Patrícia Rangel é professora da PUC-GO.
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Resumo
A popular história de Héloïse e Pierre Abelard, mistificada e encantada, foi-nos contada de inúmeras formas ao longo de sete séculos, pelos versos de Alexander Pope, John Donne e François Villon, pela prosa de George Moore e Hellen Waddell, pelo palco de Howard Breton, pelo roteiro de Charlie Kaufman e até pelas bolsas da grife francesa Chloé. Ficou para trás, escondida em alguma esquina da Paris medieval, em algum canto do Paracleto, a Heloísa que não amante de Abelardo, que não heroína dos contos de fadas que o imaginário popular se encube de criar, seus questionamentos filosóficos e teológicos, sua contribuição para o pensamento ocidental. As correspondências que os companheiros de alma e corpo nos deixaram, ao contrário do mito, permitem-nos conhecer um pouco dessa mulher extraordinária e de seu drama pessoal causado pelo envolvimento amoroso com uma das mentes mais brilhantes que a Idade Média colheu e pela proibição desse relacionamento – muito mais devido a valores e princípios do casal do que por qualquer outro impedimento.
Palavras-chave:
Héloïse e Pierre Abelard
Abstract
The popular story of Heloise and Peter Abelard, mystified and delighfull, was told in countless ways over seven centuries through the verse of Alexander Pope, John Donne and Francois Villon, the prose of George Moore and Helen Waddell, the stage of Breton Howard, the screenplay by Charlie Kaufman and even by grants from the French fashion house Chloé. it was, however, left behind, hidden in some corner of medieval Paris, in some corner of the Paraclete, not the lover of Abelard, not the fairy-tale heroine of the popular imagination creates, but the philosophical and theological questions of Helen and her contribution to Western thought. The correspondence that her companions of soul and body left us, contrary to the myth, let usknow a little of this extraordinary woman and her personal drama caused by the romantic involvement with one of the brightest minds that the Middle Ages has hosted, and by the prohibition of this relationship – much more due to the values and principles of the couple than to any other impediment.
Key words
Heloise and Peter Abelard
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Introdução
Apenas Heloísa, como Isolda, une as épocas. [Henry Adams].
A popular história de Héloïse e Pierre Abelard, mistificada e encantada, foi-nos contada de inúmeras formas ao longo de sete séculos, pelos versos de Alexander Pope, John Donne e François Villon, pela prosa de George Moore e Hellen Waddell, pelo palco de Howard Breton, pelo roteiro de Charlie Kaufman e até pelas bolsas da grife francesa Chloé.
Ficou para trás, escondida em alguma esquina da Paris medieval, em algum canto do Paracleto, a Heloísa que não amante de Abelardo, que não heroína dos contos de fadas que o imaginário popular se encube de criar, seus questionamentos filosóficos e teológicos, sua contribuição para o pensamento ocidental. As correspondências que os companheiros de alma e corpo nos deixaram, ao contrário do mito, permitem-nos conhecer um pouco dessa mulher extraordinária e de seu drama pessoal causado pelo envolvimento amoroso com uma das mentes mais brilhantes que a Idade Média acolheu e pela proibição desse relacionamento – muito mais devido a valores e princípios do casal do que por qualquer outro impedimento.
Heloísa possui uma história famosa, mas é sempre vinculada a Abelardo. Mesmo sendo conhecidos seu talento e sua erudição, não lhe é dado o reconhecimento de ser humano independente daquele que fora outrora seu esposo. Mesmo tendo de se empenhar mais que seu amante para conquistar prestígio num século naturalmente contrário à qualquer movimento autônomo por parte da mulher, pouco se fala de Heloísa além do fato de ter sido amante de Pedro.
Este ensaio pretende desenvolver reflexões acerca da importância de Heloísa, enquanto esposa no século e irmã no Cristo de Abelardo. Queremos finalmente tornar visível sua trajetória e dar voz ativa a essa mulher especial. O objetivo aqui é apontar conquistas e feitos de Heloísa, mostrar o que havia de autônomo em sua trajetória, explorar pontos fortes de seu pensamento nas cartas que enviou a Abelardo, indicar suas idéias, originadas da filosofia de Abelardo mas adaptadas e aplicadas de uma forma totalmente pessoal e sugerir sua relevância no contexto histórico e, mesmo que anacrônico vale apontar a idéia, no processo de emancipação feminina. Trata-se, claramente, mais de um ensaio com uma abordagem antropológica e sociológica do que um estudo sobre pensamento medieval ou filosofia strictu senso.
O presente trabalho parte das cartas trocadas pelos amantes após Abelardo escrever Historia Calamitatum, ou História das Minhas Calamidades (utilizarei as quatro primeiras cartas, que foram publicadas pela Martins Fontes em Correspondência de Abelardo a Heloísa) e a própria Historia calamitatum, como fonte principal. Além disso, lançarei mão em quase todos os momentos das felizes interpretações do livro Heloísa e Abelardo, de Ettiene Gilson, muito adequadas ao esforço realizado nessas páginas. O autor, ao inverter a natural ordem entre os nomes dos amantes no título de seu livro, determinou que o Abelardo que lhe interessava nessa discussão é “justamente aquele que não poderia viver sem Heloísa, aquele que se dá a compreender por ela, que de discípula, se faz mestra de seu mestre”[2].
Em seu livro Eloísa e Abelardo, Étienne Gilson demonstra uma insatisfação da qual compartilho e que aqui reproduzo: até mesmo na obra mais completa escrita sobre o tema[3] não se fala em Heloísa e Abelardo é o herói da história. Como bem explica o medievalista, somente temos o testemunho de Abelardo como narrativa da história e do drama.
Não pretendo, de forma alguma, apontar Heloísa como mártir feminista ou atribuir a ela méritos que não sejam seus nem fazer qualquer afirmação anacrônica. Muito menos tenho a intenção de julgar Abelardo por sua conduta e crucificá-lo, como fez a já bastante criticada Ch. Charrier, que além de acusá-lo de machismo e outros defeitos modernos, fez-se ouvir através de Heloísa, ditando pensamentos e atitudes que a abadessa “deveria ter dito” para tentar provar uma falsidade de sua correspondência que nunca foi provada. Não tenho dúvidas que, agindo assim, a própria Heloísa me reprovaria, e o intuito do trabalho é homenageá-la, não insultá-la.
Acredito que, por mais que tentemos, jamais teremos noção da dimensão do impacto desse romance ou dessa mulher em seu momento histórico, assim como não seremos capazes de respirar ares medievais, fazer um passeio pelo Paracleto com Heloísa ou sentir uma brisa suave do século XII. Não se pode fotografar uma brisa suave, mas pode-se tentar imaginá-la e pintar um belo quadro com nossas impressões e com as ferramentas que nos foram proporcionadas. É o que faremos aqui, pintar um belo quadro de Heloísa em homenagem à sua excepcional existência.
As Calamidades de Heloísa
Still on that breast enamour’d let me lie,
Still drink delicious poison from thy eye,
Pant on thy lip, and to thy heart be presse’d;
Give all thou canst – and let me dream the rest. [Epístola de Alexander Pope].
Após anos lutando contra seus adversários, e tendo vencido todos, o cônego e clérigo Pierre Abelardo conquista seu lugar e ocupa o cargo de professor de filosofia e teologia, além de dirigir as escolas de Paris. Vêm então o reconhecimento, o sucesso, a prosperidade e a luxúria. É quando descobre a existência de Heloísa, sobrinha do também cônego Fulberto, e passa a desejar seduzir a jovem. Aqui, ele abandona sua vida de “sublime continência”[4] para colocar em prática seu plano.
Por ser sobrinha de Fulberto, análogo a Abelardo, Heloísa pertencia ao mesmo pequeno mundo que o filósofo (mundo este que muitas mulheres não conheciam), o que facilitou a aproximação dos dois e a concretização do plano de Abelardo. Gilson[5], Charrier[6] e outros estudiosos do drama de Heloísa e Abelardo, e até o próprio Pedro em Historia calamitatum, costumam caracterizar a moça como vítima e o professor como calculista sedutor nesse momento da narrativa. Contudo, a própria Heloísa se gabou mais tarde de ter conquistado um homem tão disputado, mostrando-se tudo menos pobre vítima que caiu na armadilha de seu caçador. Pelo contrário, Abelardo é quem parece ter se tornado vítima da paixão que o arrebatou após a realização de seu plano: ele abandonou as escolas, trocou os alunos pela amante e a filosofia pela poesia, compondo versos para a amada. O resultado foi a gravidez de Heloísa, enviada para a casa de uma irmã de Abelardo na Bretanha após o escândalo que a notícia gerou na sociedade. A despeito de religião e moral, nesse momento, a moça se mostrou extremamente alegre com a novidade, como se pode concluir pelo tom extasiado da carta que ela escreve ao pai da criança que espera.
