Os 20 anos da Constituição da República de 1988, por Renato Lessa

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Renato Lessa é professor Titular do Departamento de Ciência Política da UFF.

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Esta conferência do professor Renato Lessa do IUPERJ, proferida no evento organizado pelo CEDES e pelo Laboratório de Estudos sobre a República Brasileira, cujo título foi “Os 20 anos da Constituição da República de 1988?, teve sua transcrição sob o respeito ao estilo de oralidade.

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Parto da análise de Werneck Vianna, do reconhecimento de uma novidade que se pôs no debate brasileiro, que é a relevância de operadores do Direito Constitucional na configuração pública e constitucional do país, materializada na feitura da Constituição de 88, para muita surpresa nossa.

Um dos modos de avaliarmos o quadro político brasileiro em torno da Constituinte é o próprio acompanhamento do processo que se inicia com a eleição para a Assembléia Constituinte. Temos que prestar muita atenção nele. As nossas lentes de observação estavam orientadas para outros objetos, mais tradicionais, habituais. E este tema acabou por se impor à nossa consideração. E o atalho que escolhi para me aproximar desse tema tem a ver com uma questão de natureza mais filosófica, abstrata, mas absolutamente convergente com as questões que o Werneck tem trazido. Se a filosofia for pensada por uma tradição intelectual constituída por crenças, o político dessa tradição filosófica tem a ver com a capacidade dessas crenças de alguma maneira configurar a experiência comum e ordinária dos seres humanos?

A questão dos operadores das crenças, dos processos de decantação dessas crenças, aparece como questão absolutamente crucial. Não nos basta suspeitar que a filosofia política trabalha com invenções, imagens de natureza humana, imagens de sociedade, que são postas numa espécie de mercado simbólico à disposição da humanidade. É fundamental tentar entender que, se isso é verdade ou se isso é plausível, há de se acrescentar a essa questão a seguinte pergunta: por meio de que tipo de operador prático, historicamente configurado, essas imagens de mundo acabam configurando de maneira concreta, tangível, experimentos coletivos? A partir desse tipo de questão, o tema da Constituição aparece também como incontornável. Se a prosódia da Constituição tem a ver com o Direito Constitucional, a semântica da Constituição tem a ver com a filosofia política. E, nesse sentido, o Direito Constitucional pode ser pensado como operador fundamental de decantação de questões que não são autóctones ao Direito Constitucional – que vêm da vida, da religião, da experiência, da filosofia política, com muita freqüência – e que encontram em formas técnicas, em soluções de natureza pragmática dispostas na tradição do Direito Constitucional, uma maneira de configurar normas, ordenamentos sociais e ordenamentos coletivos dessa natureza. Minha aproximação tem a ver com esse tipo de ângulo. A partir daqui eu gostaria de apresentar para vocês algumas idéias. Muitas delas estão neste capítulo de livro que eu e Werneck acabamos por freqüentar [Nota dos editores: referência ao livro Constituição de 1988: passado e futuro, editado por Hucitec/ Anpocs em 2008]

Se a filosofia política em geral exige ficções a respeito da natureza humana, é possível imaginar também que ficções ou reflexões a respeito do que são as sociedades exijam também ficções semelhantes à idéia de condição humana. Se o desenho, por exemplo, de natureza humana apresentada por Aristóteles foi fundamental para configurar uma certa concepção de sociedade, certas concepções sobre a experiência nacional, de natureza também ficcional e originária, são fundamentais também para prefigurar o que essas experiências nacionais ou coletivas podem ser. Então, se falamos em condição humana no plano da filosofia política, podemos falar em algo por exemplo ligado à identidade nacional, quando pensamos em experiências coletivas ou nacionais.

Eu não gosto muito da expressão, mas provisoriamente nomeio condição brasileira originária. Trata-se de uma ficção originária, não é para ser encontrada nos fatos. Com relação a essas ficções, aplica-se a máxima de Rousseau no Discurso sobre a Desigualdade: comecemos por nos afastar de todos os fatos. Essa ficção originária não existe, mas ela é o meu ponto de partida para que a narrativas sobre a experiência nacional sejam produzidas e para que experiências de organização política-institucional possam daí decorrer. Uma das ficções originárias mais bem-sucedidas a respeito da experiência brasileira, e aqui eu reproduzo o Werneck, talvez com alguma imprecisão, é que nosso mito de origem é a luta contra a barbárie.

