Como tornar-se um espírito livre?, por Maria Filomena Molder

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Maria Filomena Molder é professora da Universidade Nova de Lisboa.
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Resumo

Quando evocamos a nossa adolescência, descobrimos que ela é aquele período da nossa vida em que se abre entre nós e nós uma cisão. Raras vezes o adolescente consegue perceber o que é uma criança e, sobretudo, não consegue fazer a passagem da sua própria infância até onde ele está. Nesse sentido, a adolescência é a condição não rememorativa por excelência da vida humana. É a época em que a tolerância diminui drasticamente, em que nos perguntamos se a vida não é um sonho. (Esta é uma pergunta que uma criança não pode fazer, pois para ela é tudo real). E tudo nos parece vir do nada ou, pelo menos, desejaríamos que assim fosse, que tudo viesse do nada, nós próprios gostaríamos de ter vindo do nada, gostaríamos de ser autores da nossa vida. Está-se no coração de uma separação, de um desajustamento essencial às regras da sobrevivência, o que faz da adolescência a fonte de onde parecem provir todos os exercícios críticos, formas de inadaptação que podem manter-se transformadas, mais ou menos profundamente, e redimidas, mais ou menos profundamente, pela vida fora.

Palavras-Chave

Liberdade, Espírito

Abstract

When we evoke our teenage years, we find out that it is the period of our lives in which happens a split-up between ourselves and us. Rarely can the teen understand what is a child, and especially, can not make the transition from his own childhood to where he is. In this sense, adolescence is the non-reminiscent condition of human life par excellence. It is the time when tolerance decreases dramatically, when we wonder if life is not a dream. (This is a question that a child can not do, because for her all is real). And everything seems to come from nowhere, or at least we wish it were so, that everything comes to us from nothing, we ourselves would like to have come from nowhere, we would like to be authors of our lives. Being in the heart of a separation, of a mismatch that is essential to rules of survival, what makes adolescence the source from which all seem to originate critical exercises, forms of maladjustment that can remain transformed, more or less deeply, and redeemed, more or less deeply, throughout life.

Key Words

Liberty, Spirit

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Primeira entrada

Quando evocamos a nossa adolescência, descobrimos que ela é aquele período da nossa vida em que se abre entre nós e nós uma cisão. Raras vezes o adolescente consegue perceber o que é uma criança e, sobretudo, não consegue fazer a passagem da sua própria infância até onde ele está. Nesse sentido, a adolescência é a condição não rememorativa por excelência da vida humana. É a época em que a tolerância diminui drasticamente, em que nos perguntamos se a vida não é um sonho. (Esta é uma pergunta que uma criança não pode fazer, pois para ela é tudo real). E tudo nos parece vir do nada ou, pelo menos, desejaríamos que assim fosse, que tudo viesse do nada, nós próprios gostaríamos de ter vindo do nada, gostaríamos de ser autores da nossa vida. Está-se no coração de uma separação, de um desajustamento essencial às regras da sobrevivência, o que faz da adolescência a fonte de onde parecem provir todos os exercícios críticos, formas de inadaptação que podem manter-se transformadas, mais ou menos profundamente, e redimidas, mais ou menos profundamente, pela vida fora.

Na filosofia aquele desajustamento tem origem na descoberta da estranheza da vida, uma experiência de perder o pé em relação a tudo o que já sabíamos – de repente, não percebermos o que é isto de estarmos vivos, e o curso da vida fica interrompido (interrupção que se pode tornar um gesto contra a vida). Na grande poesia, esses elementos críticos estão sempre associados, mesmo nos casos mais drásticos de recusa, a uma renovação do vínculo infantil com a vida. Não é dado à filosofia renovar esse vínculo da mesma maneira que a poesia. Mas se ela não tiver nenhum acesso à infância, então nada feito. Também na filosofia terá de haver uma espécie de inocência. Só que em Nietzsche – contrariando uma evidência comum – não é por ela que se começa.