Como era de se esperar, a reação de Fulberto foi a revolta, mas este nada podia fazer a Abelardo enquanto sua sobrinha estivesse em condição de “refém” da família de seu malfeitor. Nesse ínterim, Abelardo se apresenta ao cônego para se desculpar e oferecer a única recompensa passível de amenizar o sofrimento do tio: esposar Heloísa. A condição que Pedro estabelece é que esse seja feito em segredo, para não prejudicar a glória do pensador. Ele sabia que um clérigo tonsurado seria condenado por todos se viesse a se casar e que, portanto, o matrimônio seria o último recurso para ele. Além disso, assim como sua amante, pensava que um sábio jamais deve se casar pois não conseguiria servir tempo dois senhores (seus livros e sua esposa) ao mesmo. Heloísa, seguindo as conclusões e reflexões de Teofrasto e São Jerônimo acerca do casamento de um sábio, rejeita o pedido e retoma o ponto, descrevendo a Abelardo a infeliz e inútil vida que ele levaria se viesse a assumir os papéis de esposo e pai.
Os dois amantes concordam sobre certo ideal de filósofo e de clérigo, e a grandeza de Heloísa consiste em ter feito tudo, após sua queda em comum, para obter que Abelardo voltasse novamente a ser digno[7].
Ainda assim, Abelardo insiste em desposar Heloísa, que acaba cedendo como sempre: sua vida só tem sentido para agradar seu amado. Ela volta da Bretanha para subir ao altar com ele. Na calada da noite e com poucas testemunhas, os dois se casam e após a cerimônia cada um segue seu caminho, pois o objetivo era manter tudo em segredo. Contudo, como era de se esperar, Fulberto não mantém sua palavra e faz de tudo para propagar a notícia do casamento, buscando limpar sua honra. Como Heloísa teimava em negar e em desmentir o tio perante todos, passou a ter problemas com Fulberto e a sofrer castigos dele. Apiedando-se da esposa, Abelardo planeja raptá-la e enviá-la para um lugar seguro. O esconderijo que se fez possível então foi o convento de Argenteuil. Heloísa se disfarça de religiosa e passa a viver como tal, somente não veste o véu.
Sentindo-se enganado pelo esposo da sobrinha e acreditando que o filósofo pretendia se livrar dela, Fulberto põe em prática sua vingança e, com o apoio de alguns cúmplices, pune Abelardo cortando “a parte do corpo com a qual ele havia pecado”. Diz Zumthor[8] que Fulberto cortara-lhe igualmente a profissão, uma vez que todos os textos do Antigo Testamento rezam que Deus rejeita os eunucos como Seus servidores. Abelardo cai então em desgraça e vergonha. É neste momento que se dá sua conversão e ele entra para a vida religiosa. Não sem antes exigir que Heloísa, com menos de 20 anos, fizesse o mesmo e se tornasse sua irmã no Cristo.
Ele fica em Saint-Denys e ela em Argenteuil. Fugindo das cotidianas perseguições, ele segue para Champanhe, onde funda o monastério do Paracleto em 1120, que é obrigado depois a abandonar. Retorna então a Saint-Denys e depois é chamado para ser abade do convento bretanhense de Saint-Gildas de Rhuys, afundado em corrupção e perdição. Tenta inutilmente reformar o convento, entre 1128 e 1134, mas sofre inúmeros ataques dos monges.
Expulsa com suas companheiras de Argenteuil em 1129, Heloísa segue para o convento beneditino Paracleto, única propriedade de Abelardo, doada para as religiosas. Ele se dedica a ajudar as irmãs e a edificar o templo. O papa Inocêncio II expede uma bula confirmando a fundação da nova comunidade em 1131. Heloísa e Abelardo não se tornam a ver. Alguns anos depois, Abelardo escreve Historia calamitatum e obtém como resposta a primeira carta da correspondência que trocará com Heloísa. Seu conteúdo, vivo e entusiasmado, mostra-nos bem os posicionamentos e as idéias conflitantes dos dois, que travam uma batalha intensa para tentar convencer o outro de seu ponto de vista. Heloísa, ainda apaixonada por Abelardo, culpa Deus por todas as desgraças que lhes ocorreram e reluta em abraçar a profissão religiosa. Abelardo, por outro lado, se mostra totalmente convertido e faz de tudo para levar sua antiga amante no mesmo caminho.
Após a luta travada no papel, Heloísa se resigna e se cala. Abelardo acredita tê-la convencido. Os dois nunca mais se encontram. Heloísa continua desempenhando as funções de abadessa e Abelardo segue a tumultuosa carreira que sua genialidade não consegue evitar. Heloísa, para desenvolver a Regra do Paracleto, permanece fiel aos mestres que Abelardo a fizera respeitar e admirar: São Paulo, Santo Agostinho, São Jerônimo, Sêneca, que lhe ensinou a não se preocupar muito com as coisas exteriores, e Lucano. Ela despreza as exigências da Regra monástica pois a preocupação com questões tais quais alimentação, roupa, bebida, etc., entram na categoria de questões indiferentes, das quais não depende a sabedoria do ser (Sêneca), porque muitas obras são inúteis (Santo Agostinho), porque essa preocupação é judaísmo (São Paulo), etc.
Abelardo acaba testemunhando suas doutrinas serem condenadas no Concílio de Sens e ele mesmo ser considerado herético por Roma, na voz de Inocêncio II. Apesar disso, ele escolhera seguir totalmente Cristo. Dirigindo-se pela última vez a Heloísa, o clérigo redige a ela sua profissão de fé, sabendo que ninguém melhor saberia acolher e guardar em segurança seu testemunho.
O velho Abelardo põe-se então a caminho da Cidade Eterna mas acaba parando no mosteiro de Cluny, onde é fraternalmente acolhido pelo abade, Pedro, o Venerável, como hóspede de honra. Esgotado fisicamente, é transferido para o mosteiro de Saint-Marcel, mais favorável ao descanso. Lá, em 21 de abril de 1142, o mestre morre e é enterrado. Heloísa, que vivia num profundo silêncio havia anos, escreve ao abade Pedro para saber detalhes da morte de seu amado e para solicitar que seu corpo seja enterrado no Paracleto. Consegue também cartas que absolvem Abelardo por todos os seus pecados, além de outros privilégios. Pedido atendido, Heloísa pode descansar paz, com a certeza de que agora Abelardo era só dela e que nada poderia dele a separar.
Heloísa viveu mais 21 anos, faleceu em 16 de maio de 1164. Ambos alcançam a mesma idade: 63 anos. Conta a lenda que, quando se abriu o túmulo de Abelardo para a seu lado sepultar Heloísa, ele teria estendido os braços para a acolher. Brinca Gilson[9] que, lenda por lenda, seria mais fácil de acreditar que ela tivesse aberto os braços para enlaçar Abelardo.
Uma mulher que não pertencia ao seu tempo
É verdade que Heloísa sofreu muito, e sofreu por Abelardo, mas duas coisas ao menos são certas; que ela faria dez vezes aquilo que fez, com o risco de subir dez vezes o mesmo calvário, e que experimentaria como a pior injúria se se desejasse engrandecê-la rebaixando Abelardo[10].
Nascida em 1101 em uma família que, ao contrário da de Abelardo, não era de origem nobre, Heloísa se mostrou sempre competente e extremamente inteligente, tendo conseguido inclusive conquistar o título de “nominatissima”, ou “most renowned”, por suas habilidades em latim, grego e hebraico. Impressionado com seu talento para as letras, seu tio e tutor, o clérigo e cônego Fulberto, investiu em sua educação e buscou para ela sempre os melhores professores – o que propiciou a aproximação entre a menina e Pedro Abelardo, o melhor professor de filosofia de Paris na época.
