Imaginação e instituição em David Hume e Cornelius Castoriadis, por Verena Seelaender

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Verena Seelaender é Doutoranda em Ciência Política pelo PPGCP da UFF.

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Resumo

Neste trabalho, serão apresentados os princípios básicos do ceticismo e da teoria cética das instituições e crenças de David Hume; a seguir, será apresentado o pensamento de Cornelius Castoriadis e sua hipótese da instituição imaginária da sociedade; por último, serão destacados os pontos de convergência entre os autores e a questão da modificação da instituição a partir de tais definições. Entre os dois autores, o que observamos é a imaginação enquanto processo constituidor, na sua materialidade mesma, pelo qual as percepções sensíveis e as práticas sociais são determinantes na constituição de objetos e ideias. Para fazer tal cotejo, são utilizadas a obra “Tratado da natureza humana” de Hume (2009) e os comentários de Cesar Kiraly (2010; 2012); e, o livro “A instituição imaginária da sociedade”, “As encruzilhadas do labirinto” e “Sujeito e verdade no mundo social-histórico” de Castoriadis (1982; 2004; 2007).

Palavras-Chave

Hume, Castoriadis, instituição, imaginação

Abstract

In the present article, the basic principles of skepticism and a skeptical theory about institutions and beliefs in the thought of David Hume will be introduced; afterwards, the thought of Cornelius Castoriadis and his hypothesis of the imaginary institution of society will be presented; at last, the convergent points in both artist and the question of modifying institutions in face of that definitions will be shown. Between both authors, what we observe is that imagination as a social process in the very constitution, in its material sense, of objects and ideas. In order to do that, I will use the “Treatise of human nature” by Hume (2009), followed by the commentary of Cesar Kiraly (2010; 2012); and the works “The imaginary institution of society”, “Crossroads in the labyrinth” and “Subject and Truth in the Social-Historical World” by Castoriadis (1982; 2004; 2007)

Key Words

Hume, Castoriadis, institution, imagination _______________________________________________

O presente trabalho se estruturará em três partes. Na primeira, se apresentarão os princípios básicos do ceticismo de David Hume e da teoria cética da instituição das crenças; a seguir, será apresentado o pensamento de Cornelius Castoriadis e a hipótese da instituição imaginária da sociedade; por último, serão destacados os pontos de convergência entre os autores e a questão da modificação da instituição a partir de tais definições. Entre os dois autores, o que observamos é a imaginação enquanto processo constituidor, na sua materialidade mesma, pelo qual as percepções sensíveis e as práticas sociais são determinantes na constituição de objetos e ideias.

Castoriadis, por uma via diversa da de Hume, vê nas instituições processos de significação social mantidos, em última análise, por sentimentos, afetos, paixões, pulsões, etc, Quão mais estável e de maior temporalidade for a instituição, maior tenacidade e nitidez ela irá obter, ocultando sua origem e seus fundamentos que, longe de serem baseados alguma razão última e derradeira, nada mais são que frutos de um imaginário socialmente compartilhado. Este imaginário é constituído pela acumulação de experiências sobre as quais baseamos nossas escolhas e nossos juízos, ou seja, são operações que realizamos muitas vezes sem nos dar conta e que influenciam o curso tanto de nossa vida individual quanto de nossa sociabilidade. As instituições, longe de ter uma racionalidade determinada, são fruto de processos muito mais complexos de significação social e sua atualização depende dos mesmos processos que as compõe.

A teoria de David Hume das crenças e instituições

Toda reflexão sobre o mundo, seja ela qual for, carrega consigo uma concepção de natureza humana. Isto ocorre pois qualquer objeto acerca do qual houver uma reflexão deverá, necessariamente, ser refletido e julgado por meio dos poderes e faculdades humanos. Conforme afirma Hume, “nós não somos simplesmente os seres que raciocinam, mas também um dos objetos acerca dos quais raciocinamos” (Hume, 2009: 21). Isto significa que, por mais técnico que o modo de análise dos fenômenos (sejam eles humanos ou não) seja, ele nunca deixará de ter embebida, em sua concepção, uma visão sobre o que é o homem (Kiraly, 2010: 21). Hume admite que existem disciplinas do conhecimento que, aparentemente, se afastam do estudo da natureza humana, como a matemática e os saberes técnicos em geral, mas que, de uma forma ou se outra, todos acabam retornando ao suporte necessário a todo e qualquer conhecimento: o sujeito humano (Hume, 2009). Porém, é importante entender o sujeito em Hume diferentemente do sujeito em Kant (por exemplo); em Hume, o sujeito é uma entidade sensível que recebe estímulos constantes do mundo material, já em Kant o sujeito é uma entidade metafísica transcendental que não pode ser concebida Todo pensamento político é uma interrogação sobre a natureza humana que carrega, também, uma antropologia filosófica, uma determinada concepção sobre o homem.

