Wendel Antunes Cintra é doutorando em Ciência Política no IESP-UERJ.
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Resenha do livro:
JONAS, Hans. (2006) [1979]. O Princípio Responsabilidade: Ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro, Contraponto/Editora PUC-Rio.
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Em 1964 o cineasta estadunidense Stanley Kubrick lança o excelente filme Dr. Fantástico (cujo título original é um pouco mais longo e sarcástico: Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb), no qual satiriza a situação absurda a que havia chegado a humanidade após a crise dos mísseis de 1962. De um lado, um surpreendente e assustador desenvolvimento tecnológico-militar, capaz de destruir por dezenas de vezes o planeta Terra. De outro, burocratas, conselheiros e líderes políticos (boa parte deles fanáticos e estúpidos) movendo-se no interior da delicada geopolítica que caracterizava a disputa entre EUA e URSS.
No auge da Guerra-Fria, o filme alerta sobre o problema de um duplo processo de autonomização que estava em curso: primeiro, autonomização dos órgãos de “Segurança Nacional”, responsáveis pelo monitoramento do arsenal nuclear dos EUA, cada vez menos dependentes de instâncias políticas de controle; segundo, um processo de autonomização da própria tecnologia de guerra, que dispunha de dispositivos automáticos de ação e reação militar em boa medida independentes do controle humano. Exemplo trágico-cômico daquela situação era a “Máquina do Juízo Final” que havia sido criada pelos russos para responder, independente de qualquer tipo de acionamento humano, a uma possível agressão dos EUA, e tinha o poder de destruir toda a humanidade (exceto aqueles que conseguissem se esconder da radiação nas minas subterrâneas durante os 100 anos seguintes!). A “Máquina do Juízo Final” servia para intimidar o inimigo militarmente mais bem preparado. Era a última invenção do criativo espírito humano.
A ficção cinematográfica de Kubrick reproduz na tela a inédita condição humana inaugurada com a invenção da bomba atômica. Reconhece que de fato vivemos diante do risco iminente de uma guerra global, o que em última instância pode levar ao desaparecimento da espécie humana.
Do cinema à filosofia, o que salta aos olhos é o paradoxo de que essa vulnerabilização do futuro do homem e do planeta só foi de fato possível com o desenvolvimento da ciência e da técnica. Precisamente a ciência e a técnica que, pelo menos desde o século XVIII, prometiam realizar o projeto radical de emancipação do homem. É certo que, ainda no final do século XIX, com Nietzsche e Freud, as crenças de um futuro de felicidade universal com base no progresso – tal como nos haviam prometido as diversas “filosofias da história” no Iluminismo e que foram tão bem sintetizadas por Condorcet – já se mostravam relativamente abaladas. Contudo, é no século XX – particularmente com a experiência traumática da Segunda Guerra Mundial – que se torna explícito e perturbador o potencial destrutivo que o desenvolvimento técnico-científico havia alcançado. Talvez não seja por acaso que algumas das reflexões mais significativas de crítica à modernidade, às filosofias do progresso e às relações intrínsecas entre técnica e dominação fossem elaboradas por emigrados alemães que haviam fugido do nazismo. Exemplos emblemáticos são os trabalhos de pensadores como Hannah Arendt (1906-1975) e Theodor Adorno (1903-1969) que, a despeito das diferentes tradições intelectuais, enfatizam o lado “sombrio” da modernidade e do avanço técnico-industrial.
Menos conhecido que estes, contudo, não menos importante, é o trabalho do filósofo alemão Hans Jonas (1903-1993). Assim como Arendt, ele havia sido aluno e discípulo de Heidegger antes da ascensão do nazismo. Tal como a autora de “Origens do Totalitarismo”, Jonas também emigrara para os Estados Unidos onde escreveu trabalhos que encontram-se na fronteira entre a filosofia e a política. É o caso de O Princípio Responsabilidade: Ensaio de uma ética para a civilização tecnológica, publicado pela primeira vez em 1979, livro no qual Jonas elabora uma reflexão acerca daquele ineditismo filmado por Kubrick, qual seja, a real possibilidade de autodestruição da espécie humana, possibilitada tanto pela retração da política quanto pelo desenvolvimento da técnica. As questões que o livro suscita são de fato inquietantes: é possível uma ética que oriente a conduta dos homens nesse mundo caracterizado pelo risco? Como evitar a catástrofe anunciada pelas armas de destruição em massa e pela exploração desmedida dos recursos naturais? Como preservar a continuidade da espécie e da condição humana no futuro? Quais são as conseqüências da crença utópica de que a técnica libertará o homem das contingências da natureza e do reino das necessidades? O livro de Jonas constitui uma tentativa séria e bem elaborada acerca dessas questões e leitura obrigatória para aqueles que se dedicam a pensar os paradoxos das sociedades técnico-industriais contemporâneas.