Heloísa havia superado há muito todas as mulheres de seu tempo, “já era célebre em toda a França antes mesmo de conhecer pessoalmente Abelardo”[11] e, bem como o filósofo recordou mais tarde, quando ambos já abraçavam a vida religiosa, estava ela revestida de glória desde a juventude: era “muito bonita de rosto, sem rival pela extensão de sua cultura literária”. Tornou-se aluna de uma das mentes mais brilhantes da filosofia ocidental aos 13 anos. Apesar de sua tenra idade, rompeu com a tradição e com a moral de seu século ao encarar o relacionamento ilícito que veio a ter com seu mestre. Indo contra o dogma do casamento e da virgindade, abdicou de seguir as regras em prol de seu desejo, abrindo espaço para todas as reprovações e todos os castigos imagináveis.
Em uma época em que as pessoas permaneciam indiferentes ao estudo e nem os homens tinham coragem de perseguir a sabedoria, Heloísa superou quase todos os indivíduos de seu tempo e se dedicou à lógica, à física e à filosofia. Mais tarde, ao abraçar a vida religiosa e estudar o Evangelho e os escritos dos grandes clérigos, Heloísa acabou se tornando uma filósofa completa. Sua fama e glória na juventude não são invenções da história, e documentos da época o comprovam. Pedro, o Venerável, abade de Cluny, escreve sobre isso em carta endereçada a Heloísa após a morte e Abelardo:
Eu mal acabava de transpor os limites da adolescência, e não era nem mesmo jovem, quando tomei conhecimento da reputação, não ainda de tua vida religiosa, mas de teus nobres e louváveis estudos. Ouvia-se então falar dessa extraordinária raridade: uma mulher ainda envolvida nos laços do século e que se entregava, entretanto, completamente aos estudos das Letras e da Sabedoria sem que nada, nem os desejos do mundo, sem suas vaidades, nem seus prazeres, pudesse desviá-la do louvável designo de aprender as Artes Liberais.[12]
Ao ler sua histórica, fica clara a primazia da filosofia sobre a vida privada na concepção de mundo de Heloísa: ela é a primeira a incentivá-lo a se dedicar à vida de professor e ao estudo da filosofia, ao invés de buscar mantê-lo como marido. Após dar a luz ao seu filho, ele decide batizá-lo de Astrolabius, o que possui um significado no mínimo interessante na época: demonstra seu envolvimento com a ciência e a relevância do conhecimento em sua vida. Para Eric Gans[13], este era um nome high-tech na época.
Abelardo, sobre o momento em que Heloísa se torna a primeira abadessa do Paracleto, afirma que ela obteve sucesso total na comunidade, a despeito da pobreza e de outras dificuldades. Segundo ele, todos amavam a religiosa, tratada como uma filha pelos bispos, como uma irmã pelos abades e como uma mãe pelos laicos.
O conteúdo das cartas que escreve mais tarde, já afastada de Abelardo e vivendo como abadessa, era erudito em grande parte, o que evidencia sua capacidade e conhecimento para debater com um dos mestres da escolástica. Heloísa apresenta 42 questionamentos teológicos ao mestre em Problemata Heloissae, que demonstram sua erudição e habilidade com as palavras. Gilson, que elaborou diversas monografias sobre os grandes autores medievais, dedicou à Heloísa um de seus trabalhos, o que nos permite arriscar que ela pode ser incluída no grupo dos expoentes da escolástica. O mesmo autor, ao apresentar o trabalho que abordaria o drama de Heloísa e Abelardo do modo como os dois o compreendiam, destaca Heloísa como “a pedra de toque” da absorção das idéias da época:
(…) não imaginava que seria necessário prestar tanta atenção em Heloísa quanto em Abelardo e que, uma vez adentrado em sua história, teria tanta dificuldade em me afastar, não somente porque ela é atraente, mas porque é como a pedra de toque que permite testar as idéias a respeito da Idade Média e do Renascimento, e julgar seu valor[14].
O mesmo autor ressalta, a respeito da Heloísa madura, o valor pela coragem dessa mulher em falar de seus sentimentos franca e publicamente. Seria necessário viver no meio religioso do século XII para ter alguma noção do seu posicionamento perante a vida em sua época. Sua característica mais interessante, e talvez a única que tenha manifestado em vida, foi sua capacidade ilimitada de amar Abelardo, como se ama a um Deus. Creio que tudo isso seja capaz de demonstrar a necessidade de tratar das idéias teológicas, filosóficas e das convicções doutrinais da história dessa “sobrinha de cônego, nascida de um pai por nós desconhecido, formada por Lucano e cuja temível lucidez não lhe permite nenhuma ilusão sobre Abelardo nem sobre si mesma”[15].
A comédia da santidade
Houveste por bem relacionar algumas das razões pelas quais eu tentava te desviar de nosso casamento e deste himeneu funesto. [Heloísa a Abelardo, carta II].
Após se deparar com a imposição do casamento por parte de seu amante, Heloísa começa um árduo esforço de argumentação com base nos ideais corteses de amor romântico, mas principalmente em métodos próprios apoiados em argumentos de grandes filósofos e teólogos como São Jerônimo e Sêneca. Todos os argumentos da juvenil Heloísa convenceram prontamente Abelardo, mas ainda assim ele optou pela realização do matrimônio pois não conseguia mais viver separado de sua amante. Heloísa mais uma vez obedeceu ao seu mestre, não sem proferir suas recorrentes palavras proféticas: “Só nos resta, portanto, perde-nos um e outro e sofrer tanto quanto amamos”.
Abelardo, em Historia calamitatum[16], descreve os principais argumentos de Heloísa contra o casamento: ele não seria capaz de acalmar Fulberto; seria um passo humilhante tanto para ela quanto para ele; seria uma vergonha manter um homem criado para o bem de toda a criação escravizado por uma única mulher; os apóstolos e os santos aconselhavam que o homem não procurasse o casamento pois assim se submeteria às tribulações da carne; os filósofos afirmam que o sábio não se deve casar dados os inúmeros tédios e cuidados que exigem o matrimônio. Além de apelar para os defeitos do casamento e para a argumentação embasada na leitura dos grandes filósofos e teólogos, Heloísa utiliza um lugar-comum do mundo cortês para se opor ao casamento: o matrimônio empana a glória dos amantes[17]. Como filósofo, Abelardo pertencia ao mundo inteiro, como teólogo à Igreja, enquanto que, como esposo, Abelardo pertenceria somente a Heloísa, o que levaria todos os filósofos e toda a Igreja a lamentar essa perda. Heloísa preferia estar ligada ao homem que ama pela ternura, como amante, do que pela força do laço nupcial. Como ela mesma escreve a Abelardo após tomar conhecimento da Historia:
Nessa carta de consolo a teu amigo, bem quiseste expor tu mesmo algumas das razões que eu invocava para te afastar dessa infeliz união. Não obstante, calaste a maior parte daquelas que me faziam preferir o amor ao casamento e a liberdade à ligação. Tomo Deus por testemunha: o próprio Augusto, o senhor do mundo, tivesse ele se dignado a pedir minha mão e a me assegurar para sempre o império do universo, eu teria considerado mais doce e nobre conservar o nome de cortesã junto a ti que tomar o de imperatriz junto a ele![18].
O centro do drama é o ideal de clérigo e filósofo estabelecido por São Paulo, São Jerônimo, Sêneca, entre outros sábios. Os teólogos, canonistas e moralistas do século XII buscavam pautar sua conduta um ideal de continência, que media a grandeza de sua sabedoria. Heloísa desejava que Abelardo levasse um modo de vida digno de sua grandeza filosófica: Sêneca ensinava que o filósofo nunca deve parar de filosofar e São Paulo, que o cristão não pode cessar de orar. Eis que o maior dos moralistas e o maior dos apóstolos concordam sobre um ponto: o casamento é prejudicial ao sábio. Para filosofar, Sêneca diz, o homem deve se livrar de tudo que não é filosofia (mulheres, casamento, cargos públicos, honras, etc.) e amar somente a razão para encontrar sabedoria. Para São Paulo, da mesma forma, o cristão precisa deixar aquilo que não diz respeito às coisas do senhor, sobretudo o casamento. Este impede a perfeição de uma vida cristã reta, pois o homem casado só pode cuidar das coisas do mundo: é impossível agradar a Deus e à esposa ao mesmo tempo. Além disso, como orar sempre se o marido não se pertence? Ele pertence à mulher, que possui direitos irrecusáveis sobre seu esposo.