Essa definição do mito de origem carrega consigo uma concepção da condição originária brasileira que vocês podem encontrar com imensa facilidade em autores como Oliveira Viana. Ali está presente a idéia de uma invertebração social originária, de um insolidarismo natural como condição inicial de implantação do experimento humano destas plagas. Um povo de dendrófilos: esta talvez seja a imagem mais interessante, uma imagem forte e telúrica. Seríamos um povo de pessoas que amam as árvores e que odeiam a interação, freqüentam pouco a linguagem e evidentemente não podem ter desenvolvido nenhum tipo de tradição cívica e freqüentam mal o debate público. Não gostam de política, não têm o vocabulário público para exprimir questões que afetam o fígado. Essa maldição de Oliveira Viana está fortemente fixada no imaginário pessimista brasileiro. Não procurem aqui a cultura associativa européia, não procurem aqui a política partidária na qual existiria uma espécie de simetria entre a organização dos partidos e uma configuração espontânea de interesses sociais dotados já de uma certa capacitação cívica para parecerem mais do que demandas particularistas. Não existem aqui demandas já pré-coletivas, pré-políticas ou qualquer antecipação do mundo da institucionalidade liberal. Não procurem fundamento sociológico da natureza do tecido social brasileiro. Aqui é o predomínio da natureza. O predomínio da natureza, como todos nós sabemos, tem como projeção institucional na vida política o predomínio dos clãs. Essa é a nossa consciência possível. Essa é a nossa universalização possível. A organização clânica como uma alternativa mais racional, mais organizada da espontaneidade originária, da dissipação, do a-solidarismo, da fragmentação. As imagens do Oliveira Viana são muito claras, são até excessivamente claras e lembram as coisas de Martins Estrada, na Argentina, e Oliveira Martins, em Portugal. São textos pessimistas.

Aonde vai dar isso? Isso vai dar na idéia de que o país tem que ser inventado. Se um país não se põe de pé, o país tem que ser inventado, criado. Oliveira Viana tem uma posição muito difícil a esse respeito porque, por um lado, ele faz um diagnóstico da sociabilidade brasileira que interdita qualquer crença de que essa sociabilidade naturalmente vá gerar uma forma política e, por outro lado, ele não é um construtivista. Ele acha que a criação institucional deve ser pautada pela percepção correta do que a realidade social impõe e determina. É uma posição muito complicada porque, ao mesmo tempo, eu tenho que ficar atento a um certo realismo constitucional e institucional e, por outro lado, não posso ser excessivamente realista, não posso me furtar de atos de demiurgia porque, se eu o fizer, a natureza toma conta: as árvores começam a crescer, as florestas tomam conta da nossa vida civilizada, e não tem Estado, não tem experiência nacional.

Bom, o que decorre daí é sabido. Há uma narrativa altamente negativa a respeito disso. O país se reinventa a partir de 30 e essa demiurgia torna possível a invenção do país e ela se traduz na precedência do direito público, do direito constitucional. E as marcações desse trajeto estão postas, com freqüência numa chave muito negativa. Com freqüência são apresentadas como a contrapartida necessária para esse déficit de solidarismo e de sociabilidade. E, portanto, haveria uma espécie de correspondência e simetria. Se eu parto dessa condição brasileira originária pessimista, sou obrigado a aceitar que atos de demiurgia institucional são necessários e esses atos sempre vão se inscrever numa chave liberticida como qualquer perspectiva voltada à idéia de democratização, institucional ou mesmo fundamental, posto que esta demiurgia é autoritária por definição.

Eu queria chamar atenção para uma apreciação distinta dessa demiurgia que se impôs a partir dessa definição sobre a nossa origem. Somos uma sociedade invertebrada na origem, essa sociedade só se põe em pé se ela for inventada. A partir de 30 é possível imaginar experimentos de demiurgia com fortes afinidades com perspectivas de democratização da sociedade. O primeiro deles é o Código Eleitoral de Assis Brasil, de 1932. Trata-se do Código Eleitoral brasileiro que configura o direito público. Simplesmente isto. Está ali a invenção do eleitorado brasileiro como uma figura de direito público. Evidentemente que não é a invenção do eleitorado brasileiro porque ele existe desde as eleições das Côrtes feitas em 1821, mas é a criação do eleitorado como figura de direito público, passível de regulação, a demandar um direito específico e uma configuração institucional específica, que é a Justiça Eleitoral. Isto é criação de 32. Evidentemente, toda coisa criada tem um antecedente, como foi, neste caso, a reforma constitucional de 26, feita no decorrer do governo Artur Bernardes. Mas este código de 32 é um marco de rebeldia, que inscreve na tradição brasileira o voto secreto, o sufrágio universal, o voto feminino e o mecanismo da proporcionalidade. São marcas indeléveis recepcionadas por 34, 46 e por 88.

