Rafael Assumpção de Abreu é pesquisador do Laboratório de Estudos Hum(e)anos.
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Resumo
Talvez, este trabalho seja sobre o óbvio. Buscar alguns elementos do pensamento agostiniano no evangelho também não é nem um pouco original. Entretanto, ao tentarmos nos afastar da clássica definição da tradição do pensamento filosófico que localiza Agostinho entre Platão e Descartes, operamos por meio de uma análise que tenta resgatar a importância de uma guinada – nos primórdios do cristianismo – que representa uma pedra angular naquilo que denominamos como o mundo ocidental: se entendermos que há uma importante ruptura entre o Velho e o Novo testamento estaremos a realizar uma tarefa que consiste, quem sabe, em traçar paralelamente uma importante tradição para o ocidente: começando pela Doutrina d’O Caminho[2], passando por Paulo até chegar no mestre do ocidente Agostinho e, quiçá, desembocando em Lutero – o monge agostiniano que dispensa apresentações. Por ora, convém mencionar que nisto não há a intenção de cometer um erro absurdo, ou seja, de negar o inegável: a influência declarada do neoplatonismo – principalmente via Plotino – em Agostinho pode ser comprovada ao entrarmos em contato com a sua obra. No entanto, ao contemplarmos alguns pontos presentes no evangelho para tentar compreender o significado de interioridade em Agostinho partiremos da hipótese de que o desprendimento operado pelo cristianismo fora essencial para tal feito.
Palavras-chave:
Cristandade, Doutrina do Caminho
Abstract
Perhaps this work is about the obvious. To find elements of Augustinian thought in the gospel is not original. However, when trying to get away from the classic definition of the tradition of philosophical thought that locates Augustine between Plato and Descartes, we operate through an analysis that tries to rescue the importance of a shift – in the early days of Christianity – which is a cornerstone in what we call as the Western world: if we understand that there is a significant rupture between the Old and New Testaments we would take a task that is perhaps to draw a parallel to the west important tradition: starting with the Doctrine of The Path, passing Paul until the master of the West Augustine and, perhaps, ending in Luther – the Augustinian monk who needs no introduction. For now, however, it is worth mentioning that there is no intent to commit an absurd mistake, or to deny the undeniable: the declared influence of Neoplatonism – mainly via Plotinus – in Augustine can be proven once we get in touch with his work. However, as we contemplate some points present in the Gospel to try to understand the meaning of interiority in Augustine, we start from the assumption that the detachment operated by Christianity was essential for such a feat.
Key words
Christianity, Doctrine of The Path
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Introdução
Nós recebemos o ensinamento de que Cristo é o primogênito de Deus e indicamos antes que ele é o Verbo, do qual todo o gênero humano participou. Portanto, aqueles que viveram conforme o Verbo são cristãos, quando do foram considerados ateus, como sucedeu entre os gregos com Sócrates, Heráclito e outros semelhantes; e entre os bárbaros com Abraão, Ananias, Azarias e Misael, e muitos outros, cujos fatos e nomes omitimos agora, pois seria longo enumerar. De modo que também os que antes viveram sem razão, se tornaram inúteis e inimigos de Cristo e assassinos daqueles que vivem com razão; mas os que viveram e continuam vivendo de acordo com ela, são cristãos e não experimentam medo ou perturbação. [Justino de Roma].
Talvez, este trabalho seja sobre o óbvio. Buscar alguns elementos do pensamento agostiniano no evangelho também não é nem um pouco original. Entretanto, ao tentarmos nos afastar da clássica definição da tradição do pensamento filosófico que localiza Agostinho entre Platão e Descartes, operamos por meio de uma análise que tenta resgatar a importância de uma guinada – nos primórdios do cristianismo – que representa uma pedra angular naquilo que denominamos como o mundo ocidental: se entendermos que há uma importante ruptura entre o Velho e o Novo testamento estaremos a realizar uma tarefa que consiste, quem sabe, em traçar paralelamente uma importante tradição para o ocidente: começando pela Doutrina d’O Caminho[2], passando por Paulo até chegar no mestre do ocidente Agostinho e, quiçá, desembocando em Lutero – o monge agostiniano que dispensa apresentações. Por ora, convém mencionar que nisto não há a intenção de cometer um erro absurdo, ou seja, de negar o inegável: a influência declarada do neoplatonismo – principalmente via Plotino – em Agostinho pode ser comprovada ao entrarmos em contato com a sua obra. No entanto, ao contemplarmos alguns pontos presentes no evangelho para tentar compreender o significado de interioridade em Agostinho partiremos da hipótese de que o desprendimento operado pelo cristianismo fora essencial para tal feito.