São Jerônimo, por sua vez, explica em Corpus juri que quem se casa e fica preso ao esposo perde seus direitos e sua liberdade de orar. Vivendo no século XXI e não compartilhando desse ideal de grandeza, nós temos grande dificuldade em entender ou aceitar as razões desse casal. Mas para Heloísa e Abelardo era bem clara a vergonha que seu casamento causaria ao filósofo e que atingiria também a Heloísa, que se tornaria cúmplice do crime que arrancou Abelardo da classe a qual pertencia e da qual se tornara indigno. Diz Abelardo que os pagãos admiravam mais a pureza da vida do que a ciência desses clérigos e filósofos que deviam seus títulos de sábio à continência.
Heloísa apelava ao sentido de grandeza que ela e seu amado igualmente possuíam e rogava a seu mestre para que mestre praticasse aquilo que ele mesmo a havia ensinado, pedindo para não se tornar cúmplice da vergonha que cairia sobre ele. São Jerônimo já havia escrito sobre as dificuldades práticas que um clérigo encontra quando se casa, além da inconveniência social desse sacramento. São Paulo tratara da servidão corporal dos cônjuges, totalmente incompatível com a perfeição cristã: para ele, não há prisão maior do que aquela de alguém que não é mais senhor do próprio corpo – num casamento, a continência de cada um depende da autorização do outro. Assim, o marido não pode se abster de relações sexuais, mesmo que para orar, sem o consentimento da mulher e vice-versa. O afastamento das volúpias, que é o ideal do clérigo e do filósofo, não seria possível no casamento. A própria Heloísa não poderia proteger Abelardo contra o mal causado pelos prazeres carnais, uma vez que ela não poderia se recusar ao seu marido, senhor de seu corpo.
Para Heloísa, havia duas morais: a do vulgo e a do herói da vida espiritual, para a qual ela se considerava no dever de reconduzir seu mestre. Este, buscando no casamento secreto a satisfação de seus desejos, fabricava um simulacro de glória. Heloísa toma a lógica do sofisma e o recria: era necessário rejeitar o casamento para salvar a substância dessa glória, sem que a possibilidade de satisfazer aos desejos de Abelardo fosse excluída. Ela se contentava em abrir mão de sua honra e se conformava em ser amante de seu mestre para que esse reconquistasse sua grandeza e reencontrasse o caminho para a glória. Por isso, não aceitava se casar com ele.
Partindo das mesmas conclusões (que a grandeza de um clérigo ou de um filósofo depende de sua continência), cada um deles foi levado a uma atitude diferente: guiado pela vaidade e preocupado com sua reputação, Abelardo queria o segredo do casamento e Heloísa, pensando na grandeza de seu amado, desejando sua glória e guiada por uma perfeita retidão, recusava o casamento. Na verdade, ia além, oferecendo a separação total. Ela queria que seu amado não só lhe parecesse grande, mas que efetivamente o fosse: sua grandeza dependia da de Abelardo, que só diminuiria com o casamento.
Abelardo possuía suas razões para desejar um casamento secreto e Heloísa, para recusar qualquer casamento. Possuidora de uma lógica sentimental que, segundo Gilson[19], em muito prevalecia sobre a de Abelardo, interessada na grandeza de seu amado e seguidora dos princípios citados anteriormente, Heloísa sabia o quão desonroso seria o matrimônio. Abelardo seria impedido de desempenhar, da forma ideal, as tão admiradas profissões de cônego e filósofo. Heloísa, por sua vez, seria sempre apontada injustamente por planejar e conseguir prender Pedro às correntes do casamento. O drama pessoal dela pode ser resumido no medo de ser considerada “cúmplice da decadência de Abelardo numa visão de satisfação pessoal e de interesse”[20].
É nesse ponto que percebemos o gosto pela desonra que Heloísa possuía: o que há de melhor que a desgraça para testemunhar de forma suprema o tamanho de seu amor e seu sacrifício? Para ela, antes ser amante, concubina ou prostituta do homem que se ama, pois quanto mais humilhação ela pudesse realizar por Abelardo, mais graça encontraria junto a ele.
Casar com Abelardo foi o único crime que Heloísa cometeu na história, e o único ato do qual jamais se perdoou. Ela nunca havia se arrependido de fato de ter sido amante do filósofo, pois como lembrou mias à frente, como se arrepender de algo que não deixou de desejar? Para ela, contrair matrimônio, mesmo que a contragosto e resistindo, foi um pecado não contra Deus, mas contra Abelardo e sua glória. Heloísa tornara-se, assim, responsável pela vingança de seu tio e pela desgraça de seu amado. Este foi o problema moral com o qual ela se deparou e analisou de todas as formas possíveis: considerava-se culpada mas também inocente.
Para tranqüilizar-se em relação a esse dilema, Heloísa lançou mão de duas noções fundamentais da moral e da teologia do casal: a doutrina do amor puro e a moral da intenção, que serão tratadas a seguir. Estas, que outrora serviram de referência para a conduta e o julgamento de suas faltas, foram sintetizadas e aplicadas por Heloísa de uma forma toda especial ao seu grande problema moral.
Contudo, segundo Gilson[21], como a paixão desse casal pela grandeza espiritual não era totalmente pura (pois sua mola não era grandeza de Deus, mas a deles mesmos), ele se envolveu cada vez mais na falsidade ao apresentar argumentos contra e a favor do casamento para alcançar a tão falada glória: Abelardo escondia o casamento para que os outros ainda acreditassem que ele era um São Jerônimo ou um Sêneca, enquanto Heloísa defendia o concubinato para permitir que seu amado voltasse a sê-lo. Assim, “o tráfico da cena está na perfeita sinceridade com a qual ambos representam a comédia da santidade”[22].
De amicitia e a moral do amor puro
Omnis ejus fructus in ipso amore est. [Cícero].
No capítulo que denominou “A moral do Amor Puro”, Gilson[23] destaca que os sentimentos de Abelardo e Heloísa tiveram evoluções distintas: a dele partiu de um cálculo simples e frio que obedecia às ordens da luxúria, transformou-se em paixão desenfreada acompanhada de degradação moral e acabou por tomar a forma de ternura pura pela “esposa de Cristo”. A de Heloísa começou com uma rendição sem luta, apesar de acompanhada por escrúpulos, e terminou da mesma forma: uma entrega total da serva ou seu único senhor. Ela nunca o disse explicitamente, mas o verdadeiro Deus de Heloísa era Abelardo. Era ele a quem ela amava desinteressadamente e completamente.
Gilson[24], nosso guia no presente trabalho, argumenta que o verdadeiro fundamento da vida de Heloísa era nihil mihi reservavi, “eu não reservei nada para mim”. Ainda segundo o estudioso, esse amor total, fonte da grandeza de Heloísa que explicava seu absoluto desinteresse no ato de amar, estava fundado em uma doutrina de Cícero sobre “a natureza essencialmente desinteressada da amizade”: De amicitia. Esta, ensinada por Abelardo, serviu de moral do casal e pregava que omnis ejus fructus in ipso amore est, “todo fruto do amor verdadeiro se encontra no próprio amor”.
A recusa de Heloísa em relação ao casamento se apresenta como a decantação da doutrina de Cícero em sua própria vida. Diz Gilson[25] que, apesar de instruída por Abelardo, Heloísa soube colocar em prática o De amicitia melhor que ele. Mais tarde, quando já era abadessa do Paracleto, Heloísa chega à conclusão que sempre amou Abelardo sem esperar nada dele: mesmo após perdê-lo enquanto esposo ou amante, mesmo sendo incapaz de nutrir alguma volúpia ou esperança dada a transformação física e espiritual dele, ela não o ama menos do que antes. Por outro lado, o amor dele por ela nunca foi puro, conclui Heloísa, pois ao perder a capacidade de gozar dos prazeres materiais proporcionados por sua amante, Abelardo deixou de amá-la:
Vemos, portanto, que ele jamais a amou. O que o unia a Heloísa era a concupiscência, não a amicitia da qual Cícero a descreveu, isto é, essa ternura desinteressada que não espera de si nada além de si mesmo (…). Desde que aquilo que Abelardo desejava dela deixou de ser possível, todos os sentimentos que ele pretendia experimentar desapareceram igualmente[26].
Heloísa, segundo Gilson[27], enquanto a grande amorosa, encarna a essência pura a ponto de não ser nada além disso. Complementando, ela é a grande amorosa ao estilo francês, que possui uma necessidade inusitada de justificação sofística ou racional. Assim, ela acusa o esposo de nunca tê-la amado e de tê-la descartado após se tornarem eternamente proibidos os antigos prazeres e volúpias. Isso só foi possível pois o que ele sentia por ela era somente desejo e não amicitia. Abelardo nunca amou Heloísa.