Uma das primeiras constatações presentes no trabalho de Hans Jonas é de que a especificidade da técnica contemporânea implica uma reelaboração dos padrões éticos tal como haviam sido pensados pela tradição filosófica. Primeiro porque, diferentemente de outros períodos históricos, a contemporaneidade não possui nenhuma garantia de continuidade da existência humana no futuro. De acordo com ele, a “presença do homem no mundo era um dado primário e indiscutível” e portanto não era considerado pelos sistemas éticos precedentes. Contudo, hoje, preservar a existência humana torna-se um imperativo ético fundamental, sobretudo pelo fato de que tal existência tornou-se extremamente vulnerável (JONAS, 2006, p. 45).
O desenvolvimento técnico, mais do que relativizar a continuidade da existência humana (já que viabiliza a destruição da espécie), também potencializa os meios pelos quais os homens exploram a natureza. O poder do homem sobre a natureza nas condições modernas é infinitamente superior a todas as civilizações antigas, o que faz com que as conseqüências de suas ações sejam cada vez mais irreversíveis e imprevisíveis. De acordo com Jonas, pensar em uma orientação de conduta no interior desse quadro, onde a exploração dos recursos naturais canalizados para o consumo de massa produz a destruição de ecossistemas inteiros, implica abandonar preceitos éticos referidos apenas ao âmbito das relações entre os homens (o que ele denomina “ética do próximo”). Segundo o autor, não é mais possível uma ética que desconsidere as conseqüências das ações humanas sobre o meio-ambiente, no presente e no futuro.
O problema está em que o homem, dotado pela técnica de um imenso poder sobre a natureza, não é capaz de prever a grande maioria das conseqüências futuras de sua ação no presente. O autor recomenda, neste caso, prudência, ou melhor, a palavra é responsabilidade:
quando, pois, a natureza nova do nosso agir exige uma nova ética de responsabilidade de longo alcance, proporcional à amplitude do nosso poder, ela então também exige, em nome daquela responsabilidade, uma nova espécie de humildade – uma humildade não como a do passado, em decorrência da pequenez, mas em decorrência da excessiva grandeza do nosso poder, pois há um excesso do nosso poder de fazer sobre o nosso poder de prever e sobre o nosso poder de conceder valor e julgar. Em vista do potencial quase escatológico dos nossos processos técnicos, o próprio desconhecimento das conseqüências últimas é motivo para uma contenção responsável – a melhor alternativa, à falta da própria sabedoria (ibdem, p. 64).
Os novos dilemas da civilização tecnológica derivam do fato de que os homens podem fazer muito (e as conseqüências do seu fazer estão além de seu controle), podem prever pouco e podem julgar menos ainda. É esta alteração substantiva na natureza do agir humano nas sociedades tecnológicas que demanda uma ética completamente distinta das éticas tradicionais. A proposta de Jonas de uma “ética da responsabilidade” procura dar conta desses novos questionamentos: é justo que a geração presente goze de todos os benefícios da técnica e dos recursos naturais existentes, inviabilizando ou tornando extremamente precária a vida das gerações seguintes? Nós temos responsabilidades para com as gerações futuras? Quais são os direitos daqueles que ainda não nasceram? Essas são questões éticas fundamentalmente contemporâneas, já que nenhuma outra civilização teve de fato os meios que permitissem que a exploração da natureza alcançasse um nível tal que pudesse colocar em xeque a própria continuidade da espécie humana na Terra.
