Potência e Impotência na Ciberpolítica, por Constantino Pereira Martins

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Constantino Pereira Martins é pesquisador de Doutorado na Universidade Nova de Lisboa.

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Resumo

A tarefa de traçar as novas fronteiras do político implica um esforço crítico que enfrenta uma dificuldade dupla: em primeiro lugar, o confronto entre a teoria política contemporânea e a velocidade virtual do presente, que resulta numa delimitação complexa do espaço público; e um segundo obstáculo, que consiste na construção do novo conceito de Ciberpolítica, que pela sua natureza paradigmática, envolve transformação e metamorfose, a qual tentaremos mapear. Este esforço exigirá uma investigação genealógica do conceito de Ciberpolítica, que deriva dos estudos da Cibercultura , mas também o mapeamento dos seus diferentes níveis e campos de significado. Esta noção work-in-progress, na encruzilhada da política e da estética, será analisada em duas perspectivas diferentes: a) implosão do espaço público por relação ao conceito de imagem e mediação, e b) explosão do espaço público na sua potencialidade agregadora de novas dinâmicas.

Palavras-Chave

Paradigma; Ciberpolítica; Espaço público; Virtual; Tecnologia

Abstract

The task of tracing the new frontiers of the political implies a critical effort that faces a double difficulty: first of all, the confrontation between contemporary political theory and the virtual speed of the present, that results in a complex delimitation and circumscription of a new hermeneutical horizon of the public space; and a second obstacle, that consist on the construction of the concept of Cyberpolitic itself that, by its paradigmatic nature, involves transformation and metamorphosis, which we will also try to map. This effort will require a genealogical investigation of the concept of Cyberpolitic which derives from Cyberculture studies, but also the mapping of its different levels and fields of significance. This work-in-progress notion will be analyzed in two different perspectives: the implosion of the public space in its relation to the concept of image and mediation, and the explosion of public space in its aggregation potentiality of new dynamics.

Key Words

Paradigm; Cyberpolitics; Public space; Virtual; Technology

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A introdução ao novo paradigma do fenómeno político deve ser feita com extrema cautela, dadas as fronteiras ténues, que permitem entrever a relação devedora à circunscrição biopolítica, na interpretação de uma nova fluidez, entendida sob a noção de Ciberpolítica. Neste sentido, a compreensão de uma pós-modernidade, ou de um pós-panóptico (BAUMAN, 2012, p.10,11), pode ser compreendida à luz de uma linha descontínua face ao paradigma anterior, mas com marcas comuns. São paradoxos herdados, mas amplificados pela complexidade crescente, no seguimento da desintegração da rede social pela rede virtual (BAUMAN, 2012, p.14), assente numa lógica da velocidade e aceleração da hiperdemocracia (ORTEGA Y GASSET, 2007, p.44,59). A passagem de uma sociedade de produção a uma sociedade de consumo, na confusão entre o espaço privado, entre a solidão e a multidão, a encruzilhada (ORTEGA Y GASSET, 2007, p.64) estabelece-se como herança dos dilemas da liberdade e da segurança. Esta ambivalência instaura um espaço de crise, onde as formas antigas parecem já não funcionar e onde as novas formas ainda não foram inventadas, nesse espaço identificado por Bauman enquanto interregnum. Neste sentido, a tarefa crítica impõe-se mais uma vez como pensamento das condições de pensabilidade, como tentativa de clarificação desse espaço em crise, duplo. Nihil novi sub sole. O conceito de crise é um problema interno ao próprio pensamento enquanto devir, espaço de dialéticas e superações, próprio do que é vivo e transbordante, que poderia ser a súmula e epitáfio da própria História Ocidental (BRAGANÇA de MIRANDA,2008,p.114). Esta interpretação dá conta também de um outro fenómeno sintomatológico que se desenrola num efeito de contágio, expansão progressiva ad infinitum, demonstrativo do problema viral com que estamos confrontados. Procurar-se-á aqui confrontar essa mesma complexidade viral, procurando determinar os contornos do próprio conceito, alargando-o ao seu teor político e não exclusivamente económico, na instauração de um espaço novo, enquanto Ciberpolítica, enquanto espaço de transição, de mudança de paradigma do político, migração que parece escapar ao próprio político. De facto, a noção de crise parece instalar-se mais comodamente quando as categorias de análise parecem já não encaixar, e a chave de leitura parece estar perdida. Esta perda de sentido pode ser entendida apesar de tudo como novo sentido. Assim, a Ciberpolítica denota primeiramente essa incapacidade do político na adequação à velocidade do real, com implicações múltiplas a serem discutidas mais à frente, e que tentaremos tocar nas suas duas pulsões estruturantes: como impotência e como potência.