A moral da intenção
Non enim rei effectus, sed efficientis affectus in crimine est;
nec quae fiunt, sed quo animo fiunt, aequitas pensat.
O princípio da moral da intenção, desenvolvido por Abelardo no Scito te ipsum, foi apropriada por Heloísa, que a sintetizou e aplicou em seu grande problema moral: o conflito de sentimentos de culpa e inocência em relação à desgraça de Abelardo. Em Scito te ipsum, Abelardo distingue vício de pecado: o primeiro significa “inclinação para consentir o que não convém, uma propensão ao pecado”, ao passo que o segundo consiste em “não nos abster do que se deve fazer”, ou seja, é consentir o mal. E consentir o mal é desprezar o Senhor. A essência do pecado seria então a intenção de pecar, e a essência da bondade, a intenção de respeitar a vontade de Deus. Assim, “o efeito de uma boa intenção pode ser ruim, e o fato de a intenção de que procede ser boa em nada muda sua natureza”[28]. Por isso, o ato não tem qualquer valor moral.
Em suma, a idéia original de Abelardo sobre a moral da intenção é o oposto de nosso ditado que diz “De boas intenções o inferno está cheio”. Segundo o filósofo e teólogo, uma ação é boa ou má dependendo da intenção que anima o ato. Ou seja, pecar é diferente de realizar o pecado, ter boa intenção é diferente de fazer uma boa ação, e assim por diante. Fazer algo de bom sem ter uma boa intenção não possui a qualidade de bom, assim como o contrário. Até os perseguidores de Cristo não eram maus se, quando o crucificaram, julgaram que seu dever era fazê-lo. Esse pensamento tem sua origem numa interpretação dialética que Abelardo fez de alguns textos de Santo Agostinho; aos olhos de Deus, somente a intenção importa, não o próprio ato ou suas conseqüências, pois nenhuma ação humana pode atingi-Lo ou prejudicá-Lo.
Heloísa adapta esse princípio ao seu caso e diz algo semelhante: “se meu amor por Abelardo é puro e livre de qualquer interesse, se procuro nesse amor minha própria recompensa, e se o valor moral de todo ato é determinado por sua intenção, mesmo minhas piores ações, quando determinadas por esse sentimento puro, devem ser consideradas inocentes”. A própria Heloísa explica sua fórmula em carta a Abelardo:
Pequei gravemente, tu o sabes; entretanto, sou inocente. O crime está na intenção mais do que no ato. A justiça pesa o sentimento, não o gesto. Mas quais foram minhas intenções com relação a ti, tu somente, que as experimentas, podes julgar. Submeto a teu exame, abandono tudo ao teu testemunho. Dize-me somente, se o podes, por que, depois de nossa conversão monástica, que tu sozinho decidiste, me deixaste com tanta negligência cair no esquecimento; por que me recusaste a alegria de tuas entrevistas, o consolo de tuas cartas? Dize, se tu podes, ou antes direi eu, o que creio saber, aquilo que todos suspeitam! Foi a concupiscência, mais que uma afeição verdadeira, que te ligou a mim, o gosto do prazer mais do que o amor. A partir do dia em que essas volúpias te foram arrebatadas, todas as ternuras que elas te inspiraram se esvaeceram[29].
Assim, um ato pode ser ao mesmo tempo legítimo e culpável e, como arrisca GILSON, era exatamente disso que Heloísa necessitava para acalmar seu coração. Foi essa doutrina que ela usou como armadura para se justificar e para se convencer da perfeita pureza de seu amor: o que importa não é o que se faz, mas sim a “disposição interior com a qual se faz[30]”.
Heloísa conhecia muito bem a idéias que se fazia da mulher, sempre considerada causadora da ruína dos grandes homens (Eva e Adão, Dalila e Sansão, as mulheres de Salomão, a mulher de Jô, etc.). O demônio, sabendo disso, sempre prepara suas armadilhas contra os homens utilizando alguma mulher. Diz Heloísa:
Infeliz, que nasci mulher para ser a causa de um tal crime! As mulheres não poderão então jamais conduzir os grandes homens senão à ruína! Eis por que sem dúvida o livro dos Provérbios põe em guarda contra elas: ‘Agora, portanto, meu filho, escuta e dá atenção às minhas palavras. Que teu coração não se desvie sobre os caminhos da mulher. Não te desvies em seus atalhos, pois assim ela feriu e abateu muitos: os mais corajosos foram mortos por ela. Sua casa é a entrada dos infernos, e conduz ao coração da morte[31].
No entanto, a apropriação que Heloísa faz da moral da intenção a liberta desse fardo: o que transforma essas mulheres em culpadas é seu desejo de arruinar seus homens, ou seu consentimento. É isso que falta a Heloísa em sua contribuição à ruína de Abelardo: ela pode até ter se casado com ele, o que o conduziu à desgraça, mas não consentiu. Como é a intenção e não a conseqüência do ato que importa, Heloísa é inocente. Assim, ela inaugura também uma linhagem de inúmeras heroínas românticas condenadas a fazer o mal por amor, mas que devem ser desculpadas pelo mal que cometeram devido à pureza de seu sentimento.
A moral da intenção, no entanto, se volta contra Heloísa em relação ao seu amor por Deus e às suas boas ações. Como ela bem nos ensina, amar só é verdadeiro quando se ama sem interesse e uma ação só é boa se a intenção que motiva o ato tiver sido igualmente boa. Praticar o bem deve ser por amor a Deus. Realizar boas atitudes por amor a Abelardo, e não a Deus, não contribui para sua salvação, e Heloísa sabe disso e, em carta a Abelardo, diz:
‘Afasta-te do mal’, diz a Escritura, ‘e pratica o bem’. Em vão seguíamos à risca este conselho, se não o fizéssemos por amor a Deus! Em todos os estados a que a vida me conduziu, Deus o sabe, foi a ti, mais do que a ele, que temi ofender; foi a ti, mais do que a ele que procurei agradar. Foi por tua ordem que tomei o hábito, não por vocação divina. Vê, então, que vida infeliz eu levo, miserável entre todas, arrastando um sacrifício sem valor e sem esperança de recompensa futura![32].
Post conversionem nostram
Domino specialiter, sua singulariter. [Heloísa em carta a Abelardo].
Zumthor, analisando a tragédia que se abateu sobre os destinos de Heloísa e Abelardo, caracteriza de divina comédia todo o ocorrido: tragédia por seu final infeliz, e comédia, por seu caráter de regeneração. É isso que se passou para o casal após a flagelação de Abelardo e o afastamento dos dois: regeneração. Cada um deles se metamorfoseou, mudou de maneira irreversível. Aquela experiência transformara para sempre a vida dos dois.
As razões da conversão
É sabido que Abelardo não atendia um chamado de Deus ou a uma vocação quando buscou refúgio na vida monástica. Ele procurava fugir de sua vergonha. Heloísa, da mesma forma, não tomou o véu por motivos religiosos, mas para cumprir uma ordem de seu esposo. Este, não só exigira que ela entrasse para a vida religiosa, mas que entrasse antes dele. Ela já o havia obedecido, por razões só dela, cedendo às volúpias e contraindo matrimônio a contragosto. Agora, atendendo ao desejo de Abelardo de obter dela a expiação pelo crime que ela cometera, Heloísa lhe oferece a única consolação que restava e, sem hesitar por um momento, sobe ao altar recitando os versos da Pharsale de Lucano.
A conversão de Abelardo se tratou de fuga, a de Heloísa, do mais apaixonado sacrifício e prova de amor por seu esposo, prova de amor essa que a separou para sempre do único ser que ela havia verdadeiramente amado. É interessante essa interpretação de Heloísa ter abraçado a profissão religiosa e renunciado ao mundo não por Deus, mas por Abelardo. Aos olhos da moça, essa decisão e esse amor fizeram de sua grandeza uma grandeza única. Gilson[33] chama atenção ao sentido do ato cometido pela moça: ele não é cristão, é romano e digno da Cornélia da Pharsale que se sacrifica pelo herói ao qual ela causara ruína. O mesmo teor pagão é identificado no conteúdo de suas cartas, das quais Deus não participa, a não ser como testemunha.
