Dawisson Belém Lopes é professor do Departamento de Ciência Política da UFMG.
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Resumo
Cristianismo desempenhou papel de relevo na conformação do entendimento que hoje trazemos sobre a autoridade política no Ocidente. A Igreja tornou-se “romana”, no que se adaptou ao pensamento político da Roma Antiga. Constantino, o Grande, chegou a recorrer à Igreja para assegurar ao Império – já decadente – a proteção do “Deus todo-poderoso”. Na mão oposta, a Cristandade emulou os passos do Império, conseguindo, por fim, superar as tendências antipolíticas e antiinstitucionais que, num primeiro momento, cercavam o credo. A Cristandade obteve êxito onde os helênicos e os romanos falharam, criando uma nova e mais poderosa idéia de comunidade. Embora a natureza dessa comunidade contrastasse abertamente com os ideais clássicos, e o seu propósito histórico atravessasse o tempo e o espaço, ela continha em si germes de solidariedade e de inclusão, que deixariam marca no pensamento do Ocidente. A difusão acelerada do cristianismo e a evolução do seu complexo institucional foram acompanhadas por uma politização da Igreja, perceptível no comportamento e na linguagem, cuja seqüela mais inesperada foi inculcar continuamente nos povos os padrões de educação política. A noção de “civilidade”, base para a compreensão dos direitos civis hodiernos, não deixa de ser um legado da Igreja Cristã Romana.
Palavras-chave:
Autoridade Política, Igreja Cristã Romana
Abstract
Christianity played an important part in shaping the understanding that today we bring about the political authority in the West. The Church became “Roman”, as it became adapted to the political thought of ancient Rome. Constantine the Great, relied on the Church to ensure to the Empire – already declining – the protection of the “Almighty God”. On the opposite hand, Christianity has emulated the steps of the Empire, finally managing to overcome anti-institutional and anti-political trends that, at first, surrounded the creed. Christianity succeeded where the Hellenic and the Romans had failed, creating a new and more powerful idea of community. Although the nature of the community openly contrasted with classical ideals, and its historical purpose across time and space, it contained within itself germs of solidarity and inclusion, which would leave its mark on Western thought. The accelerated expansion of Christianity and the evolution of its institutional complex were accompanied by a politicization of the Church, visible in the behavior and in the language, whose sequel was the most unexpected people continually inculcating standards of its educational policies. The notion of “civility”, the basis for understanding today’s civil rights, is still a legacy of the Roman Christian Church.
Key words
Political Authority, Roman Catholic Church
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Introdução
O Cristianismo desempenhou papel de relevo na conformação do entendimento que hoje trazemos sobre a autoridade política no Ocidente. A Igreja tornou-se “romana”, no que se adaptou ao pensamento político da Roma Antiga. Constantino, o Grande, chegou a recorrer à Igreja para assegurar ao Império – já decadente – a proteção do “Deus todo-poderoso”. Na mão oposta, a Cristandade emulou os passos do Império, conseguindo, por fim, superar as tendências antipolíticas e antiinstitucionais que, num primeiro momento, cercavam o credo.
A Cristandade obteve êxito onde os helênicos e os romanos falharam, criando uma nova e mais poderosa idéia de comunidade. Embora a natureza dessa comunidade contrastasse abertamente com os ideais clássicos, e o seu propósito histórico atravessasse o tempo e o espaço, ela continha em si germes de solidariedade e de inclusão, que deixariam marca no pensamento do Ocidente. A difusão acelerada do cristianismo e a evolução do seu complexo institucional foram acompanhadas por uma politização da Igreja, perceptível no comportamento e na linguagem, cuja seqüela mais inesperada foi inculcar continuamente nos povos os padrões de educação política. A noção de “civilidade”, base para a compreensão dos direitos civis hodiernos, não deixa de ser um legado da Igreja Cristã Romana (Wolin, 1960).