A experiência, para Hume, deve ser a base de toda e qualquer especulação filosófica; isso ocorre porque a experiência é a única forma de acesso ao mundo. Deve-se procurar, por meio da experiência, não descrever o mundo tal como ele é, ou seja, enquanto substância ou essência, mas enquanto o que ele parece ser, ou seja, possibilidade. Hume parte de uma visão de mundo atomista: ele encara a realidade enquanto uma imagem fragmentada, que só é dada ao conhecimento por meio de seus fragmentos, apreensíveis pela experiência (idem: 27). O pressuposto de qualquer conhecimento é aquilo no qual a experiência se dá: a sensibilidade, na qual a experiência deixa suas marcas, e a imaginação, uma espécie de filtro onde as ideias são formadas. Segundo Hume, existem quatro campos do ciência derivados da reflexão sobre natureza humana: a lógica, a moral, a crítica e a política. (Hume, 2009: 21) Assim como em qualquer outra ciência somente podem existir a partir do estudo experimental, as ciências diretamente relacionadas com a natureza humana (as quatros disciplinas mencionadas) somente podem ser desenvolvidas a partir da experiência humana. É partindo dela que devemos buscar princípios universais na medida do possível, mas sempre tendo como limite a materialidade do experimental, simultaneamente fonte de força e solidez e de fragilidade.

A radicalidade da experiência em Hume é marcada, em primeiro lugar, por sua definição da relação entre causas e efeitos. Para ele, a causalidade não teria uma essencialidade, mas seria uma simples relação constituída por meio da conjunção constante de ideias que, a partir da experiência (ou seja, as impressões que lhe são correspondentes), de causa e efeito na imaginação. A mente humana desenvolveu-se de maneira que, com a observação da repetição dos fenômenos, formamos um hábito (mental) de entendê-los como consecutivos ou evocá-los conjuntamente em nosso imaginário. Conforme o autor afirmou: “(…) a suposição de que o futuro se assemelha ao passado não está fundada em nenhum tipo de argumento, sendo antes derivada inteiramente do hábito, que nos determina a esperar, para o futuro, a mesma sequência de objetos a que nos acostumamos.” (Hume, 2009: 167). O hábito de entender o mundo em um regime de causas e efeitos é um hábito da natureza humana, exatamente porque temos o hábito de esperar do futuro o mesmo que experimentamos nos passado.

O fundamento da experiência é a sensação. Portanto, se deseja-se conhecer o mundo, é necessário antes de mais nada percebê-lo e, a partir da percepção, criar critérios para a definição de impressões. O conhecimento e, consequentemente, o pensamento, derivam de impressões que o mundo causa no eu, descrito por Hume como “um feixe de sensações” (Hume, 2009: 240). Desta maneira, não haveria um regime de importância entre sensações e ideias, mas todas seriam derivadas da experiência e, logo, seriam sensações. A diferença entre sentir e pensar é, desta forma, somente uma de intensidade: enquanto a impressão é uma percepção trazida por meio da paixão ou dos sentidos, a ideia é uma reflexão sobre uma paixão ou sobre um objeto que não está presente. Ambas são, no fundo, impressões, sendo classificadas em impressões de sensação, mais fortes e intensas, e de reflexão, mais fracas. Hume dá como exemplo o fato de que a forma como pensamos na cor vermelha quando estamos no escuro não difere em natureza da impressão da cor que nos é trazida por meio da visão, mas sim em intensidade (Hume, 2009: 27).

A memória e a imaginação operam a partir de impressões de reflexão e de sensação. A impressão de reflexão é muito importante para a teoria das instituições de Hume, pois é por meio dela que é possível gerar ideias que não têm necessariamente um correspondente na materialidade. Esta capacidade de associar diferentes tipos de impressão, que é a imaginação, apesar de ter somente a experiência como base para qualquer reflexão, pode, a partir dos fragmentos de experiência, produzir objetos e ideias que não estão no mundo, por meio da livre associação entre impressões de sensação e impressões de reflexão. A imaginação é, desta forma, a capacidade do pensamento de se organizar na infinidade de possíveis formas associativas (Kiraly, 2010: 50). Porém, é importante notar que, para o autor, a diferença entre memória e imaginação está na força e vividez superiores da memória, tendo em vista que uma ideia da memória pode se tornar tão fraca a ponto de ser confundida com uma da imaginação, assim como uma ideia da imaginação pode adquirir tamanha força que se faz passar por uma da memória, “simulando seus efeitos sobre a crença e o juízo” (Hume, 2009: 115).