Abelardo e o amor divino, Heloísa e o amor humano
Após ingressar na vida religiosa, Abelardo, de filósofo no século, transforma-se em filósofo de Deus. “Depois de simples clérigo professor de lógica, encontramos o monge professor de teologia” [34]. A grandeza que aspirava enquanto teólogo, continuou a buscar enquanto monge, pois essas profissões duas estão ligadas à santidade, que é a grandeza cristã. Abelardo havia se convertido de forma fervorosa, a despeito da questionável pureza de suas razões, precedendo Heloísa na entrega e no amor a Deus e superando-a neste tanto quanto ela o havia superado na perfeição do amor humano e na aplicação da moral do amor puro.
Após longo período sem saber dos sentimentos de Heloísa, Abelardo escreve a já citada Historia, que motiva a primeira carta da já abadessa do Paracleto. Por meio dessa, o monge descobre que Heloísa continua a nutrir por ele os mesmos sentimentos que possuía ainda no século, e passa a empenhar-se na busca da completa conversão da agora sua irmã em Cristo, que reluta em aceitá-la. Alarmado com a vida dupla que Heloísa leva, pretendendo ao mesmo tempo ser a amante e a respeitável abadessa do convento beneditino sem ao menos aceitar os motivos religiosos, Abelardo faz de tudo para mostrar àquela que insiste em lembrar que a paixão está totalmente viva por sua parte, que o amor outrora sensual deve ser transformado em algo diferente. Que agora Heloísa é, antes da esposa do pobre homem Abelardo, esposa do soberano Rei Jesus Cristo:
Ora, sabe-o bem, tu te tornaste minha superiora no dia em que, tomando por esposo meu Senhor, adquiriste sobre mim direito de autoridade, segundo essas palavras de São Jerônimo, escrevendo a Eustóquia: ‘Eu digo: Eustóquia, minha senhora, porque devo esse nome à esposa do meu Senhor’[35].
O amor de Abelardo não gostaríamos de dizer que acabara. Pela leitura de suas linhas, o que percebemos é a transmutação do sentimento do outrora trovador cortês. Como arrisca Zumthor, Abelardo fecha “a fivela terrestre” de seu amor ao passar a direção do Paracleto à Heloísa e ao assumir em relação a ela somente as funções de regulamentar a liturgia do mosteiro: para quem antes ele compunha canções apaixonadas, Abelardo agora escreve hinos de coro. É o teólogo aqui que tem o belo papel, outrora desempenhado por Heloísa, de defender a verdade. Ao responder a primeira cara de Heloísa, ele assume a missão de transformar nela o amor sensual que sente e fazê-lo aparecer em seu aspecto divino. Em cada uma de suas cartas, ele transfigura os sentimentos humanos de Heloísa em sentimentos divinos:
Toda carta de Abelardo é de uma correção de tom verdadeiramente perfeita. Heloísa reclamou seus direitos de esposa junto a ele, ele lhe pede para que use por ele seus direitos de esposa junto a Deus; ela lhe pede conselhos, ele os promete; ela proclama sua paixão por ele, ele lhe pede para orar apaixonadamente a Deus para que sua graça o conserve; ela lhe suplica que volte ao Paracleto, ele lhes pede que reconduzam para lá, pelos menos, seu corpo após sua morte[36].
Não se trata de um diálogo. É um monólogo alternado cujo objeto deixou de ser o mesmo. Heloísa fala no passado; Abelardo no presente e no futuro. O amor, para ela, está atrás; para ele, à frente, já dado a quem souber dizer sim, e reconhecer sua transcendência[37].
O esposo apela para o amor que Heloísa ainda sente: quando ela se diz indigna de fazer penitência por conta de sua revolta contra Deus, Abelardo questiona por que ela não renuncia a esta rebelião, mesmo que seja para fazer a vontade de seu antigo amado:
Mas se desejas me evitar ao menos os piores sofrimentos (senão merecer perfeitamente minhas boas graças!) rejeita esse amargor, que só poderia me penalizar, e não te ajuda em nada a ganhar comigo a beatitude eterna. Suportarias tu que eu a ela chegasse sem ti? Declaras que gostarias de me seguir até os abismos do Vulcão! Pede então ao Céu a virtude da piedade, quando não fosse para não te separares de mim que já me aproximo, como dizes, de Deus. Segue-me antes nesse caminho, e dá mostras de uma generosidade tanto maior quanto uma felicidade mais completa nos espera ao termo da viagem! Não haverá doçura igual a de tentar a aventura juntos[38].
O Senhor se inquieta por mim! Irei assim por toda parte conta ‘as maravilhas que Deus fez por minha alma’. Vem, então, ó minha inseparável companheira, unir-te à minha ação de graças, tu que participaste da minha falta e do meu perdão[39].
Abelardo se dedica então a criticar todos os argumentos e posicionamentos de Heloísa: quando ela pede que o amado nunca mais lhe escreva falando que ele está sendo perseguido e corre perigo de morte, ele lhe pergunta se quando ela anteriormente pedira para ficar a par de sua vida, só queria receber as boas novas; quando ela considera suas orações inúteis por se considerar indigna, Abelardo questiona se ela não estaria se humilhando para se exaltar, fazendo uso de coquetismo; quando Heloísa afirma que seguiria Abelardo até o inferno, ele pergunta se o único lugar até onde ela não o seguiria seria o céu. Em meio a essa acirrada disputa de argumentos inflexíveis, uma verdadeira batalha travada no papel, emerge uma guerra de nomenclaturas. Como descreve Gilson:
‘A seu único depois de Cristo, aquela que é sua única em Cristo’, escreve Heloísa; ‘À esposa de Cristo, o servidor de Cristo’, responde Abelardo. Seria injusto acusá-lo de frieza ou de indiferença, pois ele diz exatamente aquilo que deveria dizer; Heloísa continua a ser sua mulher, mas a abadessa do Paracleto é, antes de tudo, a esposa de Cristo. Certamente, é admirável hábil a resposta de Heloísa, que se proclama ‘A Deus pela espécie, mas a Abelardo como indivíduo’. Que mulher lógica[40].
Ou seja, a religiosa pode ser de Deus enquanto parte da espécie das religiosas, mas como indivíduo, Heloísa pertence a Abelardo. Assim, o esforço de Abelardo parece ter sido em vão, pois ela nunca renunciou ao sentimento que dá sentido à sua existência. Aliás, essa foi a única coisa que não ele conseguiu de Heloísa: fazer com que ela amasse, ou fingisse amar, Deus mais (ainda que um pouco mais) do que a Abelardo. Mais do que nunca, quando abadessa do Paracleto, ela se mostra apaixonada e entregue ao seu amado.
A recusa de Deus
Como destaca Gilson[41], o que chama a atenção nas cartas de Heloísa é a total ausência de Deus convivendo com a onipresença de Abelardo. Aliás, Deus não está somente ausente, ele é freqüentemente expulso das cartas. Zumthor ousa mais um pouco e caracteriza Deus como o losengier, o vilão das canções cortesãs que tanto agradavam Heloísa em sua juventude. Ela acusava Deus de tê-la tornado a mulher mais feliz do mundo só para que sua queda fosse mais alta, reclamava que Ele não punira os amantes enquanto pecavam, e que só se vingou deles após os dois passarem a vivem castamente separados, repreende-O por ter castigado somente Abelardo:
E não me é permitido exclamar: Deus não cessou de ser cruel para mim! Ó clemência inclemente! Ó fortuna infortunada! O destino esgotou contra mim seus golpes assassinos a ponto em que não lhe resta onde atingir. Ele esvaziou sobre mim sua aljava, e ninguém mais do que eu teme seus assaltos. Tivesse-lhe restado uma única flecha, ela teria antes procurado onde fazer uma nova ferida sobre mim. A única coisa que ele teme, sempre me infligindo seus golpes, é que minha morte ponha fim a esse suplício. Sem cessar de ferir, ele teme me conduzir a um desenlace que ela apressa. Ó infeliz entre as infelizes! Infortunada entre as infortunadas, tu me elevaste entre as mulheres a um posto sublime de onde me vejo precipitada por uma fatalidade tanto mais dolorosa para nós dois[42].
Enquanto saboreávamos as delícias de um amor inquieto e (para me servir de uma palavra brutal mas expressiva) e nos entregávamos à devassidão, a severidade divina nos poupou. Mas, a partir do dia em que legitimamos esses prazeres ilegítimos e cobrimos com a dignidade conjugal a vergonha de nossas fornicações, a cólera do Senhor se abateu pesadamente sobre nós. Nosso leito imundo não o havia comovido: ela se desencadeou quando o purificamos[43].