Como testemunhas da vida – do nascimento, da morte e da ressurreição – de Cristo, os apóstolos tornaram-se “pais fundadores” da Igreja, dos quais derivaria toda autoridade. Geração após geração, os conhecimentos apostólicos foram transmitidos aos fiéis, conformando uma tradição que, a certa altura, já não era mais meramente espiritual ou filosófica, mas institucional. Já por volta do segundo século da Era Cristã, a Igreja havia deixado de ser uma frouxa associação de crentes, unida pelos laços da doutrina dos primeiros apóstolos, para transformar-se em uma ordem. Oficiais eclesiásticos eram promovidos com freqüência regular. O próprio credo cristão ganharia um formato menos espontâneo, mais regular. Em razão da extensa lista de questões administrativas de que a Igreja tinha de dar conta, um maior grau de uniformidade entre as entidades que cultuavam os ensinamentos de Cristo foi perseguido. Uma hierarquia formal de autoridade entre os membros da instituição foi uma das soluções encontradas. O “espírito romano” sobreviveu à própria derrocada do Império Romano (Le Goff, 2007; Brown, 2005).
A noção de autoridade praticada pela Igreja também buscava um mergulho no passado. Diferentemente das dinastias reais, que respaldavam a sua legitimidade no princípio da hereditariedade, a entidade cristã recorria à idéia da sucessão apostólica, que sancionava o poder espiritual da Igreja em nome de uma corrente inquebrantável de continuidade, ligando os atuais mandatários da Romana Ecclesia aos primeiros apóstolos. Essa concepção de autoridade foi responsável por dissensos internos na organização eclesiástica. Os dissidentes alegavam incompatibilidade entre o rigor formal da organização religiosa e os ensinamentos legados por Jesus Cristo. Ao basearem a sua “superioridade para governar” não na imitatio Christi, mas, sim, em uma representatividade ficcional e politizada da tradição apostólica, os líderes religiosos distanciavam-se do corpo de fiéis, fazendo-se menos autoritativos aos seus olhos.[2] A ênfase na autoridade institucionalizada indicava, adicionalmente, a rejeição ao purismo doutrinário – o mote crítico comum às correntes montanistas[3] e donatistas[4]. Além das querelas internas à Igreja, havia os conflitos ditos de “segunda ordem”, que revolviam em torno de objetos de escassez: cargos, honras e dinheiro. Contra essas ameaças, ressurgiu o discurso que enfatizava a importância da unidade. Ora: se o Espírito Santo é uno, ele não poderia contemplar os que estavam fora da comunidade cristã. Doravante, a Igreja desenvolveria as próprias formas de controle sobre os seus membros, concebendo, então, sua arma mais eficiente: a excomunhão. A autoridade eclesiástica explorava com freqüência a idéia do temor a Deus.[5] Em formulação auto-explicativa, Tertuliano sintetiza o que passaria a ser palavra de ordem: “o temor é essencial à salvação”.[6]
I
A conexão entre os reinos da política e da religião tem em santo Agostinho (354-430 d.C.) um dos primeiros teóricos. Agostinho fez o esforço de tentar conciliar a identidade religiosa da Cristandade com as necessidades da política humana, reapropriando-se do expediente platônico do dualismo. Grosso modo, o padrão agostiniano de relacionamento entre política e religião – em intersecção, mas não se absorvendo mutuamente – foi elaborado para sinalizar que o político e o espiritual eram campos conceitualmente distintos (ainda que complementares em certos aspectos), mas que um podia beneficiar-se do outro. Porque membros da civitas terrena, os homens são julgados conforme as leis humanas; na condição de aspirantes à civitas Dei, os homens devem buscar a salvação nos conformes da fé cristã. Essencialmente, as duas cidades – “Babilônia e Jerusalém” – não se confundem.