As relações entre ideias, memórias, impressões, etc, não têm nenhuma essencialidade, ou seja, as ideias não se associam segundo nenhuma lógica inerente a seu conteúdo. Pensamos o que pensamos e da forma como pensamos pelo hábito, hábito este adquirido pela repetição da associação pelo nosso entendimento a partir da experiência. O hábito nos habitua a associar os abjetos de três maneiras: por semelhança, por contiguidade e por causalidade. Estas maneiras, porém, dizem respeito somente a forma como as relações se dão, mas não a seus conteúdos específicos. Conforme afirmado anteriormente, as relações de causalidade entre fenômenos são isentas de qualquer vínculo de essencialidade. Hume afirmou: “a causalidade não está no mundo. A causalidade é antes: vista no mundo.” (Kiraly, 2010: 52). As relações de causa e efeito são frutos da experiência humana que, por meio da repetição e da crença, associa eventos e objetos segundo o princípio da causalidade. É importante notar, porém, que quando Hume analisa o fenômeno da causalidade, ele afirma que “apenas a causalidade produz uma conexão capaz de nos proporcionar uma convicção sobre a existência ou ação de um objeto que foi seguido ou precedido por outra existência ou ação” (Hume, 2009: 102) A causalidade, fruto do hábito da natureza humana em relacionar fenômenos ou objetos como efeito uns do outros, quando vivida com muita intensidade, torna-se uma crença, uma certeza.

Crenças são ideias que adquirem a intensidade de sensações. Em outros termos, são impressões de reflexão que adquirem estatuto de impressão de sensação. No entanto, crenças não são nem ideias nem impressões de reflexão, mas sim uma maneira de se conceber ambas, ou seja, são uma forma “peculiar de se ter uma ideia” (idem: 126). A sensação é o fundamento de toda crença: quanto mais forte for a sensação que a crença nos faz mobilizar, mas forte será a convicção que teremos em relação a ela. A forma para chegar a esse ponto é a repetição, por meio do hábito; porém, é importante não reduzir a crença a somente seus aspectos regulares, tendo em vista a imaginação enquanto fator fundamental para existência de uma crença (Kiraly, 2012: 67). A crença, nesse sentido, não deve ser confundida com a ficção. Apesar de serem ambas fundadas na imaginação, há uma diferença entre ficção e crença da mesma ordem da entre impressão e ideia. Elas diferem, basicamente, em função da intensidade: a crença é vivida mais intensamente que a ficção, pois se funda muitas vezes em uma certeza absoluta (idem, 2010: 54). Nas palavras do autor:

Vemos, assim, que a crença ou assentimento que sempre acompanha a memória e os sentidos não consiste senão na vividez das percepções que ambos representam, e que somente isso os distingue da imaginação. Crer, nesse caso, é sentir uma impressão imediata dos sentidos, ou uma repetição dessa impressão na memória. É simplesmente a força e a vividez da percepção que constituem o primeiro ato do juízo e estabelecem o fundamento do raciocínio que construímos com base nela, quando traçamos a relação de causa e efeito. (Hume, 2009: 115)

Uma forma gráfica de entender o que Hume entende por crença pode ser demonstrada da seguinte maneira:

IMPRESSÃO + IDEIA -> RELAÇÃO FORMADA NA IMAGINAÇÃO

-> se for de grande intensidade, a ideia se torna uma CRENÇA.