O objetivo deste trabalho, portanto, consiste em tentar compreender a importância da guinada cristã para o pensamento de agostinho. Sobretudo para a oposição estabelecida por este pensador entre interior/exterior[3]. O ponto de partida consiste em entender que, o voltar-se para dentro em Agostinho encontra fundamentação em profundas mudanças em determinadas concepções a partir do evangelho de Cristo. Ou seja, pretendemos demonstrar que houve uma ruptura, uma reformulação em determinadas concepções: como por exemplo, no que diz respeito à conversão. Ou seja, para compreendermos a filosofia agostiniana é essencial considerar estas questões. De tal modo, este trajeto proposto abre um amplo caminho para descrevermos a questão que envolve uma relação existente entre a filosofia e o pensamento cristão, por meio de um processo de interiorização na relação com Deus, que passa a ser percebida segundo uma ótica que é pessoal. Se possível for, portanto, a tentativa aqui consiste em encontrar alguns temas que são caros à filosofia de Agostinho em algumas passagens bíblicas que dão os contornos essenciais à doutrina cristã. Com isto, poderemos introduzir o debate ao perceber um movimento que perpassa dois momentos: o cristianismo em combate, ou seja, a sua ascensão; as concepções da filosofia cristã de Agostinho.
A doutrina cristã nos seus primórdios: por amor aos gentios.
Não seria de modo algum errôneo entender o Velho Testamento, ou melhor, os seus cinco primeiros livros – o Pentateuco -, como aqueles onde se pode ver que, ao povo de Israel, eram determinadas minuciosamente normas de conduta a serem seguidas. Normas estas que culminariam nos Dez Mandamentos recebidos pelo líder Moisés, o mediador. Ao decágono, segue-se uma série de leis (êxodo 20 a 23), inclusive acerca da propriedade, que selariam a aliança entre Deus e Israel: “Veio, pois, Moisés e referiu ao povo todas as palavras do Senhor e todos os estatutos; então, todo o povo respondeu a uma voz e disse: tudo o que falou o Senhor faremos”[4]. A relação entre Deus e os seus servos, como demonstra os diálogos com Moisés, dava-se externamente e, as suas leis, necessitavam de uma inscrição exterior. A concepção de perdão, neste contexto, para a divindade única, acompanhava este entendimento, ou seja, o perdão era concedido por meio de sacrifícios. Moisés, no livro de Levítico, recebe de Deus a descrição dos rituais a serem feitos para que ao povo pudesse ser concedido o perdão: se qualquer pessoa do povo da terra pecar por ignorância, por fazer alguma das coisas que o Senhor ordenou se não fizessem, e se tornar culpada; ou se o pecado em que ela caiu lhe for notificado, trará a sua oferta uma cabra sem defeito, pelo pecado que cometeu[5]. Interessante é o fato de que por todo este livro bíblico, há uma tipologia de pecados e seus respectivos rituais para a concessão do perdão, sempre envolvendo sacrifícios.
O Deus criador do Velho Testamento foi também o Deus da guerra. A sua justiça era feita, se necessário, na batalha, com morte e sangue. Logo no livro de Gênesis Deus soluciona o problema da maldade humana com um dilúvio que durou quarenta dias[6]. Quando Sodoma e Gomorra estavam tomadas pelo pecado e pela impiedade, Deus fez com que fossem destruídas[7]. A conquista do território de Canaã não é senão uma tomada por meio de uma invasão. Entretanto, como se Deus chegasse à conclusão de que as suas investidas acabaram por não solucionar os problemas dos terrestres, altera a sua tática com a existência de Cristo. Amansa, pois, a mão que castiga: a salvação do mundo será representada pela figura de Jesus Cristo, imóvel e pregada em uma cruz. Ou seja, no Velho Testamento, Deus reclamava por sua onipotência impondo a vitória na guerra a um povo, um único povo. Agora, em contrapartida, Jesus completa o que foi dito aos antigos: ouvistes que foi dito: amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, vos digo: amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem. A mudança de postura demonstra que o mundo D.C. reconhece o seguinte ensinamento: a superioridade Divina deixa de ser evidenciada com a sua presença na terra de tal modo que, o cristão, agora, ao demonstrar um ato de benevolência, confirma que há em si próprio, no seu interior, a presença divina. Anteriormente, quando o povo de Israel vencia uma guerra, era uma ratificação de obediência a Deus, de que Ele estava junto ao povo escolhido. Esta situação se reverte: o ato de dar a face ao inimigo, implica uma mudança considerável. Ou seja, a superioridade Divina confirma-se de outra forma. Mas como explicar essa mudança? Como explicar isto como um processo de interiorização da relação entre a pessoa e Deus? O que nos é caro para este tipo de análise é considerar dois elementos essenciais para o cristianismo: o primeiro deles reside em uma nova acepção que é dada à dicotomia vida espíriual/vida terrena. Em segundo lugar, desta primeira questão deriva uma outra, qual seja, dos novos contornos presentes na concepção, no significado de conversão: ao abordarmos a questão da conversão dos gentios nos escritos de Paulo poderemos observar o que este debate consiste para a tradição cristã.
Por meio da figura de Cristo, há uma mudança significativa na relação entre a pessoa e Deus. Ou seja, a noção que envolve o perdão transforma-se ao voltarmos o olhar para os livros do Novo Testamento. Esta mudança é nítida no décimo capítulo da epístola aos Hebreus: (…) porque é impossível que o sangue dos touros e de bodes remova pecados. Por isso, ao entrar no mundo, diz: sacrifício e oferta não quiseste (…). Nessa vontade é que temos sido santificados, mediante a oferta do corpo de Jesus Cristo, uma vez por todas (…). E disto nos dá testemunho também o Espírito Santo; porquanto após ter dito: esta é a aliança que farei com eles, depois daqueles dias, diz o Senhor: porei no seu coração as minhas leis e sobre a sua mente as inscreverei (…). Agora, portanto, ao ter Cristo como mediador, as leis divinas passam a serem inscritas não mais em tabuas, mas, sim, nos corações dos fieis. Esta mudança, na idéia do perdão significa uma alteração de comportamento que passa a descrever a relação entre o indivíduo e Deus interiormente.