A cosmovisão agostiniana, tributária do neoplatonismo pagão, parte de uma divisão entre o corpo e a alma. Adão e Eva, nessa dicotomia, representam alegoricamente os corpos humanos. As criaturas mais nobres, na hierarquia de Agostinho, são os anjos bons – que, sintomaticamente, podem ser desprovidos de corpo físico, mas não de alma. Dentro de tal esquema, o homem apresenta-se como um ser composto – não muito inferior aos anjos –, com uma alma que se serve de um corpo. Este corpo, como pondera Étienne Gilson (2007), “não é a prisão da alma, mas tornou-se tal por efeito do pecado original, e o primeiro objeto da vida moral é nos libertar dele” (p. 153, ênfase acrescentada). Tal concepção teogônica pode ser transposta para a vida política: os homens que amam a Deus estão unidos entre si, pelo amor que têm por Ele. Uma sociedade ou um povo é o conjunto dos homens que se encontram unidos na busca e pelo amor de um mesmo bem. O povo cristão, integrado pelo amor a Cristo, também vive em cidades temporais, mundanas, por toda a extensão do planeta. Essas cidades terrestres correspondem, por analogia, ao corpo político cristão, que deve ser precedido, ontológica e teologicamente, por uma alma, qual seja, a chamada “cidade de Deus”. Todos os eleitos da civitas Dei são, foram ou serão membros da civitas terrena.
Agostinho não estava a teorizar precisamente sobre comunidades políticas, tampouco sobre o complexo institucional da Igreja. Adepto de simbolismos, o teólogo imaginou duas categorias abstratas e oponíveis entre si. Essas duas categorias – as “cidades” – encontravam expressão física na ordem política, o plano intermediário onde as duas simbologias antitéticas se mesclavam. Segundo Peter Brown (2005), os homens de então “precisavam de autoridade”, ou seja, deveriam ser “sacudidos em seus hábitos e tendências irracionais por um desafio firme e persuasivo, vindo de cima” (p. 383). A pretensa ascendência moral da cidade de Deus sobre a sociedade terrena fica patente no escrito agostiniano, onde se lê:
A cidade de Deus de que falamos é a mesma para a qual existe testemunho naquela Escritura, a qual ultrapassa todos os escritos de todas as nações por sua divina autoridade, e que tem trazido sob a sua influência todos os tipos de mentes, não por um movimento intelectual casual, mas evidentemente por um arranjo expresso da Providência. (…) O Mediador [Jesus Cristo], tendo dito o que Ele [Deus] julgou suficiente, primeiro pelos profetas, então por seus próprios lábios, e depois por seus apóstolos, produziu a Escritura dita canônica, a qual tem autoridade suprema, e para a qual devemos olhar, em todas as matérias em que não podemos ser ignorantes, mas que não podemos conhecer por conta própria (Agostinho, 1952, p. 322-323, tradução do autor).
Não obstante, a cidade de Deus não anula a sociedade política, e sim busca aperfeiçoá-la, no rumo da doutrina de Cristo. A passagem do homem pela Terra equivaleria, por assim dizer, a uma espécie de peregrinação, sem a qual não se obtém a credencial para a cidade de Deus. Agostinho oferecia aos eclesiásticos a “miragem” de uma cidade celestial; aos desiludidos, o sentimento de que as mazelas do presente[7] haviam sido previstas muito antes; e aos cristãos, a convicção de que compunham um grupo privilegiado, porquanto predestinado. A construção progressiva da cidade de Deus na face da Terra é, pois, a grande obra (o telos) da filosofia da história agostiniana – iniciada com a criação do mundo e incessantemente continuada (Brown, 2005).