Segunda entrada

Considere-se o elemento crítico na filosofia como aquele em que vemos exercer os seus direitos uma tendência apaixonada pelo obstáculo. Trata-se de não ceder a nenhuma ideia feita, a nenhuma retórica que leve o pensamento a ficar saciado e o torne imune aos desafios da compreensão. Ao mesmo tempo, se não se estabelecer uma tensão resolutiva com o obstáculo, o pensamento corre o perigo de ficar encerrado na volúpia da irresolução, no prazer de não encontrar solução, de cair no poço de todos os obstáculos. O nihilismo, nas suas várias versões, é o senhor encartado deste fechamento.

Se aceitarmos que a filosofia tende a ser ancilla vitae, então os perigos da auto-devoração do pensamento poderão ser evitados. No seu Projecto de uma paz perpétua, propondo aquela relação da filosofia com a vida, Kant considera que ela deverá preceder a sua graciosa Dama, levando o archote, em vez de a seguir segurando a cauda. No meu entender, não se pode tomar esta dupla maneira de ver a relação entre filosofia e vida como duas perspectivas irredutíveis em alternativa, mas também não se pode de modo nenhum ignorar que não são coincidentes. Vamos tentar reuni-las numa constelação. Se a filosofia é um esforço de conhecimento da vida, deverá corresponder aos seus desafios, deverá cuidar da vida, não a deixando correr perigos e, por conseguinte, vai à sua frente, iluminando os caminhos que consegue abrir, mantendo-a desperta para si própria. E, no entanto, a vida é sempre primeira e última, a vida adianta-se-nos sempre, na medida em que se surpreende nela um segredo por revelar, um enigma que desafia o decifrador, e então ela pede que a sigamos e torna-se objecto de veneração e de humor. A paixão pelo obstáculo encontra assim o seu verdadeiro alimento.

Tomemos estas entrada como dois acessos àquilo que está em causa  na pergunta: como tornar-se um espírito livre?

Quaestio mihi factus sum (S. Agostinho)

Eis em rigor aquilo que interessa a Nietzsche. Tornar-se para si próprio uma questão – a um tempo psicológica e astronómica – toma nele a forma de um inquérito sem termo sobre o que veio ele fazer à Terra. Talvez em nenhum outro filósofo se observe de modo tão nítido esta responsabilidade exposta por estar vivo. Encontramos uma bela pedra-de-toque para isto no extraordinário prefácio a Humano demasiado humano[1], nesse traçar da sua própria experiência de metamorfose em “espírito livre”. E já esta afirmação terá de ser contestada, pelo que adiante se verá.

Um prodígio de precisão, estes oito parágrafos escritos oito anos depois da primeira publicação de Humano, demasiado humano dão-nos a ver um caso singular de inseparabilidade entre o que se quer dizer e o modo de querer dizer. As imagens são, por assim dizer, exsudadas pelo esforço conceptual e, por sua vez, o conceito engendra-se no incessante tomar o pulso àquilo que o leva à existência.[2]

Estamos diante de um singular documento filosófico-literário,  próximo da poesia, mas não pela abundância e fertilidade das imagens, pois a musicalidade não é a da poesia, impede-o a artificialidade de tantos à partes, tantos subentendidos, acordos tácitos, tantos pontos de interrogação cheios de ironia que separam de maneira violenta a voz que se ouve daquilo que se lê, o que, na verdade, faz parte da tensão nietzschiana para a máscara. A proximidade com a poesia procede justamente do género de precisão conseguida: trata-se de deixar falar a própria coisa (embora não se chegue ao ponto das coisas chegarem ao pé dele, pedindo asilo, pedindo para serem chamadas, como acontece no Zaratustra). E como? É que todos os aspectos retóricos, inventivos, artificiais, servem inteiramente a descrição do que está em causa. Isto é, o modo da inventividade, a maestria das afinidades fonéticas e semânticas, entrelaça-se com aquilo que Nietzsche vê e quer dizer, a saber, o que se passou com  aquele que se estava, que se está, a tornar um espírito livre. Aquele que escreve, escreve como um eterno convalescente. Vemos sob os nossos olhos qualquer coisa a que Hofmannsthal chamou (em relação aos escritos de filosofia natural de Goethe) uma palingenesia da linguagem: o acto rememorativo conhece a “predestinação para o labirinto” (Prefácio Anti-Cristo) percorrendo-o e refazendo-o à altura do incessante voo de um pássaro.