Em seus anos na terra, Cristo opera uma crítica ao estado de coisas existentes ate então. O seu argumento gira em torno da concepção de que há um equivoco em assegurar os Mandamentos de Deus segundo a primazia da tradição[8]. A questão aqui, não é um rompimento com a autoridade do Deus Pai e, sim, com as autoridades que asseguram as leis do Pentateuco. É interessante, pois, notar o modo como ele combate os Fariseus e os Escribas e, ao mesmo tempo, faz um movimento contrário, de afastamento, em relação às questões sobre a autoridade terrena. Ou seja, daí a César o que é de César e o que é de Deus, retire das mãos dos homens[9]. A doutrina disseminada pelo cristianismo, ao que parece, pretendia atuar segundo um movimento de desprendimento em relação às autoridades terrenas. Nisto, é nítido o processo de uma mudança de postura: não há, repito, um questionamento às leis divinas, mas o seu registro teria, necessariamente, de ser feito não exteriormente e, sim, interiormente, encravado em corações e não em escrituras. A justificativa de Cristo nesta contenda pode ser encontrada nas seguintes passagens:
Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, porque limpais o exterior do copo e do prato, mas estes, por dentro, estão cheios de rapina e intemperança[10].
Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, porque sois semelhantes aos sepulcros caiados, que, por fora, se mostram belos, mas interiormente estão cheios de ossos de mortos e de toda imundícia[11].
Assim também vós exteriormente pareceis justos aos homens, mas, por dentro, estais cheios de hipocrisia e de iniqüidade[12].
Ora, o que constatamos com isto, não é senão uma resposta a seguinte questão: visto que a imperfeição do homem o leva a corrupção e atitudes equivocadas, como guardar as leis de Deus? A resposta apresentada por esta nova doutrina entre os judeus consiste em uma tentativa de tirar o peso da tradição, em retirar o poder daqueles que detinham a autoridade[13]. A autoridade neste sentido não diz respeito a questionar aqueles que asseguravam o domínio terrestre. O desprendimento proposto pela doutrina cristã representava justamente uma tentativa de separar os dois mundos. De tal modo, particulariza-se a experiência com Deus, na medida em que, ao dirigir o olhar para dentro, o encontro se realiza. Esta é a resposta que Cristo formula quando a questão sobre o reino de Deus lhe é feita pelos fariseus: não vem o reino de Deus com visível aparência. Nem dirão: Ei-lo aqui! Ou: lá está! Porque o reino de Deus está dentro de vós[14]. De tal modo, se produz um argumento que retira Deus do monopólio da nação de Israel. A mensagem cristã consolida um processo de alargamento (universalização) da crença: ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do filho, e do Espírito Santo[15].
O interessante a se notar, em primeiro lugar, é que esta mensagem localiza, dando um novo sentido, Deus no interior (Deus está dentro de vós). Está compreensão, ao que parece, é antecedida pela busca, pela crença: pedi, e dar-se-vos-á; buscai e achareis; batei, e abrir-se-vos-á. Pois todo o que pede recebe; o que busca encontra; e, a quem bate, abrir-se-lhe-á[16]. Ao ato de buscar (da crença), segue-se à compreensão do lugar de Deus. Operam-se, assim, dois movimentos: a crença, em primeiro lugar, e a compreensão, em segundo, do lugar – o encontro – que ocupa Deus: como diria o filosofo cristão, é preciso crer para compreender. Se por um lado, fora garantido no Velho Testamento o princípio de unidade, dado o caráter monoteísta das escrituras, o Evangelho lança mão de um processo de desvinculação ao retirar o caráter de precedência do povo judeu sob as leis divinas. Não será, a partir daí, a letra da lei que legitimará o vínculo com a divindade única e, sim, aquilo que se encontra em espírito, como afirmou Paulo[17].
Por meio disto, Paulo pôde dirigir-se à sua maior especialidade enquanto cristão: atender ao chamado de Cristo para espalhar a sua mensagem em todo o mundo. Ou seja, Paulo concentrou-se na divulgação do evangelho entre os gentios[18] e sofisticou os argumentos cristãos ao defender a concepção de conversão que incluiria os não-judeus. Para tanto, Paulo trabalha com concepções que desautorizam os judeus perante os outros povos, ao articular uma concepção igualitária em suas considerações em relação ao pecado. Concomitante a isto, ou melhor, ao lado disto, é de crucial importância à oposição de Paulo entre espírito e carne.
Segundo o Evangelho, Paulo tinha uma missão. A conversão de Saulo (Paulo), que antes perseguia os cristãos, representava para O Caminho consolidar o objetivo de atingir, com a Palavra cristã, os não-judeus. Ora, assim, poderia se fazer cumprir a máxima presente no livro de João: (…) para que todo que Nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna[19]. Para tanto, a mensagem dada a Ananias descrevia em que consistiria a missão de Paulo: vai, porque este é para mim um instrumento escolhido para levar o meu nome perante os gentios e reis, bem como perante os filhos de Israel[20]. A partir disto, de perseguidor, o agora chamado Paulo passa a divulgar a doutrina cristã e defini-la em seus conceitos primordiais.