A temporalidade é também um aspecto fundamental da reflexão humeana. Para ele, a crença de que o futuro se assemelhará ao passado, que é a base do conceito de causalidade, não tem nenhum fundamento senão o hábito, “que nos determina a esperar, para o futuro, a mesma sequência de objetos a que nos acostumamos” (Hume, 2009: 167). A contiguidade entre causas e efeitos é derivada da contiguidade entre passado e presente; sem esta relação, a ideia de que uma ação deriva de outra não pode ser realizada. Para haver causalidade, deve haver uma ideia de “sucessão” ou “prioridade”, o que significa que as causas devem necessariamente anteceder os efeitos. A própria percepção da passagem do tempo é, para ele, disassociável da percepção da mudança dos objetos operada na experiência. Desta maneira, o princípio que produz a relação entre causa e efeito é o mesmo que faz com que as pessoas ignorem a experiência em nome de leis gerais. Isso se dá porque a conexão produzida pela causalidade é tão intensa que é capaz de proporcionar “uma convicção sobre a existência ou ação de um objeto que foi seguido ou precedido por outra existência ou ação” (idem: 102):

Assim como os mentirosos, de tanto repetirem suas mentiras, acabam se lembrando delas como fatos, assim também o juízo, ou antes a imaginação, por meios semelhantes, pode ter ideias impressas tão fortemente em si, e concebê-las com tal clareza, que essas ideias podem operar sobre a mente da mesma maneira que aquelas que se apresentam pelos sentidos, memória ou razão (idem).

A instituição é a crença que se materializa socialmente. Isto significa que, a partir do momento em que uma crença é compartilhada por um número razoável de pessoas e apresenta uma permanência no tempo, a ponto de criar efeitos institucionais, ela se torna instituição. Assim como em outros conceitos da teoria de Hume, a diferença entre crença e instituição é de intensidade. Apesar de termos crenças muito convictas, que são socialmente compartilhadas, isto não as torna necessariamente instituições. A diferença entre crença e instituição é da ordem da percepção: a crença, apesar de poder ter efeitos de instituição, não é percebida dessa maneira. A instituição, por outro lado, é imediatamente percebida dessa maneira; há nela uma regularidade e uma solidez que reconhecemos imediatamente. Essa solidez pode ser produzida por diversos fatores – todos relacionadas à intensidade da sensação sobre a qual a crença institucionalizante se fundamenta na imaginação – tais como o número de pessoas que creem na instituição e a sua permanência temporal.

Hume dá um estatuto de muita importância às paixões, pois para ele as paixões são aquilo que impele o ser humano à ação. As instituições, por consequência, também não podem ser entendidas senão pelas paixões que a instituíram e a garantiram a sua permanência. Desta maneira, a instituição é indissociável da paixão que, cristalizada em decorrência de uma permanência temporal, tornou-se crença. A relação entre experiência, hábito, crença, paixões e instituições somente pode ser percebida por meio de uma análise regressiva: primeiramente observamos a instituição, para então percebermos a intensidade da paixão que a sustenta, paixão esta que é o canal de uma crença, crença constituída pela repetição do hábito, que se fundamenta, em última escala, na experiência. O hábito é aquilo que, inicialmente, cria uma facilidade de associação entre duas ideias ou impressões e, posteriormente, uma inclinação a repetir tal associação (idem: 458). Quanto mais repetimos as associações criadas pelo hábito, mais sólida se torna nossa certeza de que tais objetos têm uma ligação: quanto mais repetimos uma impressão em nosso raciocínio, mais sólida se torna a paixão que sentimos em relação a ela. Porém, para que a instituição seja analisada, restingir-se a seus aspectos habituais ou regulares é um erro, já que a crença é mais ampla que somente o hábito, ela é fruto da imaginação e observá-la a partir somente do prisma da repetição não permite que a crença que a fundamenta seja devidamente compreendida.

A modificação da instituição perpassa a atualização dos sentimentos que temos em relação à vida social (Kiraly, 2012: 104). Porém, para que uma instituição social tenha efeito, ela deve ser compartilhada; da mesma forma, para que possamos modificar uma instituição, este desejo deve estar baseado em uma crença compartilhada por uma coletividade. Conforme foi dito anteriormente, não é na própria instituição que devemos buscar o fundamento das instituições, mas na crença que, através do hábito, imprimiu em nós uma sensação intensa, uma paixão que permitiu que o hábito de crer na instituição como tal se cristalizasse, na medida em que essa paixão é compartilhada por uma coletividade por um período de tempo. Segundo Hume, as paixões são lentas e obstinadas, por isso a modificação das instituições não pode ser algo repentino (Hume, 2009: 476). Para que haja uma mudança nos sentimentos que são nutridos em relação às instituições sociais, é necessário tempo para que essas paixões se modifiquem – tempo e repetição habitual do novo sentimento. O fundamento da vida pública (isto é, a vida mediada pelas instituições) é o fato de que, de uma maneira ou de outra, acreditamos nela, e essa crença deriva sua potência da força da paixão que investimos nela.