Ponto de apoio da doutrina agostiniana é o conceito de “liberdade” que o autor mobiliza. Para Agostinho, existia uma diferença fundamental entre o livre-arbítrio e a liberdade propriamente dita. Por livre-arbítrio (liberum arbitrium), entende-se a faculdade humana de poder escolher entre o bem e o mal. Se ao livre-arbítrio se associa a graça divina, então se vivenciará a liberdade (libertas). “Fazer o mal é inseparável do livre-arbítrio, mas poder não fazê-lo é um sinal de liberdade, e encontrar-se confirmado em graça a ponto de não mais poder fazer o mal é o grau supremo de liberdade” (Gilson, 2007, p. 155). A diferenciação conceitual proposta pelo bispo de Hipona acarretaria conseqüências profundas para o estatuto político do indivíduo medieval, as quais se tornarão perceptíveis um pouco adiante, ao fim do primeiro milênio.
O resultado de todo esse engenho filosófico-teológico, como se era de prever, foi a harmonização da convivência entre monarcas e papas. A estes, caberia a auctoritas (a autoridade moral e religiosa); àqueles, a potestas (o poder material, o império). Aqui reside o sinal mais claro da continuidade entre o pensamento dos romanos e o ideário da Igreja. Ao se atirar em sua campanha política, por volta dos séculos IV e V, a entidade religiosa adotou a distinção romana entre autoridade e poder, reclamando para si o equivalente à antiga auctoritas patrum, do Senado, e deixando o poder – que, no Império, diferentemente da República, não mais estava com o povo, tendo sido monopolizado pela família imperial – aos príncipes. Ainda no início da Idade Média, Igreja e Império, poder transcendente e poder mundano, entrelaçaram-se. Ao término do século V, o papa Gelásio I pôde escrever ao imperador Anastácio: “Duas são as coisas pelas quais esse mundo é principalmente governado: a autoridade sagrada dos papas e o poder real”.[8] Cada uma, em seu domínio, é soberana. A autoridade do papa em termos religiosos é absoluta; bem como o poder do rei sobre os súditos. Em um aspecto muito específico da chamada teoria dos dois poderes – potestas e auctoritas –, havia a convergência: apenas Deus é detentor da plenitudo potestatis, o poder supremo (Wolin, 1960).
O embrião da atual Europa surge em tal contexto, nele encontrando terreno fértil para proliferar. O reinado de Carlos Magno (768-813) é decisivo para a conjuminação de anseios religiosos e políticos. Ele considerava ter recebido de Deus a sua autoridade, como o rei Davi na Escritura, obrigando-se, assim, a “conduzir seu povo nos caminhos do Senhor” (Gilson, 2007, p. 223). Um rol de autores começa a cogitar, a partir dali, o advento de um imperium christianum, de um regnum Europae, ou, eventualmente, de uma societas christiana. De comum às dimensões política e religiosa, a sensação de pertencimento a um só corpo, e a certeza de que só além daquelas fronteiras traçadas pela fé e pela política, nunca aquém, poderiam alastrar-se as desafiadoras forças do paganismo, da heresia e do profano. Nos séculos seguintes, porém, as rivalidades despertadas entre os homens levariam ao enfraquecimento dos poderes mundanos e à ascensão da autoridade espiritual da Igreja. A teoria dos dois poderes receberia um novo tratamento.[9] Inocêncio III, Gregório IX e Inocêncio IV conferem, sucessivamente, a potestas ao papado que designa, com a sua “autoridade”, os executores temporais que lhe convêm. Na parabólica formulação do papa Inocêncio III,
O Criador do universo estabeleceu duas grandes luzes no firmamento dos céus; a maior para iluminar o dia, a menor para dirigir a noite. Ele fez o mesmo para o firmamento da Igreja universal, da qual falamos como se fosse um céu, e definiu duas grandes dignidades; a maior para proteger e governar as almas (os dias), a menor para proteger e governar os corpos (as noites). Tais dignidades são a autoridade pontifical e o poder real. A lua retira sua luz do sol, sendo inferior a ele em tamanho e qualidade, em posição bem como em eficácia. O poder real deriva sua dignidade da autoridade pontifícia: e quanto mais ele escapa da esfera daquela autoridade, menos luz o adorna; quanto mais dela se aproxima, mais aumenta seu esplendor (Inocêncio III apud Romano, 2006).[10]
A resistência à Santa Sé virá não do Império e dos imperadores, mas dos pequenos reinos.[11] Na qualidade de representantes de uma comunidade territorial, os chefes temporais se oporão à autoridade da Igreja Romana. Esses reis se valem, ao mesmo tempo, de direitos costumeiros, de origem germânica, e do direito romano para fazer valer o seu poder sobre seus súditos. E conseguem com tanto mais êxito por se afirmarem, eles próprios, servidores da comunidade. O caso paradigmático é o do Sacro Império Romano-Germânico: seu chefe, o imperador, era, em tese, superior a todos os reis e príncipes da Cristandade – ipso facto, dispunha de relações especiais com Deus. Porém, em pouco tempo, a autoridade do Império ficou “limitada ao mundo germânico e, em certa medida à Itália” (Le Goff, 2007, p. 67). Na realidade, os seus poderes tornavam-se cada vez mais discutíveis. Começava a esboçar-se a formação de poderes “nacionais”, a partir do século XI.