Abelardo argumenta que Deus destinou Heloísa a Ele (o nome Dele é Heloim, o dela é Heloísa) e cuidou de seu destino para que ela O encontrasse: curou Abelardo de forma tal que obrigou Heloísa, unida a ele por laços matrimoniais, a renunciar ao mundo e se entregar totalmente a Deus. Heloísa lembra então que não atendeu a nenhum chamado de Deus ou qualquer piedade religiosa quando tomou o véu, mas sim uma ordem de Abelardo, dele que é o único possuidor de sua alma. Assim, ela não deve nada a Deus por sua profissão, nem Ele lhe deve qualquer recompensa pois ela nunca fizera nada por amor a Ele desde sua conversão.[44] Entregar-se a Deus foi somente mais uma maneira de se entregar a Abelardo: ela se tornara religiosa pelo mesmo motivo pelo qual anteriormente havia sido amante e esposa dele, para pertencer ao seu amado antes de qualquer coisa.
Essa explicação nos permite entender o desespero presente nas linhas redigidas por Heloísa: é o desespero da adoradora abandonada por seu único Deus. Indo mais longo, é o pedido de socorro de uma religiosa destituída de vocação àquele que determinara sua entrada para a religião, ao único que havia lhe pedido tal sacrifício, pois Deus não o havia solicitado. Revoltada contra Deus, Heloísa se impõe as mais pesadas austeridades sem esperar que Ele retribua o mérito, pois se Ele não está lá, não é porque ela se recusou a Ele, mas porque Deus se recusou a ela.
Só podemos entender a rebelião de Heloísa contra Deus se pensarmos em suas reclamações como a expressão da enorme miséria espiritual que tomou conta dela. Sua vida religiosa é uma existência de sacrifício sem penitência por Deus, pois todas as suas penitências são por Abelardo, pois ela nunca aceitou o golpe que Ele infligira contra o casal (pois, ao desposá-la, Abelardo já havia se humilhado a ponto de reparar seus erros), pois ela bem sabia que ofendia a Deus ao se revoltar contra Sua providência, e porque ela não poderia fazer penitência por prazeres culpáveis que ela não cessava de desejar[45]. Assim, Abelardo seria o único capaz de lhe trazer conforto espiritual, não Deus. A ausência Dele tornava tanto mais cruel quanto mais imperdoável o abandono de Abelardo enquanto seu guia espiritual, o São Jerônimo que ele não quer ser para ela, mas o é para outrem quando escreve a Historia calamitatum para ajudar um amigo a suportar suas desgraças.
Em suas cartas, a abadessa reclama ter sido a única a seguir a moral do amor puro e acusa Abelardo de nunca tê-la amado. Este concorda e usa de forma perspicaz todos os argumentos de Heloísa contra ela, em prol de sua conversão.
Meu amor, que nos arrastou a ambos no pecado, chamemo-lo de concupiscência, não de amor. Eu aliviava em ti minhas miseráveis paixões: eis tudo que eu amava! Sofri, tu dizes, por ti. Talvez seja verdade. Mas seria mais justo dizer que sofri por ti, contra minha vontade. Não por amor por ti, mas por constrangimento. Não por tua salvação, mas por tua dor. Foi por tua salvação, ao contrário, que o Cristo voluntariamente sofreu essa paixão pela qual ele cura em nós todo langor e reprime todo sofrimento. Leva a ele, eu te suplico, e não a mim, toda tua piedade, toda tua compaixão, toda tua dor. Deplora a iniqüidade tão cruel cometida para com sua inocência, e não a justa vingança que me atingiu e foi, para ambos, eu o repito, a maior das graças[46].
Em um golpe de mestre, Abelardo apela ao amor puro para lhe convencer a desistir de sua paixão humana: se o que ela busca na vida é um amor desinteressado, por que, em vez de buscá-lo em um ser humano miserável que claramente não o pode oferecer, Heloísa não se volta para Deus? Ele argumenta que, sim, sofreu por Heloísa, porém a contragosto. Jesus sofreu por ela o mais pesado dos suplícios de bom grado e não busca em Heloísa nada além dela mesma. Por meio dessa fórmula lógica, Abelardo conclui que Jesus é seu verdadeiro amigo, seu único amor desinteressado. Heloísa estava certa, seu amado nunca a amara verdadeiramente, e por isso, Abelardo sustenta que ela deve se afastar dele e abandonar sua “reivindicação perpétua” contra Deus.
A resignação de Heloísa
Obedecendo ao pedido de Abelardo de não mais insistir nesses pontos e de tomar uma atitude mais conveniente com sua profissão, Heloísa muda de assunto. Trata então de dúvidas sobre a Sagrada Escritura e sobre a regra monacal do Paracleto. É nesse momento que ela coloca as 42 questões sobre a escritura, os Heloissae problemata. Alem de respondê-las, no mesmo esforço de conversão e no mesmo sentimento de responsabilidade espiritual, Abelardo escreve para ela um tratado sobre regra monacal e outras obras, como uma coletânea de sermões para as religiosas do Paracleto, Hinos e Seqüências.
Mesmo calada, Heloísa passa sua mensagem: ela não abrirá mão do amor que é sua honra, sua grandeza e que lhe dá sentido à vida. Heloísa se resigna estoicamente seguindo os modelos clássicos herdados de Lucano e Sêneca e Abelardo se entrega à renúncia total e se submete, da forma mais cristã, à Providência. Segundo um quadro engraçado pintado por Zumthor, Heloísa deixa Abelardo pregar no deserto.
Conclusão
A memory of yesterday’s pleasures, a fear of tomorrow’s dangers, a straw under my knee, a noise in mine year, a light in mine eye, an anything, a nothing, a fancy, a Chimera in my brain, troubles me in my prayer. So certain is there nothing in spiritual things, perfect in this world. [John Donne].
Heloísa é até hoje conhecida como amante de Abelardo, apesar de sua trajetória independente e corajosa e a despeito de toda a influência que exerceu sobre ele. Como brincou Gans, Abelardo e Heloísa eram um “star couple”: ambos já possuíam fama e prestígio antes de se unirem. O mesmo Gans argumenta que, além dos medievalistas, as pessoas procuram ler a Historia calamitatum, em geral, para conhecer a história de amor de Heloísa e Abelardo. Graças a ela, a obra de seu amante é bem mais conhecida e lida hoje do que seria se eles não tivessem vivido um romance. A importância de uma mulher como Heloísa e sua contribuição para o pensamento ocidental não deveriam ser questionadas, e sua história pessoal não deveria viver à sombra de uma outra pessoa.
A leitura das cartas, como destaca Gilson[47], permite-nos analisar a história não somente do ponto de vista de Abelardo (como fazermos ao ler a Historia calamitatum), mas também do de Heloísa. Trata-se de conhecer seus sentimentos, suas razões e suas convicções, dando mais sentido a essa odisséia romântica que parece se encaixar perfeitamente, que soa como um todo indivisível após a leitura das cartas de Heloísa. Trata-se de notar a outra metade dos envolvidos na história e de reconhecer a relevância da contribuição dessa pequena abadessa. Ainda que de forma modesta e despropositada, Heloísa contribuiu para desvelar o caráter androcêntrico das obras canônicas da filosofia e a razão patriarcal da história do pensamento filosófico.
O conteúdo da correspondência dos dois amantes modificou a noção de gênero e de status feminino: Abelardo defende a relevância da mulher em seus escritos, não sua inferioridade. Esse é um ponto relevante, que representa ruptura: no século XII, além de serem desprezadas e excluídas do mundo público, as mulheres eram tomadas como seres satânicos por natureza. A própria Heloísa cita sua sina de pecadora, pois a seu ver, a ruína de todo grande homem é causada por uma mulher. Ele usa passagens bíblicas do Velho Testamento e ele, do Novo, para sustentar suas posições em relação ao papel da mulher. Abelardo, vai contra esse pensamento dá vários exemplos que demonstram a importância e a bondade da mulher. Na primeira carta a Heloísa, ele escreve:
(…) mulheres obtiveram a ressurreição de seus mortos. Folheia o Antigo e o Novo Testamento; constatarás que as mais maravilhosas ressurreições tiveram por principais, senão únicas testemunhas, mulheres, e foram realizadas por elas ou em seu favor. O Antigo Testamento menciona dois mortos ressuscitados a pedido de uma mãe: por Eli, e por seu discípulo Eliseu. Quanto ao Evangelho, relata três ressurreições, operadas pelo Senhor, e nas quais mulheres desempenharam um papel. Ele confirma assim a palavra apostólica a que faço alusão: ‘as mulheres obtiveram a ressurreição de seus mortos’. Jesus, tocado de compaixão, entregou a uma mãe, viúva, o filho que ele ressuscitou diante da porta de Naim. Atendendo à oração das irmãs Marta e Maria, chamou seu amigo Lázaro à vida[48].