Nesse sentido, o movimento de relação entre política e contemporaneidade não poderia deixar de ser esse espaço problemático por excelência, em relação à análise que tem que ser efectuada por relação ao próprio estatuto do espaço público, na delimitação de um novo conceito e de um novo espaço territorial que obriga a uma inquirição sistemática que radica na discussão das fronteiras categoriais a que aqui se dá início. Na construção de uma multiplicidade, o diagnóstico parte de uma premissa exclusiva, dado que este artigo coloca-se no âmbito da discussão em torno da Filosofia Política e não da economia política. Apesar de Habermas apontar o problema a que chama a colonização do mundo da vida, e um dos teoremas da crise racional passar pela circunstância de que “the crisis cycle, distributed over time and difused of its social consequences, is replaced by inflation and a permanent crisis in public finances”, implicar o paradoxo do teorema da crise na sua aplicação ao Estado social que “vacilates between expected intervention and forced renunciation of intervention” (HABERMAS, 1992, p. 61,62), é a crise do Estado, nas suas múltiplas variações, que aqui nos importa debater, para lá das considerações ideológico-económicas. O carácter da crise na sua acepção cíclica, não de transitoriedade, mas de transição, será aquilo que importará discutir.

A compreensão do fenómeno em análise, para lá da sua expansividade sistémica, ao expor, por um lado, o problema da multicausalidade e seus efeitos, expõe de forma mais radical que a noção de crise na sua expansão “ensombrou os horizontes da consciência contemporânea” (MORIN, 1976, p.149), não limitada à economia, provocando o seu obscurecimento generalizado. Se a sua definição etimológica implica o momento de diagnóstico, no espaço da falha encontramos duas lacunas: ao nível do saber e da realidade social. Como esclarecer então o conceito de crise? Seguindo Morin, podemos descobrir alguns mecanismos internos que nos auxiliarão a compreender a sua natureza sistémica dado que “nenhum sistema está ao abrigo da desintegração (…) até porque todo o sistema está condenado a perecer” (MORIN, 1976, p.152). Os sistemas complexos comportam assim princípios sistemático-antagonistas que guardam no seu núcleo central potências organizadoras e desorganizadoras, sistema de vida e morte, vaivém de virtualizações e actualizações.“Quanto mais rica a complexidade viva, mais a relação antagonismo/ complementaridade se torna móvel e instável” (MORIN, 1976, p.153). A complexidade teórica da crise, num sistema de interacções e inter-relações, associa noções que aparentemente deviam excluir-se. A dialética exposta por Morin vai no sentido de mostrar que esse bloqueio ou desbloqueio da crise, para lá da sua maior riqueza do que o conceito de perturbação, liberta ou rigidifica pulsões internas, já contidas de forma latente ou virtual. Se o duplo rosto da crise pode ser regressivo ou evolutivo, isso significa dizer que em primeiro lugar ela não é necessariamente evolutiva, e que nascendo de uma perturbação e dando origem a um desvio, não escapa à temporalidade própria. Essa marca do seu tempo significa “elevar a crise a um nível macro-conceptual rico, complexo, contendo em si uma constelação de conceitos”(MORIN, 1976, p.155). Se hoje em dia ela significa na sua imediatez uma incerteza, ambiguidade e indecisão, a crise “revela o que está escondido, latente ou virtual: os antagonismos fundamentais, as rupturas sistemáticas subterrâneas, o caminho oculto das novas realidades, e também a capacidade de transformação da sociedade”(MORIN, 1976, p.162). Por outro lado, se a crise é perceptível historicamente enquanto percepção da catástrofe, a crise nos seus múltiplos níveis, encarna agora o problema da sua própria banalização. “Tudo a saber se resume se estamos perante uma evolução da “crise”, que de violenta (revolução) passa a “banal” (desastre, acidente), ou se tal disseminação é uma condição da existência da experiência moderna”(BRAGANÇA de MIRANDA, 1997, p.114). Na retórica da crise, em que a teoria da crise é ela mesma um operador político, coloca-se o perigo ”que assola o pensamento que está preso ao desejo absoluto de reconciliação” (BRAGANÇA de MIRANDA, 1997, p.116). A desconstrução retórica da crise é uma exigência crítica e dá-se enquanto necessidade de repensar a própria tensão do pensamento ao abrigo do perigo de manipulação do pathos da crise, recuperação do pensamento político como lugar tensional. Arendt aponta igualmente este lugar tenso, dir-se-ia ontológico-político, da desagregação, da desfragmentação do mundo enquanto crise de educação, liberdade, autoridade. O problema político, enquanto espaço do viver em comum, liberta a questão da crise para uma questão formal: como constituir agora uma comunidade sem o comum? A crise enquanto oportunidade e obrigação do pensamento, implica esse repensar fundacional entre revisitação do laço comum e da sua fundação. Este novo mundo refém da dialética cerrada do consumo e do trabalho, afirmação do animal laborans que não consegue escapar ao ciclo infernal, anúncio de uma analítica do desejo, que é a transformação da política na gestão do imediato e na administração pura do presente. Paradoxalmente o novo desaparece. A crise instala-se como espaço vazio entre o passado e o futuro, entre o novo e o velho.