A modificação da instituição passa pela modificação dos afetos, mas eles somente podem se modificar se houver uma mudança na crença que os afetos potencializam. Para que o afeto que sentimos em relação a uma instituição se modifique, é necessário antes uma mudança na forma como concebemos a instituição. Isto significa que, para que haja o impulso de modificação, é necessário haja uma mudança da ordem das crenças em nossa imaginação. A única forma de desejarmos a mudança de uma instituição parte de nossa capacidade de imaginarmos uma nova forma para esta instituição, forma esta que mobilizará novos afetos e que parte do pressuposto de que nossos sentimentos em relação à instituição já não são mais os mesmos. Essa capacidade de mudar nossas paixões em relação às instituições depende, dessa forma, da capacidade de mudarmos nossas crenças em nosso imaginário, ou seja, de formarmos novas associações ente ideias e impressões na nossa fantasia. Em última instância, todas as paixões que sentimos em relação às instituições são também obra da imaginação, pois é nesta que a sensibilidade imprimirá a impressão que será a base da sua paixão correspondente.

O empirismo de Hume, assim, deve ser encarado como uma atitude epistemológica associada a uma concepção política. Ele surge como uma forma de escapar tanto do racionalismo quanto de concepções filosóficas teleológicas. Do racionalismo, pois entende que não existe uma razão transcendental que explique e norteie os fundamentos da vida pública; da teleologia, pois não aceita a indicação de algum princípio a priori que deva nortear a ação política, senão a investigação das próprias instituições e, a partir do que for observado, a determinação de algum rumo (idem: 22). Para Hume, a fonte das instituições políticas e sociais não é cogitativa (baseada na razão), mas sensitiva, isto é, relacionada às sensações e aos sentimentos (Hume, 2009: 216-217). Os sentimentos que nutrimos na política não advém de uma moralidade “natural” ou de um antagonismo “essencial”, mas das paixões e dos afetos que nutrimos em relação à coisa pública.

A instituição imaginária da sociedade de Cornelius Castoriadis

Assim como Hume, Castoriadis questiona, antes de começar qualquer reflexão, a diferenciação usualmente feita dentro das reflexões sobre o saber humano entre saberes diretamente relacionados com a natureza humana e os que, a princípio, não tem nenhuma relação com esta. Os saberes do primeiro tipo seriam classificados enquanto saberes não-técnicos; e o segundo, saberes técnicos. Segundo ele, a construção da atividade teórica, principalmente a relacionada a um projeto político, supostamente racional e impessoal, nunca poderia ser de tal forma, pois mesmo a técnica mais absoluta representa um fazer, uma escolha consciente, cujos fundamentos não são e nem podem ser garantidos racionalmente. Aqueles que defendem, desta forma, que a política, ou a filosofia, deve ser resumida em seus aspectos técnicos deixa de entrever algo fundamental, pois as técnicas particulares são atividades racionais, mas a técnica em si, não: “As técnicas pertencem à técnica, mas a própria técnica não é do domínio técnico”. (Castoriadis, 1982: 93-94)

Para definir o que é imaginário, categoria central no pensamento deste autor, Castoriadis primeiro questiona qual seria a utilidade de se estudar o imaginário. A resposta, segundo ele, seria que é importante iniciar qualquer investigação sobre o ser humano por tal categoria: “Imaginário porque a história da humanidade é a história do imaginário humano e de suas obras (…): imaginário social instituinte que cria a instituição em geral (a forma instituição) e as instituições particulares da sociedade considerada” (Castoriadis, 2004: 127). O imaginário seria aquilo que está além tanto de considerações racionais do pensamento quanto de percepções do mundo físico: na verdade, a imaginação é aquilo que cria um sentido tanto no primeiro quanto no segundo caso. O imaginário, especialmente o imaginário social, não tem a necessidade de ser explicitado nos conceitos ou nas representações para existir: ele é percebido na prática histórica e nas relações de uma dada sociedade (idem, 1982: 171).

Instituições, para Castoriadis, são fundamentadas ou portadoras de significações que não têm referência nem no mundo nem na lógica. Essas significações são significações imaginárias sociais (Castoriadis, 2004: 130). As instituições são, desta forma, significações imaginárias sociais que se cristalizam no imaginário social instituído, que é o conjunto ou magma de significações que asseguram a continuidade das formas sociais por meio da reprodução e repetição no decorrer do tempo (idem: 130). Ou, como coloca Hume, instituições são crenças que somente podem ser percebidas a partir das regularidades que criam sua permanência. As paixões, as disposições, as pulsões compõem o mundo social; as instituições são, assim, autoinstituições sociais mantidas pelos afetos (idem: 41-42).