Nos primeiros momentos do cristianismo, sob a liderança do Apostolo Pedro, estabelece-se o debate sobre a conversão dos gentios. A defesa de Pedro, balizada por aquilo que definimos como o desprendimento cristão consiste na argumentação de que aos gentios fora também concedido por Deus o arrependimento para a vida. Ou seja, o ato da crença, da conversão, teria de sobressair-se à inscrição que estabelecera, até então, o ponto de diferenciação entre judeus e não judeus: a circuncisão. Agora, portanto, a marca – na carne – que indicava aquele que pertencia ao povo de Deus, perderia o sentido na inversão estabelecida pelo cristianismo.
O ponto que envolveu a controvérsia sobre a ausência do ritual da circuncisão entre os gentios[21] fora solucionada com a seguinte observação feita por Pedro, que argumentava que a salvação não dependeria da efetivação, entre os novos convertidos, dos costumes da tradição judaica:
Ora, Deus, que conhece os corações lhes deu testemunho, concedendo o Espírito Santo a eles, como também a nós nos concedera.
E não estabeleceu distinção alguma entre nós e eles, purificando-lhes pel fé o coração.
Agora, pois, por que tentais a deus, pondo sobre a cerviz dos discípulos um jugo que nem nossos pais puderam suportar, nem nós?
Mas cremos que fomos salvos pela graça do Senhor Jesus, como também aqueles o foram [22].
Sob estas observações, Paulo, aquele que falava aos gentios, conduziu os seus argumentos sobre a questão da conversão. A observação paulina quanto a este tema consiste na seguinte premissa: a lei de Deus não se observa nas leis dos homens. Para a obtenção da salvação, dirá Paulo, de que serve a obediência à letra, aos costumes, se houver inobediência na crença e na fé? O passo dado por Paulo é crucial no sentido em que situa o judeu no mesmo patamar dos outros. Opera, portanto, por meio de um processo de igualização que situa a todos na posição de pecadores. A única solução, em resposta aos guardiões dos costumes, é a seguinte: Judeu é aquele que o é interiormente, e circuncisão, a que é do coração, no espírito, não segundo a letra, e cujo louvor não procede dos homens, mas de Deus [23].
De tal modo, Paulo confirma os preceitos da Doutrina Cristã. O interessante a se notar é que, assim, retira-se a precedência de um povo, como o único de Deus ao transferir esta relação à um ato, uma busca que consiste em uma experiência particular. Para todo aquele que crê (o primeiro passo), encontrará e vivenciará o convívio com o Deus que está em seu interior. A marca de filho de Deus não será mais encontrada na carne e, sim, no espírito. Não basta, portanto, o pertencimento a uma terra ou a um povo; a salvação se realiza por meio de uma ação pessoal. Arriscarei, se me permitirem, a um ato que é individual. Isto é apenas possível a partir da diferenciação, cara à doutrina cristã, entre espírito e carne (corporal), entre espiritual e temporal, nos escritos de Paulo[24]. O que nos parece ecoar as distinções de Agostinho entre o espírito e matéria e entre o homem interior e o homem exterior.
Crença e conhecimento: o legado de Paulo na filosofia de Santo Agostinho.
Agostinho está sempre nos chamando para dentro. O que precisamos está intus, diz ele muitas e muitas vezes[25]. Esta afirmação de Charles Taylor faz parte da sua argumentação sobre Agostinho, que o localiza em uma posição fundamental no pensamento ocidental ao introduzir a questão da interioridade nos moldes que encontramos em sua obra. Diz o autor:
A virada de agostinho para o self foi uma virada para a reflexão radical, e foi isso que tornou a linguagem da interioridade irresistível. A luz interior é aquela que brilha em nossa presença para nós; é aquela inseparável do fato de sermos criaturas com um ponto de vista de primeira pessoa. O que diferencia da luz exterior é exatamente o que torna a imagem da interioridade tão fascinante: ela ilumina aquele espaço onde estou presente para mim[26].
As afirmações de Charles Taylor são fortes ao apresentar o legado agostiniano para o mundo ocidental, assim como o fez o velho Gilson ao denominar Agostinho como o mestre do ocidente. O que será feito aqui é um experimento de tentar pensar o filósofo cristão à luz da oposição estabelecida por Paulo – e pelo cristianismo – entre o mundo espiritual e o mundo terreno. O que se pretende assegurar, portanto, é que a virada agostiniana de que fala Taylor tornou-se possível a partir da concepção de conversão que o cristianismo formulou nos seus primeiros dias. Taylor afirma: Agostinho dá o passo para a interioridade, como eu disse, porque é um passo para Deus. A verdade está dentro e Deus é a verdade[27]. Ora, o que estamos dispostos a afirmar é que este passo foi dado pela doutrina d’O Caminho ao assegurar: Deus está dentro de vós.