Assinalar a Ciberpolítica como conceito operativo de uma dupla torção, pode explicitar esse lugar de crise. O espaço político contemporâneo poder-se-ia dizer como que entra numa hiper-complexidade, resultado de múltiplas camadas que aqui tentaremos dar conta, de forma a apontar alguns dos seus componentes fundadores. A noção de Ciberpolítica é também herdeira da Cibercultura entendida enquanto “convergência da cultura e da técnica, sinal de uma requisição geral da experiência pela técnica”. Assim, “a contemporaneidade está, portanto, a ser profundamente marcada pelas tecnologias digitais. Isso explica que, quase despercebidamente, se tenha começado a falar de «cibercultura», mas também de cultura «digital», de «experiência electrónica» ou «virtual». O desencontrar dos nomes, a falha essencial destes, é sinal de que a experiência contemporânea está em crise profunda (…), a nova imediaticidade, que tende a perturbar divisões de há muito estabelecidas, pondo em crise os dispositivos de representação. O paradoxo é nítido: os novos «meios» estão a impor a imediaticidade, o que não impede que tenha efeitos «físicos», como os da «globalização», mas acima de tudo «metafísicos»”. ( BRAGANÇA de MIRANDA, “Mapear a cibercultura”). O confronto entre a política e a técnica resulta no afrontamento de um novo espaço virtual. O próprio espaço é rasgado por essa multiplicidade, por esse virtual no cruzamento com a técnica. Da enorme complexidade que estas noções encerram, daremos aqui conta sumariamente da não neutralidade da Técnica. Seguidamente, ir de encontro ao problema do Virtual no âmbito da Cibercultura seria enunciar as determinações que permitem identificar as suas várias qualidades: simulação, interacção, artificialidade, imersão, telepresença. Na verdade, o conceito de virtual tem como movimento interno a multiplicidade. Isso poderia explicar a panóplia possível de linhas que aqui se poderiam desenhar, e de uma forma mais contemporânea apresentar o Século XX como acolhedor deste debate no âmbito da Técnica, teia complexa do estético ao político. Por agora, deixaremos em suspenso esta discussão a fim de ser retomada aquando da discussão das tendências da Ciberpolítica no contemporâneo, entendida enquanto potência/impotência.

2.

Começamos por identificar o espaço da cibercultura como fundação de um novo espaço híbrido (BRAGANÇA de MIRANDA, 2008, p.144) que tem na cultura das redes o seu espaço privilegiado, sob o desígnio da questão das ligações. Podendo a imaterialidade tornar-se um reflexo confuso (BRAGANÇA de MIRANDA, 2008, p.129) para a análise, é no entanto de acordo com a sua plasticidade inerente que a cibercultura se torna na actualidade um facto incontornável nos seus efeitos universais (LÉVY, 1999, p.111). Se “o problema do nosso tempo é o acontecimento da técnica”(BRAGANÇA de MIRANDA, 2008, p.124), ou uma ecotecnia (NANCY, 2000, p.86) nesse movimento da techné dos corpos, então importa considerar as implicações políticas que resultam dessa convergência da técnica e do bios (BRAGANÇA de MIRANDA, 2008, p.116). Isso implica exibir a rede de problemas associados à cibercultura, desde o corpo ao problema do espaço, no que de central ocupa a reversibilidade da categoria do virtual, ao abrigo do efeito Moebius. Um hipercorpo (LÉVY, 1999, p.29), um hiperespaço, numa nova máquina tecnosocial, que seguindo a definição de rizoma por Deleuze e Guattari, se apresentaria com características gerais de:

 a) Conexão e heterogeneidade. Qualquer ponto pode ser conectado com qualquer outro;

 b) Multiplicidade (Cf. ROSA, A., “Elementos para uma teoria geral das redes”). Só quando o múltiplo é tratado como substantivo, multiplicidade, ele deixa de ter relação com o Uno, como sujeito ou como objecto, como realidade natural ou espiritual, como imagem e mundo (…). Uma multiplicidade não tem sujeito nem objecto;

 c) Ruptura assignificante. Um rizoma pode ser rompido, interrompido em qualquer parte, mas sempre recomeça segundo esta ou aquela das suas linhas, e ainda segundo outras;

 d) Cartografia. (…) O rizoma funciona como um mapa. O mapa não reproduz um inconsciente fechado sobre si mesmo, ele constrói-o. O mapa é aberto, conectável em todas as suas dimensões, desmontável, alterável, susceptível de receber constantemente modificações.

É com efeito à síntese rizomática do que ao ciberespaço concerne, que importa circunscrever o nosso problema. A internet é o coração da máquina cibercultural, enquanto espaço de substituição, analogia, assimilação e articulação (LÉVY, 1999, p. 186). “A velocidade não faz com que o espaço desapareça, ela metamorfoseia o sistema instável e complicado dos espaços humanos”(LÉVY, 1999, p.216). Nesta complexificação, nesta outra forma, vemos que a cibercultura, como um dos motores do contemporâneo (LÉVY, 1999, p.227), se tornará “provavelmente o centro de gravidade da galáxia cultural do século XXI” (LÉVY, 1999, p. 220). Numa possível infinita cartografia, a enunciação dos pressupostos, na construção de um mapa de pré-estabilização, dar-se-ia em:

a) Interactividade; jogo. Não no sentido do jogo enquanto prática, mas num sentido mais arquetipal de construção de sentido;

b) Limite (finito/Infinito). Enunciação da perplexidade: a lógica é a da ordem do constrangimento;

c) Autoria. Revisão da categoria autoral;

d) Liberdade (criação e recepção). Possível desenvolvimento na especialidade do ponto a) e

e) Não no sentido da rede estar “associada a uma visão libertária da sociedade (…) criando novas socialidades” (MOURÃO, J., “O mundo das redes: a euforia rizomática”), em movimentos conexos de desterritorialização e reterritorialização, mas mais no sentido de uma Crítica da razão hiperficcional , onde se percebe o problema do apagamento da diferença entre S-O ( quasi sujeitos – quasi objectos);

f) Suporte/ Dispositivo. O problema das ligações (BRAGANÇA de MIRANDA, 2002, p. 261) não se esgota na pura lógica da mecanicidade.

Este nomadismo constitutivo da própria rede reforça a nossa intuição relativamente à constituição da categoria primordial do “estar-entre”, passível de ser traduzida por Hibridismo, condição natural da tentativa de fixação e estabilização dos conceitos e categorias. Movimento nomádico e híbrido (MOLDER, 2002, p.227) que se desdobra numa desmultiplicação de espaços num espaço de “multiplicidade sem qualquer unidade axial que nos condicione as linhas de contacto ou de fuga (…), não existe nenhum centro nem centros, é como um corpo sem orgãos”(TEÓFILO, F., “Tubérculos Capitalismo Esquizofrenia e a Internet”). Estética do fragmento, remontagem espectral, plataformas recombinatórias multimedia, nessa terra de ninguém onde os recursos são vastos na sua ubiquidade híbrida (BRAGANÇA de MIRANDA, 2008, p.131), a Cibercultura é estruturante relativamente a uma nova ontologia política. Assim, a virtualização não é uma desrealização, mas uma mutação de identidade, um deslocamento do centro de gravidade ontológico do objecto considerado: em vez de se definir principalmente pela sua actualidade, passa a encontrar a sua consistência essencial num corpo problemático (LÉVY, 1999, p.25). O que o virtual vai permitir é a passagem a uma outra lógica: uma lógica da multiplicidade e da diferença, do inacabado e do disperso. A ideia de oceano que contém a ideia de univocidade, expressão de um mesmo sentido segundo as diferenças. Um só e mesmo oceano para todas as gotas.