Castoriadis acredita que o ser humano tem somente uma determinação essencial, que é a imaginação radical. Isto significa que, para ele, o homem se define enquanto um fluxo ou uma torrente incessante de representações, desejos, afetos (Castoriadis, 2004: 131). A imaginação radical é a capacidade de formular aquilo que não está presente no mundo, ela é um fluxo de espontaneidade representativa sem um fim ou uma finalidade definidos (idem: 327). Isto faz com que as imagens de mundo sejam infinitas como possibilidades de associação, individuais e plurais. Estas possibilidades são sempre condicionadas (já que o social é determinado por processos de instituição imaginários) mas nunca pré-determinadas (idem: 329).

Conforme afirma Castoriadis, não só os seres humanos, mas todos os seres vivos dispõe de dois filtros-transformadores. O primeiro seria aquele que transformaria os acontecimentos “objetivos” (ou seja, a experiência) em acontecimentos para este ser vivo. O segundo funcionaria no sentido de separar, dentro do conjunto dessas informações, aquelas pertinentes das não-pertinentes (“ruídos”) (idem, 1982: 271). Desta maneira, os seres vivos recebem uma série de informações por meio da percepção (a configuração do sol e das estrelas, por exemplo), porém essas informações sofrem esse processo de diferenciação e seleção segundo sua “pertinência” – por critérios imaginários. Em outras palavras, o sentido do mundo objetivo é uma criação daquele que vive nele, ele estabelece-se em e pelos conjuntos que dão sentido a sua existência.

Castoriadis dá destaque à questão da alucinação do seio materno levantada por Freud. Segundo ele, o fato do recém-nascido alucinar o seio faltante indica que o ser humano tem, ao contrário dos animais, prazer de representação independente do prazer do órgão. Esta primeira alucinação indica a unidade mínima ontológica do ser humano, chamado por ele de mônada psíquica (idem, 2004: 338-339). Esse estado somente é superado por meio de um processo de significação, de instituição de significações imaginárias sociais que darão sentido tanto à vida coletiva quanto a individual. A sociedade é, desta maneira, um magma de significações que encontra-se em constante transformação, ressignificação e emergência de novos significados, transformações estas que configuram o mundo social-histórico (idem: 345).

As instituições são, na verdade, significações socialmente sancionadas e processos criadores de sentido. Não é possível viver sem instituições: a instituição é o ser social da sociedade (idem: 207). Para haver mudança radical na sociedade, mudar somente as instituições não é o bastante: se os costumes, os hábitos, os modos de ser do ser humano não se modificarem, as novas instituições serão inúteis, pois ninguém irá aderir a elas. O único agente de mudança nos costumes será, então, somente o próprio homem, no sentido da coletividade da sociedade, ou seja, o povo se transforma transformando as circunstâncias em que se encontra (idem: 188).

A dificuldade para Castoriadis de formular uma teoria da instituição é a de que a própria investigação sobre a instituição estaria, ela mesma, dentro da instituição. Ele cita o exemplo da linguagem, segundo ele talvez a primeira e mais importante das instituições, como uma demonstração clara de que, para pensarmos as instituições, pensamos somente a partir das instituições. É impossível falar sobre uma língua sem recorrer a própria língua para que isso seja feito (idem: 157). A reflexão sobre as instituições perpassa, antes de qualquer coisa, o fato de que existe a possibilidade de se fazer tal coisa, ou seja, a partir do momento em que a instituição é de alguma maneira questionada.

A produção dessas significações imaginárias, porém, não deve ser creditada de forma exclusiva ao indivíduo; da mesma forma, não há muito sentido em acreditar que as instituições sejam criações cooperativas. Para corroborar a primeira afirmação, o autor afirma que o psiquismo, por si só, não é aquilo que conduz necessariamente a linguagem, isto é, a linguagem é uma possibilidade dele, mas não seu motivo derradeiro. Para explicar a segunda afirmação, uma situação absurda é citada: “História absurda: pessoas sem linguagem encontram-se e, depois de uma longa discussão, adotam as regras da linguagem que irão estabelecer” (idem, 2007: 31). Assim, nem a coletividade nem o indivíduo podem produzir a instituição da sociedade, até porque o próprio indivíduo já é socialmente fabricado.

