Luane Aires

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Cesar Kiraly é professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Po­lí­tica da UFF e do IUPERJ.

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Se pudéssemos dizer assim, escreveríamos que a exposição aborda o indireto pela foto­grafia, a necessidade do incidental; talvez fosse reflexo e não abandono, nem melanco­lia, poderia ser pensado que Rebeca Rasel e Luane Aires traduzem algo para um narra­dor ausente, mas, no fundo, não é nada disso: a narrativa e o indireto estão nas coisas. A coisa não se conta: ela agiria, assim mesmo, sem travessão.

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Então, os pedaços de mulheres e objetos suspensos resistem a resumir o problema em termos de: ‘para onde se está indo?’ Ora, não é o caso de ter alguém contando, e por isso não é o caso de fazer um problema do rosto ausente, quando a questão é que, pelos objetos, ele se conta. E não o faz como alguém que precisa dar explicações do porquê ainda não fez isso ou aquilo. Mas como um narrador que não se distingue dos objetos que perde. Está aí [.] Suspenso [.] Na taça à parede. Nas pernas de tornozelos finos por detrás das cortinas. Nas mãos. Mas também no porta-retratos, na cadeira ao lado. Na infidelidade ao fundo. É uma série de paisagens interiores, de um sem número de seres pendurados, lustres de tamanhos variados, artifícios para o prender janelas ao vento, quadros de frente e de lado, a pilha de papéis a esquecer o seu leitor na frase ainda legí­vel. O narrador posto […] no prego.

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Muito se pensa sobre a forma escrita da imagem ser aquela em que o indireto pode ser melhor manejado, e tal se deveria ao fato de ser nela em que o narrador, pela distância, poderia dar beleza aos acontecimentos. O cinema também poderia fazê-lo, ainda que limitado em comparação com a literária. Se disséssemos que na fotografia o narrador deveria ser encontrado na objetiva, ou na perspectiva por ela escolhida, ficaríamos sur­presos com, muito embora a feliz especificidade, o quão reduzida seria a capacidade formal da narrativa. – Trata-se do que é contado pelo artista – ela concluiria, e isso seria muito pouco. Ainda que a sequência pudesse ser um artifício, ora, com razão, sentiría­mos não ser a mesma coisa.

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Dito isso, estamos diante de fotografias de duas artistas, que pensam pelo conceito em sua forma mais doce. Isso quer dizer que, quando se expressam, estabelecem dois pon­tos: um tradicional e outro estranho. O primeiro pode ser a própria fotografia como su­porte, ou o aspecto reconhecível das madeiras do chão ou da pilha de papel. Há uma confortável referência, que nos faz vulneráveis por distração, posição da qual brotará o estranho. Sim, tal poderia ser feito sem ter conceito. Mas notemos que as artistas sabem fazê-lo brotar, o que o provoca à tona é que os pontos são levados a uma atração, por necessidade, e essa estabelece alguma tensão para a imagem. Por exemplo, pontos que estabeleçam distância muito lateral podem lateralizar o conceito, ou interpelar a parte não conceitual, por oposição. – Rasel opta pelos enigmas formais e Aires pelos tempo­rais – ele dizia. Mas ambas são líricas, e se valem de certa outonalidade do feminino, para tanto. A forma e o temporal são manejados como o estranho. Na forma, é a tomada de posição não anatômica para o sentido dos objetos ou das frases. No temporal é o congelamento. A cena aconteceria em movimento, mas parada, chove. Nada melhor do que um bom conceito para fazer do narrador um morador das coisas. Entre um ponto e outro resta o poder de deformação afetiva das extremidades que se atraem, algo distor­cido, algo vibrante – o campo produzido, de perto.

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