3.

Da cibercultura à ciberpolítica, trata-se de mostrar uma linha, um quadro (LÉVY, 2003, p.219) comparativo e evolutivo que dos pressupostos iniciais de compreensão do político enquanto binário, hierárquico, estável (previsibilidade), passamos a um registo rizomático-difuso, assente nos pressupostos de velocidade, instabilidade e imprevisibilidade. Assim, no pós-panóptico, ou na inversão do panóptico, exibe-se o pathos do logos, onde o tempo sobredetermina as categorias de corpo e espaço (das utopias, às distopias e heterotopias). Neste sentido, por ciberpolítica entende-se o novo paradigma que refunda o político ao abrigo das novas tecnologias, com particular incidência no advento da internet e dos seus efeitos. Ao abrigo desta definição, depreende-se facilmente que a comunicação se torna uma noção chave. Se as categorias gerais de qualidade e quantidade se diluem, é na relação e na modalidade que encontra o seu eixo estruturante. O papel central que a mediação e a representação ocupam no espaço de reflexão problemática da Filosofia Política contemporânea, indica que estamos na presença de um verdadeiro feixe de problemas sobrepostos. Sinteticamente, e em geral:

a) o problema do espaço público. Entre a explosão e a implosão, num regime de visibilidade máxima, onde potencialmente se exibem todas as ligações, sendo o perigo máximo o da desligação (BRAGANÇA de MIRANDA, 2002, p. 260);

b) o problema das aporias e paradoxos latentes. No sentido de reunião de contradições como indivíduo/colectivo, consumo/austeridade, emoção/razão, cooperação/competição, comunicação/distracção, ou de forma mais sistemática entre a globalização e a anti-globalização, crise do casamento da democracia e do capitalismo, entre a política e a economia;

c) o problema das afecções. Entre o pessimismo, o optimismo e o cinismo (ESTEVES, 2003, p. 185,197);

d) o problema da potência;

e) o problema do limite. Na consideração meta-federal já intuída por Kant, as novas realidades, como por exemplo o e-government ou a problemática transnacional ecológica, colocam num horizonte plausível, a possibilidade de enfrentar os desafios-limite: a federação mundial e a democracia directa (em patamares diferenciados).

Desta forma, dir-se-ia que o problema central da ciberpolítica se constrói na confluência do problema do espaço público e da potência, no sentido em que o movimento de explosão (BRAGANÇA de MIRANDA, 1997, p.173-176) e implosão se dá sob o pressuposto geral da expansão (LÉVY, 2003, p.216).

O constrangimento conceptual da Ciberpolítica ao espaço público indica no essencial a sua definição mais premente: crise do espaço público. A tentativa de circunscrever a Ciberpolítica como território problemático e complexo pode ser então simplificado para lá das implicações de crise anteriormente analisadas, como espaço de crise, não da representação, mas crise da mediação, crise das ligações. “ A ligação entre a política e o espaço público, que sustentou durante duzentos anos a interacção dos modernos, volta a instabilizar-se sob o impacto de novas forças e tendências, potenciadas pelas novas tecnologias da informação (…) o espaço público nunca se reduziu à oposição entre público e privado, nem à simples mediação entre sociedade civil e Estado, nem mesmo à representação (…) o espaço público é acima de tudo um espaço de mediação” (BRAGANÇA de MIRANDA, 1997, p.155, 156). A descompensação operada pelo problema da velocidade, descompensação entre a temporalidade política e a instantaneidade das tecnologias contemporâneas, coloca as condições de visibilidade da política refém da tecnologização das formas de mediação. Esta natureza paradoxal do espaço público, na sua instabilidade essencial é definitória do espaço público como “abstracto e deslocalizado, tendo limites extremamente flutuantes” (BRAGANÇA de MIRANDA, 1997, p.158). Esta fragmentação do espaço público revela a falência do controlo da temporalidade, exibindo a impossibilidade da representação como estabilizadora da experiência contemporânea. Exibição essa que convoca dois movimentos essenciais de interpretação face ao espaço público, duas tendências do pensamento contemporâneo face à emergência da Ciberpolítica:

a) Uma tendência que interpreta o problema da Ciberpolítica como impotência, ou seja, a construção de uma crítica da política enquanto processo de construção adiado, e do adiamento. Impotência da política face ao movimento desagregador e fragmentário do presente, manipulação invisível.

b) Uma tendência que interpreta o problema da Ciberpolítica como potência, ou seja, como espaço de oportunidade de construção e resistência face ao presente, possibilidade de edificação de um espaço político novo, identificando novos devires e horizontes de possibilidades.