II
O pensamento cristão medieval passou por consideráveis mudanças em suas formas de expressão na virada do primeiro para o segundo milênio. Isso se manifesta, sobretudo, a partir do século XII. Progressivamente, a dúplice identidade da Igreja escancara-se: de um lado, o órgão governante da Cristandade; de outro, a sociedade de fiéis que, em sua unidade mística, se propunha a seguir os ensinamentos de vida legados por Cristo. Essa dualidade, culminante na separação entre o político e o religioso, está na base da nova tradição que se constituía à época: a modernidade. Foram elaboradas várias importantes dicotomias nesse (ou em alusão a esse) período: “secular X espiritual”, “natureza X homem”, “fé X razão”. O que mais impressiona, hoje em dia, analisando-se retrospectivamente o pensamento medieval, é o grau em que os conceitos políticos haviam penetrado os escritos eclesiásticos. Independentemente de se discutir a natureza da Providência Divina ou o estatuto dos anjos, a Igreja ou os sacramentos, o emprego de categorias políticas era recorrente no discurso. Não seria incomum ler, em um texto da época, trechos como “a legitimidade da Igreja deriva do poder dos papas”; “o escopo e as limitações do mandato papal encontram-se nas leis canônicas”; “a relação entre o papa e os seus súditos demanda obediência”; ou “a Igreja carece de autoridade para exercer comando sobre a sociedade cristã”. Até mesmo a noção de “ordem”, basilar ao pensamento de Tomás de Aquino, foi herdada da política (Wolin, 1960). Conceitos como os de “direito natural”, “autogoverno”, “povo como corpo político”, “liberdade” e “tirania” também remontam ao período em tela (Brett, 2006, p. 296).
As categorias teológicas estão, portanto, crescentemente afetadas por noções políticas. Teria havido, em certo sentido, uma “absorção da cidade terrestre e do Império pela cidade de Deus e pela Igreja” (Gilson, 2007, p. 404). A lógica da política institucional avança sobre as estruturas da Igreja. O poder e a autoridade do padre, por exemplo, já não mais se baseavam no mérito pessoal, reconhecido entre as partes, mas na solidez da mais duradoura e poderosa instituição já criada no Ocidente. Não era o caráter privado do bispo ou do padre o que contava, mas, sim, o seu estatuto de “agente autorizado” de uma organização institucionalizada. Os ofícios do padre e do bispo haviam ganhado poder e dignidade inerentes; e não havia falha pessoal dos homens que pudesse subtrair a autoridade daqueles ofícios. Ou, pelo menos, por algum tempo, acreditou-se nisso.