Ele vai adiante: “De resto, não se saberia melhor situar uma sepultura cristã que, de preferência a toda outra comunidade de fiéis, entre mulheres consagradas ao Cristo. De fato, foram mulheres que tomaram conta do túmulo de Nosso Senhor Jesus Cristo (..).”
Gans nos deixa com outro questionamento importante em relação à defesa que Abelardo faz às mulheres: nunca época regida pelos padrões corteses, segundo os quais a mulher é colocada em um pedestal como uma compensação hipócrita pela sua situação cotidiana de opressão, o fato de Abelardo considerar Heloísa forte e senhora de si nos indica que a enorme admiração que a discípula sentia pelo mestre era recíproca.
Gilson[49] cita a correspondência à Heloísa como uma das principais obras de Abelardo sobre o homem e seu pensamento, além de questões teológicas. Ainda segundo o autor, as idéias filosóficas e teológicas presentes na correspondência dos amantes são tão importantes que chegam a determinar toda a nossa compreensão sobre o século XII. Além de consensualmente autênticas, as cartas formam, como explica ao autor, “um documento humano de uma riqueza e de uma beleza tais que com todo o direito se pode colocá-los dentro os mais emocionantes da literatura universal”[50]. Além disso, o conteúdo da correspondência e a história de Heloísa e Abelardo nos ajuda a jogar por terra algumas categorias simplificadoras e reducionistas da historiografia. Jacob Burkhardt e os historiadores do Renascimento, por exemplo, gostam de descrever o homem da Idade Média, o homem criado pelo cristianismo, como sem individualidade, tolhido pela Igreja (que não tolerava o desenvolvimento individual da pessoa), incapaz de se analisar ou aos outros e de descrever de forma biográfica, incapaz de descrever o homem moral, etc. Abelardo e Heloísa simplesmente não viveram no século XII se depender dessa categorização.
Conhecemos poucos pensadores que mais se dedicaram a descrever o homem moral de forma mais despojada e direta: escreveram biografias que visam o estudo da moral, na qual se analisam segundo sua consciência cristã e também se expõem. Como eles, há outros exemplos que, se formos citando, acabaremos pintando um quadro da Idade Média repleta de humanistas e um do Renascimento como a idade de ouro da escolástica[51]. Lembrados porém deixados de lado pelos historiadores do Renascimento, Heloísa e Abelardo nos auxiliam a comprovar que essa interpretação limitada do Renascimento e da Idade Média não é nada além de um mito, um mito que não é justificado pelos fatos, mas que dita os fatos[52]. A correspondência nos mostra o erro de Burkhardt, que mostra Dante como o primeiro homem a revelar os “mistérios de sua vida interior”. Portanto, como Gilson[53] argumenta, seria bom que, no momento de desenvolver essas definições para encerrar a Idade Média, os historiadores se lembrassem “dessa pequena louca francesa, obcecada pelo ideal da grandeza romana como pelo da grandeza cristã, que jamais soube ao certo se era a Eustochium de um novo São Jerônimo ou a Cornélia de um novo Pompeu e que, tomando o véu em Argenteuil pelo amor de um homem, consagrou-se para sempre a Deus recitando versos da Pharsale”[54]. Que nem os historiadores, nem os filósofos e teólogos esqueçam dessa abadessa que vestiu o hábito sem vocação e que teve como único deus sua paixão terrena, e seu amante, esse verdadeiro cavaleiro apóstata que acabou por se encontrar na chama da fé.
Bibliografia
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Brower, Jeffrey E. e Guilfoy, Kevin. The Cambridge Companion to Abelard. Cambridge : Cambridge University Press, 2004.
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____________. A filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
____________. L’Esprit de la Philosophie Médiévale. Paris: Librarie Philosophique Jean Vrin, 1932.
Magda, Rosa María Rodríguez. “El Placer Del Simulacro: Feminismo y Transmodernidad”. In: FEMENÍAS, María Luisa. Perfiles del feminismo iberoamericano. Buenos Aires: Catálogos, 2007.
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Zumthor, Paul. Correspondência de Abelardo e Heloísa/ texto apresentado por Paul Zumthor e traduzido por Lucia Santana Martins. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
Referências na Internet:
Medieval Sourcebook: Medieval Discussion of Heloise’s Letters to Abelard , acessado em 26/11/2007.
[1] Étienne Gilson, Heloísa e Abelardo (São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2007), 11.
[2] Charles de Rémusat Abelard, sa vie, sa philosophie et sa theólogie (Paris: Lagrange, 1845).
[3] Acusações de Fouco de Deuil a Abelardo sobre a suposta promiscuidade e coleção de aventuras amorosas se mostraram inconsistentes segundo Étienne Gilson, Heloísa e Abelardo, 30-2.
[4] Étienne Gilson, Heloísa e Abelardo.
[5] Charlotte. Charrier, Héloïse dans l’historie et dans la légende (Paris: H. Champion, 1933).
[6] Étienne Gilson, Heloísa e Abelardo, 50.
[7] Paul Zumthor, Correspondência de Abelardo e Heloísa (São Paulo: Martins Fontes, 2000).
[8] Étienne Gilson, Heloísa e Abelardo.
[9] Ibid, p.27.
[10]Ibid, p.32.
[11] Carta traduzida por Étienne Gilson, Heloísa e Abelardo, 148.
[12] Eric Gans, Chronicles of Love and Resentment – Abelard and Heloise.
[13] Étienne Gilson, Heloísa e Abelardo, 21.
[14] Ibid, p. 218.
[15] Pedro Abelardo, Coleção Os Pensadores (São Paulo: Editora Abril, 1973), 261-5.
[16] Paul Zumthor, Correspondência de Abelardo e Heloísa, 12.
[17] Ibid, p.95.
[18] Étienne Gilson, Heloísa e Abelardo.
[19] Ibid, p.80.
[20] Étienne Gilson, Heloísa e Abelardo.
[21] Ibid, p.84.
[22] Étienne Gilson, Heloísa e Abelardo.
[23] Ibid.
[24] Ibid.
[25] Ibid, p.94.
[26] Étienne Gilson, Heloísa e Abelardo.
[27] Étienne Gilson, A filosofia na Idade Média (São Paulo: Martins Fontes, 1995), 353.
[28] Paul Zumthor, Correspondência de Abelardo e Heloísa, 98.
[29] Étienne Gilson, Heloísa e Abelardo, 92.
[30] Ibid, p.96.
[31] Paul Zumthor, Correspondência de Abelardo e Heloísa, 121.
[32] Étienne Gilson, Heloísa e Abelardo.
[33] Étienne Gilson, A filosofia na Idade Média, 352.
[34] Paul Zumthor, Correspondência de Abelardo e Heloísa, 126.
[35] Étienne Gilson, Heloísa e Abelardo, 110-1.
[36] Paul Zumthor, Correspondência de Abelardo e Heloísa, 24.
[37] Ibid, p.137.
[38] Ibid, p.142.
[39] Étienne Gilson, Heloísa e Abelardo, 104.
[40] Étienne Gilson, Heloísa e Abelardo.
[41] Ibid, p.114.
[42] Paul Zumthor, Correspondência de Abelardo e Heloísa, 115.
[43] “Nulla mihi super hoc merces expectanda est Deo, cujus adhuc amore nihil me constat egisse”.
[44] Como ela bem falava, os que dizem que sou casta, não sabem o quanto sou hipócrita. Manter-se casta sem desejar não significa nada, pois são as intenções e não os atos que contam.
[45] Ibid, p.147.
[46] Étienne Gilson, Heloísa e Abelardo.
[47] Paul Zumthor, Correspondência de Abelardo e Heloísa, 105.
[48] Étienne Gilson, A filosofia na Idade Média.
[49] Étienne Gilson, Heloísa e Abelardo, 28.
[50] Étienne Gilson, Heloísa e Abelardo.
[51] Ibid, p.126.
[52] Étienne Gilson, Heloísa e Abelardo.
[53] Ibid, p.171.