A influência de Paulo para Agostinho fora de grande importância[28], assim como Platão. Gilson afirma que o encontro com o neoplatonismo permitiu a Agostinho descobrir uma metafísica do espírito altamente desenvolvida[29]. Deste modo, portanto, poderia o filósofo estabelecer vários pontos de contato entre o platonismo e o cristianismo[30]. Ou seja, a oposição cristã entre espírito e carne passou a ser compreendida por Agostinho ao estabelecer uma analogia com a dicotomia platônica entre corporal e não corporal[31]:
E ele também apropriou-se das Idéias. Estas agora são os pensamentos de Deus e, por isso, podem continuar eternas mesmo nesse novo contexto teísta. Agostinho ficou profundamente impressionado pela historia da criação do mundo no Timeu, apesar de todas as suas importantes diferenças em relação à doutrina cristã ortodoxa. Ele enfatiza as semelhanças, e foi um dos fundadores da linha de pensamento cristão que vê Platão como o ‘Moisés da Ática’. O Deus cristão ainda pode fazer coisas com base no modelo das Idéias, porque são seus próprios pensamentos, eternas como ele[32].
Ao considerar as distinções, espírito/carne e corporal/não corporal, Agostinho, por meio dos escritos neoplatônicos, procura formular a sua teoria cristã da Verdade[33]. O ponto que envolve, portanto, a concepção do modelo platônico – que pode ser lida em Plotino como o Uno – era a confirmação da doutrina cristã: há uma realidade supra-sensível, um mundo espiritual e a Verdade, que é Deus, encontra-se acima deste universo não corporal[34]. Se existe uma verdade imutável e esta é Deus, como encontrá-la? Neste caso, é de crucial importância para Agostinho elaborar uma teoria do conhecimento. Para tanto, o filosofo cristão inicia por meio de uma distinção, ou melhor, de uma hierarquização das formas de conhecimento, sensível e intelectivo, entre sentidos externos e o sentido interior. Caberia, segundo esta hierarquização, aos sentidos externos apreender as coisas que nos aparecem e por nós são compreendidas por meio dos nossos sentidos (visão, audição, olfato, paladar, tato). Entretanto, diz Agostinho, há uma forma de conhecimento que antecede a própria apreensão dos sentidos externos, ou seja, o conhecimento do modo como operam esses sentidos externos; nós sentimos, e sabemos que sentimos[35]. Sobre a hierarquia na teoria do conhecimento de Agostinho, Gilson afirma[36]:
No intuito de estabelecer uma gradação hierárquica na ordem do saber, Agostinho começa pelo conhecimento mais evidente: o sensível. Como se sabe, cada sentido tem seus objetos exclusivamente próprios: a vista, por exemplo, só apreende as cores, e o ouvido, os sons. Sabe-se, por outro lado, que certos objetos não se limitam a um único sentido; a figura ou forma dos corpos é perceptível tanto à vista como ao tato. Ademais, sabemos não só o que compete a cada sentido em particular, como também o que pode ser percebido por vários sentidos em comum. Ora, tal conhecimento não pode provir dos próprios sentidos externos; pressupõe a existência de uma força superior capaz de julgar os sentidos, a saber, de um sentido interior[37].
Esta capacidade, portanto, de julgamento, reside interiormente. Ora, quando afirmamos que há um conhecimento intelectivo anterior e interior, afirmamos que os nossos sentidos dependem do exame, da apreciação da razão. A questão que Agostinho coloca, a partir disto, é a de saber se há algo que antecede à razão. É justamente neste ponto que se encontra a questão da Verdade e, para Agostinho, o lugar de Deus: Acima da razão está a Verdade, que julga e modera a razão[38]. Este é o lugar, portanto, das Verdades eternas e imutáveis (Platão) – ou o Uno (Plotino) – que, em Agostinho, encontram-se, têm a sua morada, em Deus[39]. Nisto, reside o argumento de que há algo que é anterior a própria razão. Como seres racionais compartilhamos os nossos conhecimentos intelectivos (transsubjetividade), como por exemplo, as verdades da matemática. Entretanto, o que estabelece estas verdades está acima da própria razão.
Para os nossos propósitos é de crucial importância tentar entender, neste momento, o movimento que permite o conhecimento da existência desta verdade (de Deus). Ou seja, isto nos permite situar os pontos capitais em que a doutrina cristã (O Caminho) e a interpretação paulina ecoam fortemente na filosofia do mestre do ocidente. Partiremos, neste caso, segundo a afirmação de que, o ato da conversão, da experiência pessoal da conversão, é justamente o que antecede a busca da compreensão de Deus. O exercício agostiniano, do exterior para o interior e do interior para além do espírito[40] é, sobremaneira, muito próximo do exercício de conversão presente nas escrituras do Evangelho. Para tanto, convém mencionar a doutrina da iluminação em Santo Agostinho. Em De Magistro, Agostinho afirma:
No que diz respeito a todas as coisas que compreendemos, não consultamos a voz de quem fala, a qual soa por fora, mas a verdade que dentro de nós preside à própria mente, incitados talvez pelas palavras a consultá-la. Quem é consultado, ensina verdadeiramente, e este é Cristo, que habita, como foi dito, no homem interior (…)[41].