Santo Tomás de Aquino (c. 1225-1274) produz o substancial do seu pensamento político-teológico premido por essas circunstâncias. Ele foi um dos importantes teóricos que contribuíram, já na Baixa Idade Média, para a laicização da autoridade divina. Leitor de Aristóteles, Tomás de Aquino acreditava nas virtudes da participação política dos homens – seres sociais, por excelência – na constituição do bem comum. Nisso, diferia sobremodo do agostinismo político. Para Tomás de Aquino, o bem poderia ser atingido por meio da política, desde que esta estivesse atrelada à razão (ratio).[12] Justamente porque somos criaturas racionais – segundo o tomismo –, podemos viver em comunidade, buscando a contemplação eterna de Deus. Concedia-se, assim, que a autoridade provinda da razão superava a autoridade específica de qualquer governante ou grupamento político (Brett, 2006).
O conteúdo mais propriamente “político” do tomismo pode ser encontrado na Suma Teológica, no Tratado sobre a Lei. O fundamento organizacional de toda sociedade humana baseada nos ensinamentos de Cristo ali está exposto: a lei fabricada pelos homens, se ditada pela razão, conforma-se à lei divina. Diferentemente do esquema agostiniano, na elaboração tomista a lei humana deixa de ser periférica para a sociedade cristã, uma vez que está deontologicamente vinculada à lei eterna, revelada por Deus. O bem comum, concebido de modo racional, reside para além do interesse individualista, tendo como ponto de chegada a justiça divina, voltada para a comunidade. Já que o homem tem uma inclinação natural a conhecer a verdade de Deus, o único caminho possível – e devidamente autorizado – para tal é o exercício da razão. Ou, na formulação de Tomás de Aquino,
A lei é uma regra e uma medida dos atos, por meio da qual o homem é induzido a agir ou dissuadido de agir. (…) A medida e a regra dos atos humanos é a razão, que é o primeiro princípio das ações do homem. (…) Uma vez que [medidas e regras] são próprias da razão, segue que a lei está apenas na razão. (…) A lei está em todas aquelas coisas que são movidas pela razão… (Tomás de Aquino, 1952, p. 205, tradução do autor).
Se a visão de mundo de Agostinho comportava a díade “celestial X terreno” (com ascendência da cidade de Deus sobre a cidade dos homens), Aquino manteve-se vinculado a uma espécie de monismo ético-teológico (aproximando-se, nesse aspecto, da concepção platônica). Se a lei é racional; se a razão é divina; e se a Escritura é a lei maior; os referidos elementos devem concordar, embora ontologicamente distinguíveis entre si.[13] Conforme expõe Gilson: “Nem a razão, quando fazemos um uso correto dela, nem a revelação, pois ela tem Deus como origem, seriam capazes de nos enganar. (…) [T]odas as vezes em que uma conclusão filosófica contraria um dogma, é um indício certeiro de que essa conclusão é falsa” (Gilson, 2007, p. 656). Donde o conceito de “liberdade” empregado por Tomás de Aquino: trata-se da vida guiada pelos ensinamentos de Deus, mediante o emprego sadio da razão, em conformidade com a lei. Racionalmente, não existe vida livre apartada de Deus.
Entre os franciscanos com reflexão dedicada à questão da autoridade, um nome que merece menção é o de João Duns Escoto (1266-1308). A sua concepção do “político” relaciona-se com a criação de uma nova ordem de justiça e paz entre os homens. Para o pensador, a autoridade política, diferentemente da autoridade paterna, não pode ser imaginada como um dado da realidade. Antes, ela só pode aflorar, em uma pessoa ou numa comunidade, se houver livre consentimento da parte dos integrantes da cidade. Todo ato de acreditação, seja ele político ou não, só pode partir da volição humana:
É verdade que devemos conhecer um objeto para querê-lo e que é o bem que percebemos nesse objeto que no-lo faz querer; mas é igualmente verdade que, se conhecemos esse objeto em vez de outro, é porque queremos. Nossas idéias nos determinam, mas determinamos primeiro a escolha de nossas idéias. Mesmo quando a decisão do ato parece irresistivelmente acarretada pelo conhecimento que temos de um objeto, foi, portanto, primeiramente, a vontade que quis ou aceitou esse conhecimento, e é finalmente somente ela que assume a responsabilidade total da decisão (Gilson, 2007, p. 748).