Dass es dergleichen freien Geister einmal geben könnte […]

daran möchte ich am wenigsten zweifeln (2, 15)

Nietzsche vê-os chegar devagar, devagar. A fim de apressar um pouco a sua chegada, vai tentar descrever o que ele próprio viu enquanto passava por essa metamorfose – o caminho a que ele chama destino e cujo termo final será incerto. Esses que vão chegar não correspondem aos fantasmas engendrados para suportar o isolamento, acossado pelas suas dores mudas: doença, solidão, estranheza, acedia, inactividade. Têm, antes, origem numa gravidez secreta que ele advertiu em si mesmo (7, 21)

E, no entanto, a isto é preciso acrescentar alguma coisa que corrige e não corrige o que acabou de ser dito. Quando não se encontra aquilo que se procura e de que se está necessitado, a saber, uma comunidade de iguais, é preciso inventá-la, fantasiá-la, retirá-la artificialmente de si próprio (como fazem os poetas, diz ele). Só não é artifício (continuando a ser enquanto estiver a escrever), porque ele está a comer o seu próprio coração.[3] Nietzsche, porém, nem sempre esteve preparado para o fazer.

Aqui, torna-se imprescindível olhar de novo para O Nascimento da Tragédia. Nietzsche nunca deixa cair essa obra da juventude, onde, por assim dizer, ficou enterrado o seu coração, e nós sentimos a exigência de voltar a cuidar daquelas palavras embriagadas, entusiasmadas, reverentes, esperançosas. No fundo essa obra acompanha-o sempre, pois é nela que se desenha a matriz labiríntica do seu pensamento: o pessimismo da abundância, a droga dionisíaca da música, a crítica veemente aos teóricos do optimismo, a expectativa de uma música alemã, de um ressurgimento alemão do dionisíaco, isto é, Schopenhauer, os Alemães e os Gregos; Wagner, os Gregos e os Alemães. Palavras retomadas sob a forma da injunção no Ecce homo: “que ninguém me impeça” de acreditar num ressurgimento dionisíaco. Também aqui, no Prefácio a MA, se escuta uma injunção de teor afim: ninguém menos do que ele duvidará da vinda dos espíritos livres. Houve tempos em que ainda não estava preparado para comer o seu próprio coração (o que por vezes volta a acontecer, por exemplo em relação a Platão e mesmo a Wagner), em que à veneração, ao amor, à confiança, ao puro entusiasmo, à embriaguez, se misturava uma prevenção crítica ainda latente. E por isso é acusado de ter cunhado moeda falsa, acusação merecida, pois deixou-se voluntariamente enganar por quem sentia já um sentimento latente de desengano: Schopenhauer, Wagner, os Alemães e o seu futuro, e mesmo os Gregos, e muitos outros casos …  Mas compreenderão, esses que o acusam, o que é que estava em causa naquela cunhagem? (1, 13-14).

Ein Erdstoss

Para que um espírito se torne livre, para que amadureça, terá de passar por um acontecimento decisivo: uma “grande separação”/”grosse Loslösung” (3,15) e isso tanto mais quanto mais o espírito estiver ligado (gebundener Geist). Caso de um jovem de natureza elevada, de boa estirpe, em que os vínculos se chamam deveres: respeito, timidez, doçura, veneração, gratidão (pela casa onde nasceu, pela família, pelo templo onde aprendeu a venerar, pelos mestres) (3, 16).