Assim, tratar-se-á separadamente estas duas tendências fundamentais que tentam dar conta de um processo de transformação, enquanto duas tentativas diferenciadas de compreensão do fenómeno político, espelho da profunda mudança em curso, compreensão da transição, do devir histórico-político, ao qual é preciso fornecer chaves de leitura.

A determinação da impotência da Ciberpolítica, que também poderia ser exposta enquanto implosão do espaço público, vive na sombra da destituição da cidadania para o consumo, suspeita do presente enquanto manipulação da vida, passagem a um estado de suspeita generalizada. Esta suspeita radica na deterioração do espaço público enquanto comum, político portanto, fragmentação e destituição, esvaziamento da democracia enquanto participação. Arendt dá conta também deste processo de impotência geral que promove estratégias quasi-totalitárias de isolamento e alienação, anulação da potência dos homens arrastados para a indiferença, incapacidade de criar resistência. Esta análise do animal laborans, percepção contígua à de Agamben de homo sacer, significa a identificação na modernidade e contemporaneidade da política como local afastado e distante, espaço dialógico longínquo. O homem destituído da esfera pública e da palavra, periga na sua liberdade, na sua dificuldade de libertação face às esferas laborans e faber, limitação do político face às determinações determinísticas da sobrevivência do trabalho e do consumo generalizado. Do homo laborans, ao homo sacer, ao homo spectator. Foi Guy Debord quem identificou mais claramente esta tendência do espectáculo e de espectador na contemporaneidade, assistência refém do naufrágio do presente e verificação de impotência. Na crise da relação entre tempo (VIRILIO, 1997, p.15) e imagem (VIRILIO, 1993, p.19,27,29), verificamos que a cultura mediática, e a sua atracção fatal pelo espectáculo, revelam uma estratégia de gestão do tédio e da distracção, sendo que a não-neutralidade da tecnologia é sempre assistida por uma visão (VIRILIO, 1993, p.27) espectacular e veloz (VIRILIO, 1997, p.16, 17), na constituição de uma mecânica do desejo em toda a sua extensão. Poder-se-ia dizer que esta deslocalização da política não é ingénua face aos dilemas do contemporâneo.