Crenças e instituições: uma síntese

A filosofia de Castoriadis, assim como a de David Hume, recusa a visão da história enquanto um produto da racionalidade (ou como tendo uma racionalidade inerente) e as concepções teleológicas do desenvolvimento histórico. Ambos fundamentam seu pensamento em uma concepção não essencialista do fenômeno humano, ou seja, os dois autores acreditam que é impossível chegar a conclusões definitivas, naturais ou essenciais a respeito do ser humano enquanto tal (Castoriadis, 2004: 41-42; Hume, 2009: 23). Para ambos os autores, o campo de análise do homem deve ser a experiência ou o que Castoriadis chama de “campo social-histórico”, domínio por excelência do fazer humano. Porém, ele chama a atenção para o fato de que o mundo social-histórico não é captável em si próprio, mas somente por seus efeitos, isto é, por aquilo que lhe dá sentido e identidade (Castoriadis, 1982: 210).

Cesar Kiraly dá três definições possíveis acerca da natureza humana dentro da filosofia política: o miniaturismo, a opacidade e o minimalismo (Kiraly, 2012). O pensamento positivo da psicologia comportamental seria um exemplo de miniaturismo, pois consiste na redução na concepção de ser humano aos aspectos regulares de seu comportamento, utilizando-se principalmente de técnicas como a da estatística. A opacidade é representada pelo pensamento transcendental do século XIX, especialmente da fenomenologia. O minimalismo consiste na defesa de que “embora não possa ser reduzida aos seus aspectos regulares, a natureza humana, em virtude dos hábitos intensivos, permite que sejamos capazes de descrever como os sistemas de crenças são formados, como se alteram e como se defendem” (idem: 51). É nesta última concepção que está localizada tanto a filosofia humeana quanto a de Castoriadis, que procuram construir uma teoria a partir da observação de que todos os fenômenos da vida social se estruturam a partir de significações sociais construídas no imaginário humano, e cujo motor são os sentimentos, paixões e afetos que mantemos em relação a ela.

Ao posicionarmos Castoriadis dentro da filosofia de Hume, encontramos uma série de interessantes convergências. Quando afirma que as relações de causa/efeito e de meio/fim são determinadas não por elementos essenciais universais (a razão, o telos, a função, etc), mas por o que ele chama de lógica conjuntista-identitária. Porém, conforme afirmado anteriormente, este conjunto de significações somente pode ser fundamentado a partir de significações imaginárias, isto é, processos de significação que se dão, em última instância, no imaginário individual e, principalmente, social. Conforme afirma o autor:

Fisicalismo e logicismo, causalismo e finalismo são apenas maneiras de estender as exigências e os esquemas fundamentais da lógica identitária à sociedade e à história. Porque a lógica identitária é lógica de determinação, que se especifica segundo os casos como relação de causa e efeito, de meio e fim, ou de implicação lógica. (Castoriadis, 1982: 210)

Para Castoriadis a filosofia deve agir sempre como um agente contra as concepções de mundo fundadas em “razões” transcendentes, seja ela a própria razão ou qualquer outra, e deve configurar-se enquanto investigação incessante em relação à aquilo que nos é herdado (idem, 2004: 194). Em determinado ponto, o autor afirma que “causalidade, finalidade, motivação, reflexo, função, estrutura são apenas nomes de guerra da razão necessária e suficiente” (idem, 1982: 259).

Porém, assim como Hume, Castoriadis chama a atenção para o fato de que esta maneira de pensar constitui uma dimensão ineliminável de toda atividade social e, também, da vida comum. Ela é tão fundamental que está presente, inclusive, nos discursos que buscam questioná-la, relativizá-la e circunscrevê-la; para ele, só é possível colocar a lógica identitária em dúvida confirmando-a em parte (Castoriadis, 1982). Conforme afirmado anteriormente, não pode existir, para nenhum dos autores, crenças institucionais individuais ou, situação ainda mais absurda, crenças (ou, no sentido dado por Castoriadis, instituições) criadas conscientemente. Em decorrência disso, existe um limite além do qual não podemos “sair” da instituição, ou questionar a crença, este apenas deve ser, como o filósofo grego afirma, um processo sem finalidade ou final. Afinal, há a impossibilidade de chegar-se àquilo que encontra-se “antes” da crença, ao estado impossível da não-crença: “por mais que realizemos processos para tomar consciência de nossas crenças, não temos como barganhar com elas” (Kilary, 2012: 168).

