem muitas vezes críticos a eles, acabam por oferecer as possibilidades de renovação nesses sistemas. Isso pode ser dito quando tanto os temas levantados quanto os métodos propostos conquistam legitimidade na sociedade e contribuem para criar novas formas de enfrentamento e possibilidades de solução. Isso pode ser chamado de poder constituinte. Em regimes democráticos ou em democracias em construção tais movimentos garantem a saúde do regime já que formam, conformam e reformam os meios de manifestação pública da sociedade civil. Dessa forma contribuem para incorporar na agenda pública as diferentes formas de contradição que servem de obstáculo para a concretização de um sistema de justiça social e pautam a reforma pela perspectiva da revolução.

É na lógica dos movimentos políticos que se inserem as diferentes formas de movimento social. Movimentos sociais podem ser distinguidos pelo tipo de transformação que querem provocar no sistema e pelo seu grau de integração e valores que compartilham. É comum identificar movimentos sociais que procuram promover a transformação nos valores estabelecidos na sociedade com movimentos radicais ou revolucionários em contraponto aos movimentos reformistas que, a princípio, aceitam os fundamentos da sociedade e buscam, dentro das regras estabelecidas, mudar a prioridade das decisões públicas para realização de seus objetivos. Em relação a renovação do campo político instituído eles podem ser vistos dentro de um contexto específico como explicitadores das tensões sociais existentes. A ideia de explicitar as tensões sociais implica que são os movimentos que fazem explodir os conflitos, logo esses não podem ser o reflexo de um conflito exterior a eles. Denunciam, assim, que as reformas ocultam, por vezes, as revoluções moleculares do que convencionou-se chamar pós-modernidade.

O conflito explicitado ainda é em grande medida a herança do processo de modernização que teve seu apogeu e declínio ao longo do século XX. Em grande medida o que ocorreu foi um processo de modernização que polarizou a sociedade a partir da acumulação dos recursos nas mão de uma elite, ao mesmo tempo em que definia de forma negativa, como inferiores, as categorias subalternas a que se opunha, ainda que estas também tenham acumulado recursos materiais e simbólicos significativos. Tanto no século XIX quanto no XX, foram as categorias subalternas que se mobilizaram para procurar libertar-se desse modelo. Teriam sido talvez, como identificou a sociologia dos movimentos sociais (Rojo, 2005), as sucessivas conquistas desses movimentos (dos trabalhadores, dos colonizados, das mulheres) que atenuaram as tesões sociais ao mesmo tempo em que frearam o dinamismo desse modelo ocidental.

Esse momento pode ser visto como a desarticulação e enfraquecimento dos movimentos de massa que escreveram a história do século passado. Isso ocorreu em grande medida como consequência desse arrefecimento das tensões sociais devido a uma nova incapacidade coletiva de conceber novos objetivos e fazer emergir novos conflitos nos mesmos termos que se fazia no século XIX. É nesse sentido que é possível diferenciar movimentos sociais que a partir da ressignificação de sua memória fazem emergir novos conflitos: os movimentos sociais/museus; dos museus que afrontados em seu tradicionalismo por um novo dinamismo social buscam se movimentar e ressignificar, não a memória de algum grupo social específico, mas sua própria função institucional. São portanto dois fenômenos que promovem uma reorganização das políticas de representação na sociedade, os movimentos sociais/museus e os museus em movimento para o social.

Essa distinção é necessária pois indica movimentos que se organizam a partir dos polos históricos que fizeram parte das estruturas sociais do século passado e que explodiram com o final do milênio. São ao mesmo tempo indicativos de mais uma vitória pontual dos movimentos de libertação que se organizaram desde então, ao mesmo tempo em que explicitaram que a luta ainda está longe de obter seus objetivos e novas formas de mobilização se fazem necessárias; e talvez se façam sempre. Mobiliza-se a memória para reconstruir o campo das políticas de representação em oposição ao modelo ocidental de modernização que impera há dois séculos. É uma luta que não quer as migalhas que restaram de uma outrora pujante consciência de classe – expressão de uma natureza humana a ser realizada no futuro – mas procura denunciar e vencer o inimigo do seu tempo, as forças que são obstáculos para a implementação de um regime de dignidade e justiça social de fato. É possível que quando colocados frente a um quadro mais amplo, os movimentos que surgem em torno da memória e, com isso, em torno do museu, sejam uma possibilidade de recuperação do social em um momento de experiências de desagregação e dessocialização que marcam a trágica reclamação do fim do social como a esfera pública constituída entre o político e o econômico. O movimento será sempre necessário, como nas palavras de Kundera: “Aquele que quer se lembrar não deve ficar no mesmo lugar e esperar que as lembranças venham sozinhas até ele! As lembranças se dispersaram nesse mundo vasto e é preciso encontrá-las e fazê-las sair de seu abrigo!” (Kundera, 1987, p.188).

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[1] Ver subseção “Coalizão Internacional de Museus Locais de Consciência” mais adiante.

[2] Congresso Nacional Africano (African National Congress, ANC). Antigo movimento anti-apartheid que tornou-se partido político na Nova África do Sul.

[3] O Group Areas Act de 1950 (Ato No. 41 de 1950) foi uma das leis criadas pelo regime do apartheid na África do Sul que designava os locais de residência e de trabalho nas cidades de acordo com a raça de seus habitantes, e foi o fundamento do sistema de apartheid urbano. De fato a lei impedia que não-brancos vivessem em cidades estabelecidas e trabalhassem em áreas economicamente viáveis. Essa lei foi revogada em junho de 1991.

[4] Traduzido livremente de www.districtsix.co.za/

[5] cf. Chagas (2007). Belo ensaio que oferece ao leitor uma dimensão social e afetiva desse museu.

[6] cf. www.ceasm.org.br

7International Coalition of Historic Site Museums of Conscience

[8] Um exemplo de polêmica pública sobre a legitimidade de um museu na favela pode ser lido em Vieira (2006, p.2).

[9] cf. www.memoriaabierta.org.ar