Esta passagem à contemporaneidade é representada claramente por Deleuze, que expandindo o conceito Foucauldiano de Biopolítica, dá nota daquilo que intitula “sociedades de controlo”. Se com Foucault o poder se estabelecia como a entrada da vida ela mesma no jogo do poder político, nos seus múltiplos mecanismos de constituição, a sociedade de controlo é uma expansão dessa operação, mas já não confinada ao seu trabalho institucional de normalização e docilização dos corpos, entre o saber e o poder, mas numa estratégia de invisibilidade e disseminação, que não habitando totalmente nenhum espaço, preenche-os a todos. Vigilância infinita, premonição Orwelliana não-confinada. “O controlo é de curto prazo e de rotação rápida, ao passo que a disciplina era de longa duração, infinita e descontínua. O homem não é mais o homem confinado, mas o homem endividado” (DELEUZE,2003,p.244). A Ciberpolítica herda esta dimensão progressiva a que Deleuze qualifica de controlo, de vigilância, espaço infinitamente fechado no aberto, por contraponto de mudança às sociedades de disciplina onde “não se parava de recomeçar (da escola à caserna, da caserna à fábrica), enquanto nas sociedades de controlo nunca se termina nada(…) Trata-se apenas de gerir sua agonia e ocupar as pessoas, até a instalação das novas forças que se anunciam. São as sociedades de controlo que estão substituindo as sociedades disciplinares. “Controlo” é o nome que Burroughs propõe para designar o novo monstro, e que Foucault reconhece como nosso futuro próximo. Paul Virillo também analisa sem parar as formas ultra rápidas de controlo ao ar livre, que substituem as antigas disciplinas que operavam na duração de um sistema fechado”(DELEUZE, 2003, p.240). Apesar deste ponto de vista estruturado em “exemplos frágeis”, como nos diz Deleuze, servir para o anúncio de um novo tipo de dominação (DELEUZE, 2003, p. 245) que agora está a começar, serve-nos também no sentido de assinalar uma tonalidade. De facto, outra possível derivação ou extensão, segundo uma lógica do controlo e da dominação, seria a de psicopoder (STIEGLER, B., Biopower, psychopower and the logic of the scapegoat). Na análise de Stiegler, as mutações tecnológicas prendem-se com uma ruptura e desajustamento, que constitui a contemporânea sociedade consumista biotecnológica (STIEGLER, 2006, p.26, 216), identificada geralmente como hiperindustrial. Numa batalha de fluxos (STIEGLER, 2006, p.21), o objectivo central desta nova economia libidinal é a captação da atenção, na sincronização das consciências para a constituição da telecracia enquanto dispositivo para controlar o comportamento. Ou seja, “a potência do capitalismo contemporâneo procede do controlo simultâneo da produção e do consumo que regula as actividades das massas na sua totalidade” (STIEGLER, 2006, p.143, 146). Se a captação do desejo obedece por um lado a uma sofisticada estratégia do choque, que enquanto experimentação socio-económica procura a amputação do coração do político na possibilidade constitutiva ficcional do real, por outro amplia as tecnologias da solidão num uso das mnemotecnologias que pretendem anular uma lógica da singularidade, confundindo a dialética da regra e da excepção. Numa sociedade do saber e do lazer, onde o consumidor assume o papel central, Stiegler procura assinalar “uma mutação histórica do capitalismo através da qual ele cultiva uma tendência a totalizar a existência, isto é, a reduzi-la à subsistência” (STIEGLER, 2006, p.167). A impotência revela-se através da aporia, onde a falta de futuro faz “recear que a sociedade hiperindustrial conduza novamente os seres humanos aos piores extremos” (STIEGLER, 2006, p.141). A identificação dos perigos e paradoxos presentes na ligação económico-política que a cibercultura parece fazer convergir, promove, no entanto, diferentes percepções das tonalidades afectivas da ciberpolítica. Nos estudos de Lévy em direcção a uma circunscrição do advento de um novo espaço ciberdemocrático (embora os efeitos do fenómeno ciberpolítico não incidam apenas no espaço democrático, como no exemplo máximo da Primavera Árabe), dá-se uma revisão política do ciberespaço (LÉVY, 1998, p.44, 45), enquanto universal sem totalidade, à luz de uma nova concepção de espaço público. Esta mutação contemporânea está ao abrigo da inteligência colectiva (LÉVY, 2003, p.31) como motor da mudança. Trata-se de uma revisão formal, ou seja, de que forma o fenómeno da ciberpolítica, no advento das suas múltiplas incidências, afecta a concepção de Estado numa temporalidade crítica, de mutação? De facto, a centralidade do conceito de crise dá-se pela afectação sistemática das transformações do Estado Moderno, enquanto crise das suas características fundadoras. Por fundacional entende-se o pressuposto contratualista legitimador do Estado, e consequente abalo sísmico no que se poderia designar por crise conceptual, estrutural, institucional e funcional (STRECK, BOLZAN de MORAIS, 2006, p. 137). De um ponto de vista conceptual, a crise do Estado parece contagiar todos os conceitos clássicos associados (soberania, povo e território/ nação) dada a dispersão dos centros de poder, atitude centrífuga, onde se verifica