Como um desprendimento de terras, um desabamento, a “grande separação” chega de imprevisto. A “jovem alma” sem entender o que se está a passar com ela, fica realmente fora de si: “er zerreisst was ihm reizt” (3,17).  Coisas más e dolorosas como: ódio ao que se amava, tudo isso pertence à história de “grande separação”, que é, na verdade, o movimento inquietante e paradoxal do crescimento da jovem alma, uma espécie de doença que se pode tornar mortal, devorando o doente, ao mesmo tempo que a cura não se pode obter senão deixando desenvolver todos os seus sintomas, penetrando nos seus recessos mais assustadores, tornando o espírito, por assim dizer invulnerável, adquirindo uma resistência de sete peles, como o escudo de Ares.[4]

Ao tentar ver como é que as coisas ficam quando a sua ordem é invertida, o espírito que se está a tornar livre penetra até às fronteiras últimas, assustadoras, que o desprendimento engendrou: será que Deus é uma invenção do Diabo e não será o bem o mal? Não serão os enganados também mentirosos, que terão de ser mentirosos? “solche Gedanken führen und verführen ihn”. E quem sabe hoje em dia o que seja a solidão? É com esta pergunta retórica, lamentosa e inclemente, expelida como um grito, que se fecha a 3ª secção.[5] A solidão é a mater saeva cupidinum (verso de uma ode de Horácio), Vénus, a selvagem mãe de todos os desejos, de todas as visões amorosas.

Antes da “grande separação”, o próximo é um enxame de lugares comuns, de hábitos cómodos. Só depois dela, se não sucumbir aos seus perigos (à tentação da crueldade e da violência valerem por si próprias), o espírito que se está a tornar livre pode aceitar, gozar, amar o que lhe é próximo (a começar pelo sol, o espírito fica, por assim dizer, amarelo) (5, 19).

Escada e anzol

A fase em que o espírito ainda não é livre, mas em que já perdeu – através da suspeita e do desprezo – as primeiras crenças, as formas afectivas e formativas da adesão, da confiança, pode ser comparada – com reservas, como se verá –  à escada do Tractatus. Por um lado, o que se perdeu ficou perdido, não se pode voltar para trás – daqui ressalta imediatamente o destino, pungente e definitivo. Por outro, é preciso ter mão no poder da separação, não ficar preso ao prazer da destruição, não sucumbindo à tentação de se apaixonar pela sua própria violência. Digamos, a fase do desprezo, da demolição, da ruína, não pode ser isolada e exaltada, sob o risco de se ficar cativo nela. Além disso, a “grande separação” conhece um limite – que pode ou não converter-se em limiar –, a saber, o momento da deslocação dos pares de opostos e da inversão dos seus lugares, pelo desmantelamento das razões que os sustentam. O outro aspecto essencial – inseparável da fase do contempto e da inversão – é a solidão e a sua expressão associada, a saber, a máscara (o elemento onde todo o processo se passa e se exprime), recurso fisiológico (filosófico e literário) com origem na consciência dos perigos de se dar a conhecer. Com efeito, Nietzsche vê como um dever proteger-se daqueles que o lêem, impedindo-os de se embrenharem demasiado naquilo que os horrorizaria: o acesso ao percurso do espírito que se torna livre (cf. também “Ensaio” + FW). E aí a escada, que W diz ser preciso deitar fora depois de se ter subido por ela para um certo lugar, já não nos dá assistência, pois a solidão, e tudo o que lhe está associado, faz do próprio filósofo o seu instrumento, isto é, os degraus da escada são carne da sua carne (7, 21-22)

Para se tornar livre, é preciso que, depois de ter atravessado o deserto, a escuridão, a agonia, que a “grande separação” provoca, travessia que infecta como uma doença, o espírito entre em convalescença. Enquanto a doença grassar, enquanto os seus sintomas não se manifestarem inteiramente, não é possível ao espírito que está fora de si ter noção do acesso que ela permite, desvendando o seu enigma, isto é, só pela doença se obtém a “grande saúde”. É assim que o espírito se torna convalescente e dá início ao gesto de rememoração (cf. início secções 3 e 4)