Isto posto, a “ética da responsabilidade” orienta-se a partir de um novo tipo de imperativo para ação, referido ao futuro. Trata-se de uma reelaboração contemporânea do imperativo categórico kantiano: “Aja de modo a que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma autêntica vida humana sobre a Terra”. O argumento de Jonas é de que devemos viver hoje de maneira a possibilitar a continuidade da vida humana e da condição humana no futuro. É a responsabilidade para com o outro, para com a espécie e para com o futuro da espécie que deve orientar a ação dos homens na situação de vulnerabilidade em que se encontram no presente. O poder da técnica implica novas responsabilidades não só pelo perigo de ser utilizada pelo “mal” (como no caso da bomba atômica), mas principalmente pela potencialização de suas conseqüências que acabam por ultrapassar o âmbito das relações sociais propriamente ditas ou mesmo de uma comunidade política específica para se alastrar espacialmente por todo o globo terrestre e temporalmente por décadas ou até séculos:
o que não se compreendera é a nova expansão da responsabilidade sobre a biosfera e a sobrevivência da humanidade, que decorre simplesmente da extensão do poder sobre as coisas e do fato de que este seja, sobretudo, um poder destrutivo. O poder e o perigo revelam um dever, o qual, por meio da solidariedade imperativa com o resto do mundo animal, se estende do nosso Ser para o conjunto, independentemente do nosso consentimento
Entretanto, o fato é que essa “ética da responsabilidade” contrasta com tradições filosóficas e visões de mundo arraigadas na modernidade ocidental que, segundo Hans Jonas, fundamentam-se na idéia de que o saber e a técnica devem ser instrumentalizados para a dominação da natureza e para a melhoria das condições de vida dos homens. Essa perspectiva, formulada inicialmente por Francis Bacon está presente em boa parte das filosofias do progresso. Mas é na elaboração do ideal utópico comunista que ela encontra sua definição mais bem acabada. O autor propõe então desconstruir a crença na utopia de que o desenvolvimento irrestrito da técnica libertará os homens do “reino das necessidades” e produzirá a felicidade humana na Terra. A crítica de Jonas neste ponto se dirige ao ideal utópico elaborado por Ernst Bloch (1885-1977) em seu Prinzip Hoffnung (Princípio Esperança, escrito entre 1954-1959).
Hans Jonas critica o antagonismo radical entre “reino da necessidade” e “reino da liberdade”, veiculado pela utopia de Bloch, baseado no suposto de que o “reino da liberdade” apenas seria realizável com a superação ou diminuição significativa do “reino das necessidades”. Em outras palavras, a crença utópica consiste na idéia de que o avanço tecnológico possibilitaria aos homens superar o trabalho alienado (orientado para finalidades exteriores) e que o trabalho útil seria realizado fundamente por um sistema de produção automatizado. O suprimento das necessidades demandaria um contingente mínimo de trabalhadores e a coletivização da produção e de seus resultados beneficiaria toda a sociedade. A imagem utópica de Bloch é de uma sociedade sem classes, liberta do fardo do trabalho como necessidade, em que todos os homens (ou a grande maioria deles) dispõem de tempo livre para desenvolver suas capacidades da maneira como melhor lhes convém.
Contudo, a realização dessa sociedade utópica, argumenta Jonas, nos aproximaria mais do pesadelo que de um sonho. Mas por quê? Primeiro, explica o autor, porque a realização do ideal utópico de uma sociedade global que goze dos benefícios da abundância e do lazer tal como previstos pela utopia implicaria em uma liberação tal da técnica e de um consumo de energia que dificilmente o planeta Terra poderia suportar. O problema está na insustentabilidade do projeto de universalização do nível e do estilo de vida dos países desenvolvidos para todos os 6 bilhões de seres humanos que habitam o planeta. De acordo com ele, a demanda por um aumento do bem-estar médio deve ser abandonada em favor de uma redistribuição global das riquezas, o que só seria possível com a redução do consumo e do nível de riqueza nos países ricos.
Entretanto, segundo Jonas, não é só em relação ao problema ambiental e demográfico que a realização da utopia é indesejável, mas também – e principalmente – porque ela torna supérflua a existência do homem na Terra. A eliminação do “reino da necessidade”, tal como reivindica Ernst Bloch, retira do homem sua própria dignidade e valor ao negar o acesso a atividades de utilidade social (por exemplo, substituindo o trabalho pelo hobby) e o espaço no qual os homens são capazes de demonstrar seu valor e sua própria identidade (ibdem, p. 328-29). Para Jonas, o ideal utópico baseia-se em premissas ontológicas que negam toda a experiência pregressa do homem, afirmando a “inautenticidade” do homem concreto, tal como este existiu até hoje. A utopia acredita em uma alteração radical da “natureza humana” a partir da alteração das formas de organização sócio-econômicas que engendrarão um “novo homem”, completamente distinto dos anteriores e que será essencialmente “bom”.