uma “superação da supremacia da ordem estatal por outros loci de poder”(STRECK, BOLZAN de MORAIS, 2006, p.139). Associado a isto, uma crise ao nível do modelo onde “o projecto neoliberal busca nas insuficiências do État-Providence um retorno a um modelo reduzido da ordem estatal” (STRECK, BOLZAN de MORAIS, 2006, p. 142), obrigando a uma crise estrutural, na qual o problema económico e o conflito de visões vão determinar a disseminação do problema aos níveis constitucional e funcional. Sob a sombra de uma teoria geral do Estado se estar a transformar numa teoria geral da crise do Estado, a corrosão da noção de soberania estreita-se na tensão entre o desaparecimento do Estado-Nação face à constituição dos blocos políticos federais ao nível global (STRECK, BOLZAN de MORAIS, 2006, p. 148). A exigência de repensar o Estado face à torrente de simultâneas falências (LÉVY, 2003, p.39) da sua própria estrutura, implicará a assunção da sua crise na acepção clássica, exigindo por isso repensar contemporaneamente o espaço político como excessivo ao conjunto das suas formas particulares (de/em crise), afirmação de um espaço de crise estrutural, onde o próprio espaço deve ser interrogado. Neste sentido, Lévy propõe uma leitura teórica do Estado transparente, universal e planetário (LÉVY, 2003, p.172), como devir do presente, que revela as tensões da mudança, em direcção a uma nova forma capaz de “aplicar uma governação adaptada à civilização planetária da inteligência colectiva” (LÉVY, 2003, p.171). Uma proposta de construção da Ciberdemocracia (LÉVY, 2003, p.180, 181), onde a desterritorialização implica uma maior liberdade, com consequências centrais na questão da identidade. Neste cruzamento chave do presente e do futuro, assistimos aos desafios da ciberpolítica, onde a sincronia característica do espaço virtual alimenta a complexificação da compatibilidade entre identidade fixa e móvel. A falência do Estado-nação anuncia e presentifica a mudança em direcção a uma nova universalidade, onde a “democracia participativa directa deveria ser pensada em complemento para uma democracia representativa mundial” (LÉVY, 2003, p.186,187). Assim, é através da exploração do conceito de ciberpolitica nos seus diferentes matizes que vemos surgir a noção de crise como conceito operativo que permite repensar o espaço público e, por consequência, a hipótese de uma nova forma, nesse cruzamento da potência e da impotência política. Neste sentido, tentou-se desenhar essas complexidades e dilemas do presente que exigem coragem (ARENDT, 2006, p.168) ao pensamento e à acção. A actual crise do mundo político ocidental parece querer assinalar esse choque de instalação do novo paradigma ciberpolítico. Mais do que uma aporia, trata-se de uma encruzilhada que, no seu dispositivo natural de desnorte, abraça a hesitação. Talvez seja um choque de expectativas. Talvez seja apenas o choque da (possível) mudança de paradigma. Sabemos pela história que o nosso confronto fundamental é com o inimaginável, tal como para o homem da idade média seria impensável a organização política do presente. Assim, é a liberdade que funda a imaginação política. Como pensar o novo? Será que a ciberpolítica, na sua promessa de constituição de uma segunda natureza, não se reconduz apenas uma lógica circular das aparências? Quais as possibilidades efectivas de uma mudança substancial? Poderá a possibilidade de rompimento do automatismo (ARENDT, 2006, p.180) do eterno retorno, e do aborrecimento do novo, potenciar essa segunda natureza em direcção a uma nova antropologia? Ou estaremos apenas a assistir a uma mudança de medium que pela sua novidade consegue confundir a liberdade e a alienação, numa nova vontade de submissão radicada na necessidade de distracção? De facto, indiscutivelmente, a técnica e os novos media são os personagens conceptuais políticos centrais deste início do séc. XXI. Sob os desígnios presentes do paradigma federal, temos como indicações para o futuro a possível aplicabilidade e expansão do conceito de ciberpolítica, ao encontro das múltiplas investigações em curso sobre os fenómenos políticos da última década, que na correspondência às linhas gerais, vão construindo sub-determinações e conceptualizações em torno dos binómios de cidadão/participação, votação/eleição, manifestação/organização, gestão/burocratização, ou a fenómenos localizados de implicação e graus de impacto político. Esta expressão forte do choque ciberpolítico, na forma de múltiplas perspectivas e ferramentas de análise, percorrerá com toda a certeza uma revisão de todo o edifício categorial jurídico-político, bem como das figuras gerais e implicações (sobre questões filosóficas tão essenciais como o amor, a propriedade, o trabalho) que uma nova forma de sociabilidade acarreta. Nada disto valida, porém, que as novas ferramentas sejam capazes de construir o novo. Talvez tenhamos que suspeitar. Talvez a saída digital da caverna, não seja mais que a ilusão agrilhoada das sombras às paredes dos milhões de apartamentos no mundo. Se ao novo pode sempre pertencer à desconfiança, ao político pertencerá sempre a possibilidade do começo.

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