Assim, o teólogo dá um passo arrojado para a conformação do que será o entendimento contratualista acerca da relação de autoridade política – qual seja, um fluxo de autorização bilateral entre seres autônomos. Ao apresentar a autoridade como um processo de transmissão individual, Duns Escoto infligiu, inadvertidamente, um golpe duplo, na Igreja e no soberano terreno – não mais, necessariamente, os detentores de uma autoridade imemorial (Brett, 2006). Outro pensador cuja contribuição para a constituição da noção de autoridade política não deve ser desconsiderada é Marsílio de Pádua (c. 1275-1342). Escrevendo no rastro moderadamente naturalista de Tomás de Aquino, o autor de O Defensor da Paz elaborou sobre o Estado laico, estando ele, Marsílio, bem no seio da tradição cristã. Marsílio de Pádua objetivava sustentar as pretensões de validade do poder universal de um imperador alemão e polemizar com a teocracia romana. No entanto, o seu empreendimento tomou contornos efetivamente decisivos: em primeiro lugar, por ele ter interpretado politicamente a definição naturalista de sociedade; a boa organização da existência profana passava a ser, na sua concepção, o objetivo do político. Em segundo lugar, por ter afirmado que a sociedade é um todo que, como tal, é anterior e transcendente às suas partes. Marsílio de Pádua referia-se à noção de universitas civium, a universalidade dos cidadãos – cuja função é legiferar, editar as leis. O corpo de cidadãos ficava incumbido de designar, entre os homens que o integram, um pars principans – um príncipe (indivíduo ou instituição coletiva), que concentraria sob a sua responsabilidade as tarefas de gestão e de coerção. Começa a ganhar consistência a idéia de soberania do príncipe (Kritsch, 2002). O mais importante para os propósitos deste relato, no entanto, é que, paralelamente à defesa radical da unidade e da autonomia da sociedade política, Marsílio de Pádua recusava a auctoritas papal.[14] A Igreja, nos seus escritos, fica despida de toda a aura religiosa, vindo apenas significar o nome por que se designa o conjunto dos crentes cristãos. A Igreja não poderia ter um chefe. Os padres, encarregados de preparar os indivíduos para a salvação extraterrena, tornavam-se dependentes dos desígnios do príncipe, o representante do corpo de cidadãos – ressalvando-se a anterioridade ontológica assumida pela universitas civium (Wolin, 1960).
Cabe valorizar, ainda dentro da linhagem franciscana, a contribuição de Guilherme de Occam (c.1288- c.1350). Por tomar partido contra o papa João XXII, na questão do poder temporal da Igreja, ele foi obrigado a fugir para Pisa. Buscou refúgio junto ao imperador Luís de Baviera, acompanhando-o até a cidade de Munique, onde pôde compor uma coleção de escritos antipapistas.[15] Occam propôs rígida clivagem entre as esferas do político e do espiritual,[16] com plena autonomia jurisdicional do soberano em relação ao papa. Embora não negasse a autoridade da Igreja, ele a confinava a uma dimensão estritamente espiritual. A jurisdição eclesiástica não deveria avançar sobre as leis dos homens em sociedade. Desejar fazê-lo era o principal “pecado” da “Igreja de Avignon” (Brett, 2006, p. 295). O argumento de Occam é construído de um modo que faz lembrar – anacronismo à parte – a sociologia de Niklas Luhmann: estruturas cívicas legítimas (especialmente as do Império Romano) antecedem o próprio cristianismo, permanecendo, muitas delas, intactas até o dia de hoje. Alega-se que o próprio Cristo as teria reconhecido, tacitamente, em sua passagem em vida pela Terra (idem).
