Luiz Jorge Werneck Vianna é professor do Departamento de Sociologia e Política da PUC-Rio.
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Esta conferência do professor Luiz Jorge Werneck Vianna do IUPERJ, proferida no evento organizado pelo CEDES e pelo Laboratório de Estudos sobre a República Brasileira, cujo título foi “Os 20 anos da Constituição da República de 1988?, teve sua transcrição sob o respeito ao estilo de oralidade.
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A idéia com a qual eu me aproximei do problema foi a do contexto da passagem dos anos setenta para os anos oitenta, mas em que linha favorável ao tema da representação política, eu poderia fazê-lo? Movimentos sociais, partidos políticos, esfera pública. Esses eram os temas prevalecentes no final dos anos setenta e dos anos oitenta. Peguem a biografia, usem a biografia das ciências sociais. O que está lá? Partidos políticos e movimentos sociais. Esse é o momento da Ruth, é o momento do Fernando Henrique, é o momento do CEBRAP, momento também do IUPERJ com o tema dos partidos políticos, Olavo Brasil.
Qual é o perfil das grandes personalidades envolvidas? Vamos pegar a maior delas: Ulysses Guimarães. É esse o perfil: partidos políticos e representação política. Qual é o papel da esquerda nesse momento? Aqui e alhures, em qualquer parte, essa linhagem nobre, a linhagem, digamos, de 1789, a linguagem da soberania popular. Não é isso? Esse é o ponto. Aí estão confrontados a pensar e o resultado não traiu isso. De modo algum traiu essa cultura, essa expectativa, mas apareceu outro elemento. Não vou dizer fantasmal, porque seria pejorativo. Mas apareceu algo fora do eixo, na linguagem shakespeariana. Fora do eixo de verdade? Essa é uma pergunta. Mas na aparência, na imediaticidade da aparência? O que a esquerda tinha a ver com o tema da revolução processual do direito? Qual a reflexão estocada nos círculos progressistas da sociedade brasileira sobre essa questão? Pouquíssima.
No entanto, começavam os trabalhos sem que essas personalidades, temas e idéias fossem deslocadas em qualquer momento. Ulysses reinou do primeiro ao último dia nessa constituinte, com a sua personalidade democrático-liberal exposta entorno do eixo da República.
Então o resultado, o que se viu? Que havia uma idéia a dois. Teve a sua presença muito poderosa nessa constituinte, que foi muito desconfiada do tema da representação. Por bons e modernos pretextos, sentidos, e até por preconceitos antigos, vindos lá do nosso passado.
Essa foi a inspiração de uma ação de intelectuais que foi recortar um mundo em que tudo só prometia a desordem, só prometia a selva, a guerra, a barbárie. O nosso tema de fundação é a luta contra a barbárie. Contra os sentimentos indomados, contra os interesses descontrolados.
E o tema que organizou essa cena foi a Regência. A Regência foi uma hora de liberdade, mas foi uma hora de descontrole, de selvageria, uma hora em que a barbárie nos rondou.
Arranjou-se um público que se institui entre nós a partir deste grande desafio: o privado, o privatismo, o particularismo. Escondem o quê? Escondem a barbárie. O demônio contra o qual devemos nos organizar.
Direito, a ação concertada, pedagogia, o autoritarismo ilustrado brasileiro. É complicado falar essas coisas porque há sempre a disposição do discurso de que se tivéssemos feito o caminho das liberdades desde sempre, que queriam os nossos liberais mais, atuantes, alguns deles, pelos menos, porque Tavares Bastos, por exemplo, jamais quis o enfrentamento duro, fez a crítica do autoritarismo, mas jamais aceitou as razões dos liberais de fato, jamais se alinhou de fato, jamais quis refazer o caminho da Regência. Esse foi um dos maiores liberais brasileiros, não é isso?
Os que vieram na seqüência, seqüência que ali estavam com ele, aqueles que jamais ousaram passar algumas fronteiras. Falava-se muito fartamente com o pampa, e deságua-se a barbárie, os caudilhos, o militarismo que era próprio da vida autárquica rural brasileira, lá nos latifúndios perdidos.