Contra a concepção de Bloch que afirma que o homem “ainda não é”, ou seja, que o homem tal como o conhecemos é um Ser inacabado e que apenas na sociedade utópica ele se constituirá de maneira autentica, Jonas argumenta acerca da ambivalência que caracteriza a natureza humana e que qualquer projeto de futuro deve levar em conta essa incontornável ambivalência (ibdem, p. 345-46). Ao reivindicar o abandono da utopia, Jonas não está negando a falsidade ou inutilidade de pressupostos éticos ou dos ideais do bom e do justo. O que ele afirma, é que não é sensato nutrir expectativas sobre uma natureza humana unívoca e essencialmente boa a se realizar no futuro, ao preço de nos ludibriarmos por um otimismo extasiado.
A “ética da responsabilidade”, proposta por ele, procura estabelecer limites ao ímpeto tecnológico das sociedades modernas, mas também procura fazer recuar o horizonte de expectativa e desejo que os homens contemporâneos projetam em relação às graças prometidas pela técnica. Ao denunciar as afinidades entre a utopia de Bloch e esse ímpeto autodestrutivo do desenvolvimento irrestrito da tecnologia, Jonas reivindica um “pisar no freio” nas ações e nas demandas psicológicas orientadas para o aumento do consumo e do bem-estar material.
Desnecessário dizer que tal proposta ecoa – da esquerda à direita – como conservadora ou como uma anacrônica aversão ao “progresso” da humanidade. Ela parece antes de tudo ser antipopular, tanto nos países ricos quanto nos pobres. Nos primeiros, porque conduz a uma diminuição do bem-estar material que estes já alcançaram. Nos segundos, porque implica em reduzir as expectativas de realizar na periferia o mesmo padrão de vida dos países ricos. É de se lamentar o fato de que parece ser irrealístico hoje pensar em algum líder político cuja plataforma de governo seja reduzir a média do consumo ou o crescimento econômico de seu país em favor da distribuição da riqueza. Por razões óbvias, a agenda do crescimento econômico ainda continua central e é tomada – equivocadamente – como única forma de solucionar problemas como o desemprego e a pobreza.
Com efeito, a importância da reflexão de Hans Jonas na formulação de uma agenda ecológica deve ser ressaltada. O fortalecimento dos movimentos e dos partidos que defendem a preservação do meio-ambiente e a introdução de políticas para incentivar formas de desenvolvimento sustentável, principalmente a partir dos anos 1980, parece demonstrar a formação não só de uma consciência ecológica, mas a consciência de que o modelo de desenvolvimento industrial-capitalista, turbinado pelo desenvolvimento técnico-científico em um sistema global de competição internacional, caminha a passos largos rumo a destruição do planeta. Entretanto, a penetração dessa agenda no debate público tem, na prática, evidenciado uma atitude esquizofrênica de uma sociedade que fala em preservação ambiental ao mesmo tempo em que se rende de maneira inédita à lógica do mercado e do consumo de massa em âmbito global.
O livro de Hans Jonas nos convida a pensar acerca do paradoxo contemporâneo que consiste em conciliar demandas de bem-estar material e a preservação dos recursos naturais que possibilitem a existência das próximas gerações. As dimensões que esse paradoxo tem assumido recentemente demonstram a intuição que Jonas possuía quando formulou essa problemática ainda no final dos anos 1970. Se estivesse vivo ainda hoje, o autor alemão provavelmente faria uma avaliação pessimista quanto a nossa possibilidade de resolver tal dilema. Desde que foi escrito o livro de que aqui nos ocupamos, o mundo viu acelerar não só o potencial destrutivo que possui, mas a destruição de fato da natureza. Por outro lado, Jonas poderia encontrar alguns resquícios de “responsabilidade” quando, com exceção dos EUA, mais de 180 países aprovaram o Protocolo de Kyoto, que limita a emissão de gás carbônico. Responsabilidade precária esta, já que, invertendo a lógica, o maior poder (EUA) se mostrou o menos disposto a assumir a responsabilidade para com o futuro do planeta. Contudo, nesse caso, o problema não está na ética proposta pelo filosofo, mas no político que, como Maquiavel já havia observado, possui uma ética sui generis. Pior para os terráqueos que um dia ainda vão nascer.