Esta frase reverbera, ou melhor, é influenciada fortemente pelas palavras de Paulo. Na epistola aos Efésios, o apóstolo assegura que:
(…) para que, segundo a riqueza da sua glória, vos conceda que sejais fortalecidos com poder, mediante o seu Espírito no homem interior; e, assim, habite Cristo no vosso coração, pela fé, estando vós arraigados e alicerçados em amor, a fim de poderdes compreender, com todos os santos, qual é a largura, e o comprimento, e a altura, e a profundidade e conhecer o amor de cristo, que excede toda plenitude de Deus [42].
Por meio disto, quem sabe, poderemos, muito levemente[43], afastar Agostinho do platonismo e recolocá-lo próximo de Paulo. O movimento agostiniano no processo de interiorização o aproxima consideravelmente da doutrina levada a cabo pelo apóstolo cristão. O conhecimento agostiniano e a busca cristã dependem de uma tomada de decisão particular: de um ato consciente de interiorização[44]. É este movimento, e somente este, que é capaz de alcançar um encontro com Deus: mas onde Vos encontrei para Vos poder conhecer? Vós não habitáveis na minha memória, quando ainda Vos não conhecia. Onde Vos encontrei, para Vos conhecer, senão em Vós mesmo, que estais acima de mim?[45].
O ponto de partida para este encontro, portanto, é aquela tomada de decisão que mencionamos. Ora, isto consiste em uma aceitação, que não pode residir em tradições e costumes, idéia que o cristianismo combateu. Ou seja, é justamente por meio da idéia de uma experiência de fé pessoal que a concepção de conversão e interiorização se encontram. É a partir da conjugação cristã que envolve uma vivência desprendida que torna o exercício agostiniano possível. Por conseguinte, se estamos a falar de uma decisão, de uma disposição para crer, entraremos, agora, na teoria agostiniana que pode confirmar tais elucubrações: a vontade livre. Em suas investidas em divulgar A Palavra entre judeus e não-judeus, os apóstolos obtiveram sucessos e fracassos. Ou seja, de nada adiantaria a divulgação se não houvesse um direcionamento de cada um para a aceitação. Todo aquele que Nele crê, pressupõe um grau de poder da vontade. A vontade, portanto, consiste em um valor neutro, mas livre é apenas aquele em que a vontade é boa:
Vista em si mesma, a vontade é um valor neutro, pois poderemos utilizá-la tanto para o bem como para o mal. A vontade que opta pelo mal, torna-se má; a que escolhe o bem, torna-se boa. Por isso, não se pode chamá-la de boa sem primeiro determiná-la mais de perto na hierarquia dos valores ela medeia entre o sumo bem e os bens inferiores (…)[46] .
O que temos, portanto, são duas formulações que, como afirmamos no inicio, representam uma importante tradição. O desprendimento cristão e a interiorização agostiniana formam um elo, um nó, difícil de ser desatado. Alguns elementos como a distinção espírito/matéria e a interioridade de Deus estão presentes tanto no sistema Paulino quanto na filosofia de Agostinho. Podemos reiterar esta relação primordial com duas questões presentes no pensamento de Agostinho: as distinções que envolvem a) a cidade de Deus e a cidade terrena e, b) o homem exterior e o homem interior.
a) na filosofia de Agostinho, o Estado de Deus não coincide, em seu fim, com o Estado Terreno. Esta distinção é de crucial importância para a virada do cristianismo:
Há duas maneiras de nos utilizarmos das coisas temporais: ou as relacionamos em sua totalidade a um bem temporal e terreno, vale dizer: a uma paz terrena, ou as referimos a uma ordem transcendental e ultraterrena, isto é: à paz eterna e divina. Aquele é o fim do Estado terreno, este, o do Estado de Deus[47].
b) a distinção entre o homem exterior e interior encontra respaldo no Evangelho por meio da designação de o homem novo, pois, é esse o ensinamento bíblico: Em verdade, em verdade te digo que, se alguém não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus (…). O que é nascido da carne é carne; e o que é nascido do Espírito é espírito[48]. Em Agostinho, esta distinção já foi verificada. O homem novo, portanto, nasce a partir de sua experiência interior com Deus. Deste modo, ao representar uma experiência interna, diz respeito ao desenvolvimento espiritual do homem individual[49]. A sede, o lugar que reside o homem espiritual é, por conseguinte, no Estado de Deus. Este nascer de novo é resultado do ato de converter-se através da crença, uma obra da fé que vinculamos a uma tomada de decisão. E é neste ponto, que consideramos que a relação crucial da doutrina cristã para a formulação da filosofia de Agostinho, é a noção de um desprendimento do cristão em relação ao mundo.
Conclusão
Dissemos no inicio que, talvez, este trabalho não conseguisse produzir grandes feitos no quesito originalidade. Se um dos pilares da filosofia cristã é o pensamento de Santo Agostinho, e as passagens bíblicas estão por toda a sua obra, nada do que foi mencionado aqui pode se constituir como novo. Entretanto, a tentativa aqui, foi a de tentar compreender o chamado agostiniano: constantemente somos chamados a nos voltarmos para o nosso interior. Isto, quem sabe, torna-se possível compreender se regressarmos à tradição que surge no cristianismo. A façanha de Agostinho, em sua filosofia, reside, entre muitos aspectos, ao modo como opera com diferentes fontes, sobretudo o modo como conjuga cristianismo e platonismo. Nesta junção, nasce uma filosofia muito cara ao ocidente. Em outro momento seria interessante traçar o modo como essa história caminha, via Lutero. Mas, por enquanto, ficaremos com a afirmação de que em Paulo e, depois, Agostinho, reside importantes elementos para a constituição do mundo moderno como conhecemos. É possível, inclusive, asseverar que a primeira faísca do que denominamos como individualismo moderno aparece ao mundo neste trajeto que mencionamos nas paginas anteriores. Entretanto, ainda faltou muito para que este trabalho realmente esgota-se o tema. Alguns temas e passagens, sobretudo os que se encontram no livro bíblico, permanecem, para este que vos escreve obscuros e de difícil alcance. As falhas e erros em relação à filosofia agostiniana são todos frutos das minhas limitações.