A redução da crença a seus aspectos regulares, recurso característico das teorias que trabalham com uma definição miniaturista da natureza humana, nada mais é, em consequência disto, que a principal forma de heteronomia social. Instituições, como destaca Castoriads, são alienantes em definição. A crença, ao se autonomizar, adquire uma inércia – uma lógica-, que materializa-se no hábito, ou seja, nas regras (Castoriadis, 1982: 133). É importante notar que, apesar de tanto a crença quanto a regra serem apreendidas através do hábito, o hábito da crença é um exercício da imaginação, enquanto o hábito da regra é um hábito da crença. É desta maneira que as instituições políticas passam a ser vistas como entes naturalizados, constituídos a partir de processos de significação sociais.

É importante notar, no entanto, uma diferença fundamental entre os dois autores: enquanto Hume vê a estabilidade das instituições e a continuidade dos hábitos e costumes a partir de um juízo positivo, Castoriadis, por ser um autor de viés revolucionário, vê esses fenômenos como a principal fonte do que ele chama de heteronomia social. Como foi afirmado anteriormente, a heteronomia social consiste na instituição contínua e naturalizada de práticas e significações sociais e na ocultação de suas origens históricas, isto é, sua auto-instituição. “A ocultação da auto-instituição (da autocriação da sociedade) e a ocultação da auto-alteração (da historicidade da sociedade) são as duas faces da heteronomia social” (Castoriadis, 2004: 183).

A maior inflexão que Castoriadis realiza com a filosofia humeana é a mobilização do aparato teórico e metodológico de Hume para, ao contrário do autor escocês, propor uma via radical de transformação social. O conceito de autonomia surge como uma forma de antagonismo à heteronomia social, não enquanto conteúdo, mas enquanto discurso que age sobre o indivíduo sem que este se dê conta. Para dar conta deste objetivo, Castoriadis invoca os conceitos da psicanálise de “Ego” (Ich) e “Id” (Es) e a máxima freudiana “Onde era o Id, será o Ego” (Wo Es war, sollichwerden) (idem: 1982: 123). Id e Ego devem ser entendidos como, respectivamente, aquilo que age em mim (o insconsciente em seu sentido mais amplo), e aquilo que deve ocupar o lugar destas “forças” na qualidade de instância de decisão. É importante observar que está máxima não deve ser interpretada em termos absolutos, pois tal tarefa se revelaria impossível: não é realista acreditar que possamos suprimir o inconsciente de nosso aparelho psíquico. A chave da interpretação da máxima, e de sua impossibilidade de mistificação, está em considerá-la não como um estado concluído, mas como uma situação ativa (idem: 125-126).

Considerações finais

Levando em consideração o acima exposto, podemos concluir que, partindo de um pensamento muito próximo ao de David Hume (apesar de nunca citá-lo), Castoriadis propõe uma nova forma de relação social. Ao buscar na imaginação a fonte da criação e permanência das instituições, ele propõe uma via de transformação social não a partir da criação de novas instituições, pois somente aderimos a instituições que tenham crenças que as sancionem socialmente, mas sim de uma mudança da forma pela qual encaramos as instituições e sua permanência. Esta mudança não significa, no entanto, o fim da instituição e da crença, mas sim uma atitude diferente em relação a ela.

O trabalho procurou mostrar, a partir do “Tratado da Natureza Humana” de David Humea relação entre paixões, a imaginação, crenças e instituições, especialmente as instituições políticas. Posteriormente, procuramos mostrar a relação entre imaginário e instituição social na teoria de CorneliusCastoriadis e, finalmente, expor as similitudes do pensamento de tais autores. A inflexão realizada por Castoriadis partindo dos fundamentos humanos aponta para um caminho de criação de uma teoria da instituição baseada na imaginação que inverta os elementos conformistas da teoria humeana e transfigure-os em uma filosofia da práxis e até mesmo da mudança social.

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Bibliografia

CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1982.

___________. Figuras do pensável: as encruzilhadas do labirinto (Volume VI). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.

___________. Sujeito e verdade no mundo social-histórico. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

HUME, David. Tratado da Natureza Humana. São Paulo: Editora UNESP, 2009.

JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006.

KIRALY, Cesar. Ceticismo e Política. Belo Horizonte: Giz Editorial, 2012.

___________.Os limites da representação: um ensaio desde a filosofia de David Hume. São Paulo: Giz Editorial, 2010.