Bem, eu vou ficar com essa consideração para fixar bem a prevalência do ponto do tema dos intelectuais, o tema dos direitos como dimensão diretora, organizadora, que vai reaparecer de maneira muito forte na cena republicana a partir de 1988. Uma institucionalização pelo direito das duas principais variáveis de uma ordem capitalista, de uma ordem burguesa, tal como a nossa avançava para ser. Mercado: mercado de bens e mercado político, a criação da justiça do trabalho e a criação da escola. Os seus intelectuais, com sua enorme aparelhagem, e de lá para cá não fizeram senão crescer. Temos aí: Direito, intelectuais, prevalência do público, desse mundo solto que não se organiza. A organicidade precisa da ação pedagógica com a âncora divisora do Direito. Precisa de um elemento coativo forte. E essa foi uma das marcas mais poderosas da modernização autoritária burguesa brasileira, escorada em dimensões cruciais da vida social, instituições originárias no mundo do direito. Uma greve de trabalhadores, por exemplo, e a Justiça do Trabalho que dizia, julgava, arbitrava o valor da força de trabalho com efeito normativo que se superpõe à capacidade de um mundo mercantil onde se deveria regular o valor da força de trabalho. Isso em tudo, mas, se nisso, em tudo. Se regula o valor mercantil da força de trabalho, o que resta? Quem se candidata à liderança posta na máquina sindical é o empresário e o controle do mercado político das eleições.
O que faz 88? Inverte o sentido dessa tradição. Instituições que nasceram para controlar e reprimir têm o seu sentido invertido, a serviço da cidadania. E o Ministério Público, personagem do Estado, repressor, que se torna, em 88, essa figura única na cena contemporânea mundial, um defensor posto a serviço dela mesma, enquanto instituição, dos valores da democracia e da conquista de direitos existentes e ainda a serem conquistados, especialmente através da ação civil pública, da ação popular, entre outros.
Eu penso que um bom lugar seria acrescentar a isso o tema do controle concentrado das leis que o constituinte também introduziu, fazendo da constituição um lugar de obra aberta, ainda em processo permanente. É uma aproximação que às vezes pode dar vertigens porque estamos próximos de 1843, a constituição do povo.
Essa proximidade é muito assustadora, pois estamos próximos de Rousseau. Trata-se de um processo sempre em movimento que vem tomando características imprevistas. Uma coisa é o desenho, é essa arquitetura, tal como ela está na carta de 88, outra coisa é como a estamos examinando aqui: os 20 anos da carta de 88, as novas práticas, a nova cultura, a nova bibliografia, a nova geração dos operadores. Mudaram os juízes, mudaram os promotores, mudaram os vértices dos tribunais. Esse é um processo apenas radiante? Não, não é. Mas é um processo que nos garante, por exemplo, entre outras coisas, de uma representação política mal conduzida, que tente levar a sociedade para onde ela não quer ir, que se desobrigue de realizar o que a sociedade disse que é fundamental para ela, tal como está estipulado nos preceitos fundamentais da Constituição que o Judiciário pode se pretender verificar se é para eles, que não se consiga, pode se pretender, há luta nesse campo, não há deserção.
Os preceitos constitucionais não restam como ação simbólica, lembram? Esse é um título de um livro de um grande autor, discípulo de com doutorado na Alemanha, Marcelo Neves, não é um autor pequeno aqui, é um grande autor. O que ele dizia? Que esses preceitos eram para constar de forma simbólica como sempre mostraram. Mas não foi assim que a sociedade se apropriou disso porque também há de se indagar a isso o que se cria, o que a sociedade tem feito com este pedaço de papel? Ela se apropriou dele, ela disse “isto é meu”. Peguem o começo da história das ADINS (Ação Direta de Inconstitucionalidade). Foi a esquerda, fora da sua cultura, que primeiro descobriu a sua importância como instrumento de manifestação política. De lá para cá, esses homens, em geral de formação republicana ortodoxa, como Fernando Henrique e Lula, vivem repetindo que a decisão da justiça não se discute. Isso virou um axioma na política brasileira.
Doravante, cumpridos vinte anos, para onde ela está indo que nós ainda não sabemos? Quais os riscos envolvidos aí? Um risco seríssimo manifestou-se no episódio Satiagraha em que os homens das corporações do Direito agiram como a vigilância do padrão moral da sociedade. Foi um conluio entre juízes, promotores, polícia e imprensa. Diante desse cochilo, não fica em pé, não há democracia que se sustente, não há opinião que consiga se manter firme o suficiente. Temos esse risco de uma relação mal resolvida entre representação política e representação funcional, que é, ao meu ver, o grande desafio a ser enfrentado, completado esses vinte anos. Como aproximar a República desta democracia?