No deslizamento de terras que anuncia a “grande separação” o espírito ainda não é livre. Falta dar-se uma transformação subtil, em que o desprezo se aligeira, preparando-se o espírito para superar a idolatria das oposições e da sua inversão (4, 18). Isto é, as estações do seu gesto de separação estão atravessadas por vaivéns, por movimentos para diante e para trás, impedindo a superação falsificada, a ilusória fixação na estabilidade de um alvo alcançado.[6]

Talvez seja lícito chamar perspectivismo a este processo (6, 20). O espírito livre estará sempre entre as irradiações da grande separação e do momento da convalescença em que a grande saúde se anuncia, não como uma harmonia reconsiderada, mas como um esforço de se libertar da parcialidade, da rigidez, do fechamento, a que esse processo de separação poderia conduzir (4, 18). Na verdade, nem a grande separação pode ser ultrapassada, vencida para sempre, nem a grande saúde é o despojo assegurado de um acto de conquista.

São precisos muitos anos de ensaio, de experimento consigo próprio, para ver chegar aquela saúde imensa e transbordante, que não gosta de prescindir nem sequer da doença como meio e anzol para não deixar fugir o conhecimento (4, 17); aquela liberdade madura em que o espírito  se transmuta ao mesmo tempo em autodomínio e disciplina do coração, abrindo o caminho a muitos modos de pensar opostos.

Etwas drittes

Por conseguinte, entre a fase do isolamento doentio e a superabundância, a plenitude das forças, medeiam longos anos de convalescença, anos de irisadas transmutações, aflitivas e fantasmagóricas, dominadas e conduzidas pela rédea graças a uma tenaz “vontade de alcançar a saúde”, tenacidade que muitas vezes se veste e mascara de saúde (4, 18).

Há aqui um elemento terceiro, uma condição intermediária, diz Nietzsche: não será aí, nesse intervalo pairante que ele se move sempre? Aquela condição que o ser humano que obedece ao destino da metamorfose não pode deixar de recordar sem comoção. E então pertencem-lhe uma luz pálida e delicada, uma felicidade solar, um sentimento de liberdade de pássaro, de vista de pássaro, de atrevimento de pássaro, numa amálgama alquímica de curiosidade e leve desprezo (Idem).

Esquivando-se a qualquer etiqueta, o espírito que começou a rememorar o que lhe aconteceu já não escolhe entre o sim e o não, entre os laços de amor e os vínculos de ódio, “voluntariamente perto, voluntariamente longe”: “está mal acostumado como todo aquele que viu abaixo de si uma imensa diversidade”, e torna-se a contrapartida dos que se preocupam com coisas que não lhes dizem respeito, ele que se dedica àquilo que lhe diz respeito e já não lhe causa nenhuma preocupação (Idem).

Onde estava ele, onde tinha estado ele? A grande rememoração

Caminha-se agora para o despertar da rememoração, para a resolução do enigma que a “grande separação” lançou e se encontrava ofuscado, imperceptível, na memória. A convalescença dá mais um passo e o espírito convalescente aproxima-se de novo da vida: lentamente, lentamente, quase recalcitrante, quase desconfiado (5, 19). Tem a impressão de que só agora os olhos se lhe abrem para o que está perto, como lhe parecem transformadas as coisas próximas e ainda mais próximas. Esses convalescentes (como os lagartos) são os seres mais agradecidos do mundo. Eis o espírito na posse de uma cura radical contra o pessimismo (que não pode deixar de fazer parte da “grande separação”, que já está à espreita antes do desabamento de terra, provocando-o). Que felicidade mesmo no cansaço, nas antigas dores, nas recaídas do convalescente. Que surpresa! Que maravilha! (Idem). Se passar adiante do estado de convalescente carece de pedras-de-toque seguras e definitivas, já os seus lampejos são inúmeros .