Apesar das inconstâncias, o objetivo primordial deste trabalho era o de fazer um determinado exercício: tentar pensar estas questões a luz de uma afirmativa presente, em todo momento, como pano de fundo. Certa vez, Carl Schmitt afirmou que os conceitos da teoria do Estado moderno são conceitos teológicos secularizados. Como que inspirados neste excelente exemplo de continuidade – que muitas vezes, na teoria, se mostram mais interessantes do que as rupturas – partimos, portanto, da seguinte afirmativa: todos os ocidentais, em alguma medida, são cristãos.
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Jaspers, K. Os Grandes Filósofos. In: Dario Antiseri. Giovanni Reale. História da
Filosofia: Antigüidade e Idade Média. 5º Edição. (Coleção Filosofia). São Paulo: Paulus, 1991.
Taylor, Charles. As fontes do Self: A construção da identidade moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1997.
[1] O Caminho: nome dado ao evangelho de Cristo nos seus primeiros momentos de existência.
[2] Aqui, parto basicamente do estudo feito por Charles Taylor no livro “As fontes do self”, no capitulo “’In interiore homine’” (Taylor; 2000).
[3] Êxodo XXIV.
[4] Levítico IV – 27
[5] “A terra estava corrompida à vista de Deus e cheia de violência. Viu Deus a terra, e eis que estava corrompida; porque todo ser vivente havia corrompido o seu caminho na terra. Então, disse Deus a Noé: resolvi dar cabo de toda a carne, porque a terra está cheia da violência dos homens; eis que farei perecer juntamente com a terra” (Gênesis VI – 11, 12, 13).
[6] Gênesis XIX.
[7] “(…) o que sai da boca vem do coração, e é isso que contamina o homem. Porque do coração procedem os maus desígnios, homicídios, adultérios, prostituição, furtos, falsos testemunhos, blasfêmias. São estas coisas que contaminam o homem; mas o comer sem lavar as mãos não os contamina (Mateus, XV – 18, 19, 20).
[8] Como na afirmação de Justino de Roma: nosso reino não é deste mundo
[9] Mateus XXIII – 25.
[10] Ibid. 27.
[11] Ibid 28.
[12] Aqui, fica claro o papel da crença (todo que Nele crê), da busca, no cristianismo, que prevalece, portanto, a autoridade das leis (da letra). Em Atos, Paulo afirma o seguinte: “Tomai, pois, irmãos, conhecimento de que se vos anuncia remissão de pecados por intermédio deste (Cristo); e, por meio dele, todo o que crê é justificado de todas as coisas das quais vós não pudestes ser justificados pela lei de Moises”. Atos XIII – 38, 39.
[13] Lucas: XVII – 20, 21.
[14] Mateus: XXVIII – 19.
[15] Mateus: VII – 7, 8.
[16] Em carta aos romanos, Paulo afirma “(…) judeu é aquele que o é interiormente, e circuncisão, a que é do coração, no espírito, não segundo a letra, e cujo louvor não procede dos homens, mas de Deus”. Romanos II – 29.
[17] Designaremos “gentios” os povos e nações distintas do povo israelita.
[18] João: III – 16.
[19] Atos IX – 15.
[20] Faço referência aos diálogos envolvendo os apóstolos e fariseus convertidos, em Atos XV.
[21] Atos XV – 8, 9, 10, 11.
[22] Romanos II – 29.
[23] Deste modo, podemos agora acrescentar aos argumentos sobre a distinção encontrada em Paulo entre espitual e corporal: “Porquanto o que fora impossível à lei, no que estava enferma pela carne, isso fez Deus enviando o seu próprio filho em semelhança de carne pecaminosa e no tocante ao pecado, a fim de que o preceito da lei se cumprisse nós, que não andamos segundo a carne, mas segundo o Espírito. Porque os que se inclinam para a carne cogitam das coisas da carne; mas o que se inclinam para o Espírito, das coisas do Espírito. Porque o pendor da carne é a inimizade contra Deus, pois não está sujeito à lei de Deus, nem mesmo pode estar. Porquanto, os que estão na carne não podem agradar a Deus. Vós, porem, não estais na carne, mas no Espírito, se, de fato, o Espírito de Deus Habita em vós. E, se algum não tem o Espírito de Cristo, esse tal não é dele. Se, porem, Cristo está em vós, o corpo, na verdade, está morto por causa do pecado, mas o Espírito é vida, por causa da justiça”. Romanos III – 10).
[24] Taylor; 2000, 172.
[25] Ibid. 174.
[26] Ibid. 175.