São pontos que vão manter uma relação tensa com a tradição da representação. Se podemos empregar a expressão democracia representativa, ela faz sentido no Brasil a partir de 32. E 34 acrescenta o quê? O voto obrigatório. Mas mantém a proporcionalidade. O nosso complexo de vira-lata nos obriga a olhar para 34 e dizer que estão lá as instituições do corporativismo que macularam a pureza da organização liberal da representação. Mas está lá o voto obrigatório, associado ao sufrágio universal e ao voto secreto. Isto definiu uma tradição que nem o governo militar cogitou reconfigurar ou tirar do mapa institucional brasileiro.

Esse é um marcador importante, que nos traz aqui, que tem a ver com a Constituição de 88. Esse é um movimento de rebeldia positiva com tinturas próprias, específicas. O primeiro deles é o fato de que o próprio evento da Constituinte, o próprio evento de elaboração da Constituição, teve como característica a experimentação. Eu voltei a ler as coisas que a gente escrevia naquela época sobre o que a Constituinte poderia fazer e a marcação era de um pessimismo brutal. Primeiro, chamava-se a atenção para o fato de que era uma assembléia não-exclusiva. Pensava-se que só nos serviria uma constituinte exclusiva, eleita exclusiva e unicamente para fazer a Constituição. A tradição brasileira mistura todas essas cores. Tivemos um Congresso Constituinte que, para piorar as coisas, herdou os senadores eleitos em 82. Esta seria uma mácula irremediável. Nada poderia sair daí. Segundo ponto: o Poder Executivo chamou o senador Afonso Arinos para dirigir uma comissão para preparar o projeto de Constituição e, deste modo, firmar a marca do Poder Executivo e tentar inibir a liberdade que a Assembléia Constituinte pudesse ter. Trata-se de uma pequena marca, já que ela estava maculada na origem por deputados e senadores que não haviam sido eleitos para tal finalidade.

Mas o mundo é um pouco mais complicado do que isso. Essa comissão Afonso Arinos teve como operador fundamental um jurista paulista chamado José Afonso da Silva, um militante histórico e fundamental do chamado constitucionalismo democrático brasileiro que foi nada mais nada menos do que o autor do capítulo dos direitos fundamentais. Toda a embocadura normativa que define a Constituição com os institutos que o Werneck mencionou foi dada pela armação que José Afonso da Silva trouxe já num pré-projeto que ele elaborou para apresentar à comissão Afonso Arinos. Esta, por sua vez, elaboraria um pré-projeto para ser apresentado para a Constituição. Ou seja, houve um curto-circuito através do qual as expectativas de que haveria um arranjo conservador com resultado previsível tiveram um desfecho paradoxal por algumas razões fundamentais.

A primeira delas é que o espaço da constituinte foi um espaço de experimentação, aberto, com a presença absolutamente sem precedentes e imprevista de segmentos sociais que compareceram com sucesso e mandaram emendas, sugestões. Houve uma inspeção pública constante sobre o que ali se fazia. A própria constituinte desenvolveu um trabalho inédito de divulgação, com cobertura da televisão do Congresso e boletim diário. Houve, portanto, uma exposição inédita desse trabalho.

Em segundo lugar, cabe mencionar o desenho que acabou sendo adotado pela Constituinte. Eu não gosto muito dessas coisas institucionais, mas, nesse caso, tem um papel importante. Maria Covas, líder do PMDB, teve um papel fundamental nisso: distribuiu as relatorias e superelatorias independentemente da força partidária das pessoas que ocupavam esses lugares. Ele deu à esquerda uma relevância no processo que não ela teria isso se isso fosse determinado pela quantidade de votos que teve.

Incorporou-se ainda a terceira dimensão que é a presença da vertente renovadora do Direito Constitucional, que acabou se incorporando no trabalho constituinte sem ser testada, num primeiro momento, pelo jogo de maioria e minoria no plenário constitucional.

Do que eu estou falando concretamente? Estou falando de três coisas fundamentais que podem ser resumidas da seguinte maneira. A primeira delas é a definição de referências éticas como fundamento da ordem jurídica, tal como se apresenta a definição do Estado brasileiro como Estado democrático de direito, cujo objetivo é a dignidade dos brasileiros com a promoção da pessoa. A idéia de que a Constituição é um arranjo institucional, com regras do jogo, mas há referências metapolíticas anteriores. E vamos ver daqui a três minutos que essas referências metapolíticas acabam entrando na Constituição e vão operar como referências necessárias. O que eu quero dizer com isso? Ninguém vai tirá-las. Independentemente do jogo de maioria e minoria, essas referências metapolíticas fixaram-se em cláusulas pétreas. Quer dizer, vão tirar se houver um golpe de Estado, mas não existe uma regra de reforma constitucional que possa mexer com cláusula pétrea. Nem no Brasil uma coisa destas é pensada.