Observe-se o contraste entre as duas velocidades: a do vertiginoso desabamento de terras e a da lentidão própria da convalescença (foi a vertigem que proporcionou a aprendizagem da lentidão): adoecer à maneira desses espíritos, ficar doente um bom bocado e depois “devagar, ainda mais devagar tornar-se são, isto é, mais são”. Passou-se da condição de habitante que se ignora, “zu Hause”/”bei sich” (antes da “grande separação”, confiante, crente, manso, reverente) para uma forma de êxtase tão libertador como destrutivo, ficando o espírito “ausser sich” (durante a “grande separação”), até alcançar o ponto em que ele se consegue ver a si mesmo: “jetzt erst sieht er sich selbst” (durante/após/durante a convalescença).

“Es ist Weisheit darin…” (5, 19)

Injustiça e dizer sim

E chega o momento em que se desvenda o enigma da “grande separação”. Trata-se de um momento já não rememorativo, mas activo, activamente presente, irmanando-se ao presente: tomar conta de si, de tudo o que permanecera como uma sombra, problemático, questionável, intocável: dantes as virtudes eram senhoras dele, agora é ele que se assenhoreia das virtudes, elas tornam-se seus instrumentos ao lado de outros instrumentos. E assim ele aprende o olhar do perspectivismo, adquirindo domínio sobre o pró e o contra, adestra-se a engatá-los e a desengatá-los: despede as contradições, diz adeus às inversões. Alcançou-se aquele olhar em que vê a injustiça ínsita à própria vida, compreendendo e aceitando a injustiça necessária a cada pró e cada contra, a injustiça no seu jogo de forças, na hierarquia/Rangordnung a que pertence. O espírito que se está a tornar livre sabe que daí em diante o “que tu deves” se submete àquilo que só agora lhe é permitido (6, 20-21).

Ein schwermuthig-muthige Buch (2,15)

Esta qualificação é já um programa: a invenção fantasiosa, ilusória, dos espíritos livres, como forma de indemnização pelos amigos que faltam, sofrendo em plena convalescença de recaídas que não pode evitar, que não quer evitar, ingerindo em doses homeopáticas os medicamentos que o hão-de curar.

Todo a secção 1 é um confronto com os seus leitores – como os seu leitores o vêem e como ele se vê através deles – para se livrar deles.[7]  (1, 13) Armadilhas e redes são os seus escritos para os leitores incautos, do género daqueles que preocupam com coisas que não lhes dizem respeito, ele que se disciplinou, como já vimos, de modo a poder tratar das coisas que lhe dizem respeito mas já não o preocupam (1, 13; 4, 18). Escola de suspeita, mesmo de desprezo, chamaram aos seus escritos, e também (no que ele se revê ainda mais, no sentido em que a suspeita e o desprezo podem também ser os instrumentos do homem ressentido, e do nihilista activo) disseram que ele era corajoso e ousado. Como estão longe de vislumbrar o que está em causa nessa suspeita e nesse desprezo – a saber,  o cortejo de dores, inquietações que os acompanham – e, portanto, incapazes de avaliar a coragem e a ousadia, inseparáveis da intimidade com aquilo que virá ter com ele, alvo supremo a cuja obediência se submeteu (ele, o animal mais agradecido).

Genug, ich lebe noch (1, 14)

Na verdade, reconhece ele, não deve ter havido ninguém que tenha olhado com tão profunda suspeita o mundo, não apenas como “gelegentlicher Anwalt des Teufels”, mas “als Feind und Vorforderer Gottes” (theologisch zu reden, precisa ele). “Uma incondicionada diferenciedade do olhar”, que o empurra para a solidão, para o isolamento, mas também para a ilusão, o artifício, a fantasia, engendrando as suas máscaras, que o libertam dos calafrios e temores do isolamento. Por isso, para se repousar de si próprio (a fim de não soçobrar), para se esquecer de si próprio, abrigou-se “numa qualquer veneração, ou inimizade, ou tema científico, ou frivolidade, ou estupidez”.