[27] Sobre isto, Agostinho diz o seguinte: “Lancei-me avidamente sobre o venerável estilo (da sagrada escritura), ditada pelo vosso espírito, preferindo, entre outros autores, o Apostolo São Paulo. Desvaneceram-se-me aquelas objeções segundo haver contradição na bíblia e incongruência entre o texto dos seus discursos e os testemunhos da lei e dos profetas. Compreendi o aspecto único daqueles castos escritos, e ‘aprendi a alegrar-me com tremor’” (Agostinho; 1973, 146).
[28] Sobre esta questão Gilson diz o seguinte: “De certo, Agostinho não demorou a notar que não era ali (platonismo) que teria de procurar o cristinianismo; mas verificou, com surpresa, os numerosos pontos de contato entre as duas doutrinas e, em particular, a importância capital que ambas atribuíam à doutrina do logos. Sobretudo, porém, deparou nestes livros uma metafísica do espírito altamente desenvolvida” (Gilson; 2007, 146).
[29] Apenas para citar alguns pontos da influência do platonismo no pensamento de Agostinho, tomo emprestados os pontos formulados por Gilson: “1) Em primeiro lugar, recebeu a noção de uma luz incorporal, invisível e puramente espiritual; 2) Em segundo lugar, agostinho deve aos platônicos a doutrina da diversidade radical entre o ser absoluto – o uncio verdadeiramente digno do nome do ser – e o ser meramente participado; 3) Em terceiro lugar, agostinho deve aos platônicos a persuasão de que todas as coisas que existem são boas; 4) Donde se segue que o mal não é senão a privação de um bem, e que o mal como tal não existe; 5) Por todas estas razões, o mal não pode originar-se de Deus” (Ibid. 147).
[30] Taylor, 169.
[31] Ibid. 169.
[32] Sobre estas importantes distinções, Ambrósio também teve um papel importante para a compreensão de Agostinho: “Cheio de gozo, ouvia muitas vezes a Ambrósio dizer nos sermões ao povo, como que a recomendar, diligentemente, esta verdade: ‘a letra mata e o espírito vivifica’. Removido assim o místico véu, desvendou-me espiritualmente passagens que à letra pareciam ensinar o erro. Ele nada dizia que me desagradasse, embora tivesse afirmações que eu ainda então ignorava se eram ou não verdadeiras”. (Agostinho; 1973, 112). E é por meio das escrituras de Paulo que se confirma este aprendizado: “Não que, por nós mesmos, sejamos capazes de pensar alguma coisa, como se partisse de nós; pelo contrario, a nossa suficiência vem de Deus, o qual nos habilitou para sermos ministros de uma nova aliança, não da letra, mas do espírito; porque a letra mata, mas o espírito vivifica (2 cor III – 5,6).
[33] Em “Confissões”, Agostinho relata a sua experiência ao ler os livros dos platônicos: “Neles li, não com estas mesmas palavras, mas provado com muitos e numerosos argumentos, que ao princípio era o verbo e o verbo existia em Deus e Deus era o verbo: e este, no princípio existia em Deus. Todas as coisas foram feitas por Ele, e sem ele nada foi criado. O que foi feito, n’Ele é vida, e a vida era a luz dos homens; a luz brilha nas trevas e as trevas não a compreenderam. A alma do homem, ainda que dê testemunho da Luz, não é, porém, a Luz; mas o verbo – Deus – é a Luz verdadeira que ilumina todo homem que vem a este mundo (Agostinho; 1973, 137).
[34] Gilson; 2007, 154.
[35] Ver também: De Magistro, 1973, 351 – 353.
[36] Gilson; 2007, 154.
[37] Ibid. 155.
[38] Nesta relação Verdade/Deus, Gilson atesta a preocupação primeira de Agostinho: “Ademais, a intenção primaria de agostinho não é estabelecer o fato da existência de um Deus, e sim, responder à pergunta: o que é Deus? A verdade, como vimos, é algo que transcende a razão, pois esta lhe está sujeita. Deus deve encontrar-se no reino da verdade, ou em algo de que a verdade depende, ou em algo que explica as condições da verdade. É por isso que Agostinho não se interessa por ora, em determinar a realidade exata que se deve atribuir a Deus. Contenta-se com a descoberta de uma realidade que ultrapassa a razão, e que, por conseguinte, deve ser buscada no domínio espiritual” (Ibid. 157).
[39] Ibid. 186.
[40] Agostinho; 1973, 351.
[41] Efésios III, 16 – 19.
[42] A influencia do platonismo no tema da recordação (da memória) não nos deixa distanciar demasiadamente agostinho de Platão. Sobre a questão da memória em agostinho, ver: Agostinho; 1973, 200 -213.
[43] É isto que afirma Gilson: “Para o nosso mestre, as verdades eternas e imutáveis do mundo espiritual platônico têm sua sede em Deus, que é a verdade. Não as conhecemos por meio de uma recordação ou ‘reminiscência’ de tipo platônico, mas por uma recordação tipicamente agostiniana, isto é: mediante um ato consciente de interiorização, no qual a razão toma consciência da presença de Deus” (Gilson, 2007, 164).
[44] Agostinho; 1973, 213.
[45] Gilson; 2007, 191.
[46] Ibid. 198.
[47] João III – 3 e 6.
[48] Gilson; 2007, 200.