Outro ponto importante, e vários analistas chamam atenção para isso de maneira muito brilhante, é a criação e a fixação constitucional de um exaustivo e complexo sistema de direitos constitucionais, um conjunto de direitos fundamentais compreendidos não apenas com direitos negativos e de proteção dos indivíduos, mas como liberdades positivas, entre as quais sobressai o direito de participação política acompanhados de instrumentos como as ações de inconstitucionalidade e outros vários institutos que a própria Constituição vai prever depois.

E o terceiro aspecto é a caracterização do Supremo Tribunal Federal como órgão de caráter político. Ainda que não tenha resultado na Corte Constitucional, que muitos propunham naquele momento, acabou resultando num modelo um pouco confuso – que é também Corte Constitucional, mas não apenas – mas, de qualquer maneira, é um órgão de caráter político ao qual se atribui a tarefa fundamental de concretizar normas constitucionais.

Dada a natureza da constituinte, como é que isso passou? Isso o quê? Esse arcabouço normativo que vai resultar no preâmbulo da Constituição e no capítulo dos direitos fundamentais. É uma espécie de recepção pelo Direito Constitucional do que há de melhor da tradição democrática – na medida em que mantém a representação, mas introduz institutos de democracia participativa direta – da tradição liberal – a dimensão da proteção individual – e da tradição igualitária, que eu não teria pudor em associar à tradição do socialismo democrático. Do ponto de vista normativo, ela incorporou três tradições do campo da filosofia política que, através do Direito Constitucional, no preâmbulo e no capítulo de direitos fundamentais, vão definir essa embocadura da Constituinte.

Todos os meus colegas faziam contas e mostravam que a maioria da constituinte era conservadora. Até que, quando o centrão entrou, várias coisas foram refeitas. Quanto à direita, queria fundamentalmente garantir o mandato para o Sarney. Ele queria cinco anos de mandato. O centrão foi feito para isso. E esse é um problema da Constituinte: ao mesmo tempo em que foi assembléia constituinte, foi congresso constituinte. Então, ela associava política extraordinária com política ordinária.

Como é que podemos explicar essa desatenção a símbolos e valores? Essa desatenção pelo ponto de vista dos conservadores tem a ver com o fato de que isso foi percebido pelos parlamentares como retórica. Os preâmbulos e direitos fundamentais teriam a ver com a metafísica da Constituição. Pensava-se: “vamos passar rapidamente por isso e vamos ao que interessa: ordem econômica, propriedade, reforma agrária…” Os conservadores, realmente, aí perderam porque o que está no preâmbulo e no capítulo de direitos fundamentais tem precedência hermenêutica sobre tudo o que vem depois. Há um ordenamento disso aí. Parte dos conservadores entendeu o preâmbulo como um pedaço da Constituição, pedaço que não teria automaticamente vigência normativa sobre os demais. Faz muita diferença ter esses mesmos valores ao longo da Constituição ou tê-los separados em preâmbulo e capítulos originários porque eles acabam tendo uma espécie de cobertura hermenêutica sobre a interpretação posterior.

Mas não foram só os conservadores parlamentares que não prestaram atenção a isso. A análise científica da constituinte e da Constituição também tende a considerar isso como símbolos que não têm eficácia, não têm efeito para explicar a vida real. E o que é a vida real? Vida real são os interesses estratégicos que presidiram as interações na assembléia constituinte e os resultados institucionais que daí decorrem para a constituição de parâmetros para que os atores nacionais possam competir no mercado político. Do ponto de vista da ciência política, a análise institucionalista privilegia a Constituição como máquina, como mecanismo e, nesse sentido, ela não teve à altura do que a Constituição significou do ponto de vista dos valores. Isso tem duas implicações. A primeira delas é supor um maquinismo, que tem uma espécie de operação lógica, técnica porque voltada para definição de parâmetros para que nós possamos agir de maneira racional e eficiente. E a segunda coisa, que é complicada, é a idéia de que a Constituição não pode ser interpretada por nenhum modelo teórico de fundamento utilitarista porque ela foi escrita contra uma perspectiva de natureza utilitarista. Ela é contra isso. Ela é um objeto que resiste a qualquer avaliação de natureza de escolha racional ou utilitarista. Ela é explicitamente contrária a isso. A idéia de que “não nos interessa a liberdade negativa” não está na Constituição, mas está nos juristas. Esta não é uma Constituição garantia, não é uma constituição imaginada para preservar direitos positivos. Não se trata de criar regras do jogo para atores que já estão constituídos.