“In dem Mittag unseres Lebens”, o espírito que se tornou livre, que está a tornar-se livre, deseja que o seu caso se torne o de muitos, que possam querer realizar a tarefa de estar vivo na sua plena fertilidade, no seu inteiro poder, fazendo-a “vir ao mundo”, destinação em que o futuro dá a regra. Assim se apresenta a resolução do enigma da “grande separação”: uma fertilidade que é preciso surpreender. Eis a hierarquia, o problema novo “’ein Höher’ und ’Uebereinander’ das gleichfalls ‚Mensch’ heißt […] ein Höher, ein Tiefer, ein Unter-uns” (7, 21): uma longa escada por cujos degraus ele subiu, pelos quais sobe, e que a dada altura foram ele próprio.

Recapitulando: “quantos preparativos, quantos rodeios, provas, tentações, disfarces” foram precisos para que aquilo por onde se sobe e aquele que sobe se fizessem um. Ter de passar pelas experiências dos mais contraditórios estados de crise e de ventura, ele um aventureiro, um circum-navegador desse mundo interior que é o ser humano, obedecendo ao chamamento, ferido em todas as direcções,  quase sem medo, não desdenhando nada, saboreando tudo, limpando tudo o que é aleatório (o acaso não tem aqui lugar, a leveza não nasce do acaso; tudo o que se aceita, promove, provoca, tem o selo da necessidade), peneirando de modo a receber os proventos do excesso: de tempo, de claridade do céu e do coração, de ócio.

“…ein Sieg? Über was? Über wen?” (3,16)

Dioniso vigia e acompanha. Versado na sua música, na arte da flauta, será aquele que saiba decidir em que ponto da evolução (e da hierarquia) pertence este livro (cf. 8, 22). O livro de alguém cuja cura e auto-restabelecimento só poderia vir da convicção de não ser tão único (1, 14). Por isso enganar-se a si próprio é uma falsidade que lhe faz falta, nela se mostra a astúcia própria da auto-conservação, a ilusão própria da vida. Não é apenas a idolatria do desprezo e da suspeita a suprimir realmente a possibilidade de um espírito se tornar livre. Também ser enfeitiçado pela disciplina da frieza (ele que se especializou em produzi-la), torna inviável a reaproximação àquilo que está próximo, muito próximo. “E quanta falsidade ainda me faz falta, para que eu possa permitir-me continuadamente o luxo da minha veracidade?” (Idem).

 


[1] Todas as referências procedem de Menschliches Allzumenschliches, Nachwort, Friedrich Nietzsche, Sämtliche Werke, Kritische Studienausgabe, vol. 2, dtv, de Gruyter, München, 1980. Traduções da minha responsabilidade

[2] Conhecemos muito irmãos e irmãs deste tomar o pulso noutros prefácios e, em particular, no “Ensaio de uma Auto-crítica”; mas no caso em apreço trata-se de um acto rememorativo único.

[3] Como faz o poeta em Baudelaire  (Je fais bouillir et je mange mon coeur, Les Fleurs du Mal, XXXVIII) ou Beatriz num sonho de Dante na Vita Nuova.

[4] “Uma experiência nascida das sete solidões”, Prefácio, Anti-Cristo. “Uma solidão de sete peles”, Ecce homo.

[5] Também as duas primeiras secções terminam com perguntas, mas esta é equivalente àquela que, como um desafio, Nietzsche lança na 1ª secção; a pergunta da 2ª é de um tipo inteiramente diferente, no grau zero da retórica, estremecendo sob a sua própria perspectiva de poder coadjuvar a vinda dos espíritos livres.

[6] Veja-se em Wittgenstein (Vermischte Bemerkungen) da inversão da marcha, quando se está a subir uma montanha, inversão que proporciona uma intensificação do tonos muscular, permitindo um recomeço mais eficaz.

[7] Para se proteger dos discípulos indesejáveis e da redução a mais uma escola etc. e tal, Wittgenstein exilou-se cada vez mais da possibilidade de publicar. Nietzsche, com o mesmo fito, cada vez publicou mais, desenvolvendo máscaras que se engendram na diferença, por vezes indiscernível, entre o esotérico e o exotérico. Os leitores que aceitem percorrer esse labirinto, terão de se esforçar por decifrar os sinais que permitam discernir um do outro.