III
Na estrutura pré-moderna das sociedades ocidentais, o rei enfeixava dupla função. Como patriarca, tinha poder soberano sobre os seus súditos, assim como a responsabilidade de protegê-los e prover-lhes bem-estar. Como o mandatário ungido por Deus, a autoridade do rei também era absoluta, em virtude da sua consagração pelo direito divino – o qual não deveria ser transgredido pelo monarca, sob pena de este colocar em risco a sua alma imortal (Kantorowicz, 1997). A tentativa de limitar o arbítrio do rei por meio de um apelo à santidade absoluta de um poder transcendente era uma regra nas comunidades medievais. A premissa básica a respeito da vida política medieval era a seguinte: a pessoa que possuísse uma determinada porção de terra credenciava-se como o líder capaz de exercer autoridade em nome de Deus – e com o “consentimento” do povo.[17] Por se tratar de um líder consagrado por Deus, o povo ficaria obrigado aos seus comandos; em troca, ele se faria responsável por toda a comunidade. A idéia de obrigação recíproca entre o senhor de terras e o vassalo (vivente nas terras do senhor) era parte de uma tradição instituída e largamente aceita, que remetia à Roma antiga e aos primeiros povos germânicos, tendo sido fortalecida sobremaneira com os cristãos. Com base em seus recursos econômicos, advindos do domínio territorial, e, em tese, numa autoridade divinamente consagrada, cada senhor defrontava-se com a tarefa de exercer o seu poder por toda a extensão de território sob a sua tutela. Nos esforços para cumprir tal missão, ele tinha necessariamente de contar com o apoio da população lotada em seus domínios, a qual o assistia tanto economicamente (no cultivo de gêneros agrícolas e no pastoreio) quanto militarmente (na defesa do território de invasores) (Bendix, 1964).
Na política da Idade Média, o poder do rei era limitado onde e quando se fizesse necessário ou conveniente o recurso aos préstimos da aristocracia fundiária. Essa aristocracia compunha-se majoritariamente de nobres cuja lealdade fora conquistada em batalhas vencidas pelo rei, tendo eles sido, então, reinstalados nas possessões do novo monarca. Tais relações de obrigação recíproca correspondem à instituição básica do feudalismo – que, na Europa medieval, era o complemento do patrimonialismo da Casa Real. Escrevendo com o benefício da perspectiva histórica, já no século XVI, Maquiavel notou a competição entre duas estruturas de autoridade na Europa medieval:
Os reinos conhecidos pela História têm sido governados de duas maneiras: ora por um príncipe e seus servos, que, como ministros por sua graça e permissão, assistem-no a governar o reino; ora por um príncipe e seus barões, os quais detêm posições não por concessão do monarca, mas pela antigüidade do sangue. Tais barões possuem estados e súditos que os reconhecem como os seus senhores, e são naturalmente vinculados a eles. Naqueles estados que são governados por um príncipe e seus servos, o príncipe possui mais autoridade, porque não há ninguém no estado que seja considerado superior que não ele mesmo, e se outros são obedecidos, o são por mera delegação, como ministros ou oficiais do rei, sem que alguém por eles tenha qualquer afeição especial (Maquiavel, 1952, p. 7, tradução do autor).
Do ponto de vista do feudalismo, a estabilidade é atingida por laços recíprocos entre o senhor e os seus vassalos. O vassalo jura lealdade ao seu senhor, obrigando-se a servi-lo. Em troca, o senhor garante ao vassalo um pedaço de terra. Onde o elemento feudal prevalecesse, essas garantias do senhor envolveriam também a imunidade do vassalo aos poderes administrativos e jurídicos do rei. Onde o elemento patrimonial predominasse, ou esses poderes ficariam inteiramente nas mãos do rei, ou seriam delegados, conforme conveniência do rei. Em condições precárias de comunicação, o rei que buscasse estender o seu domínio sobre vastas porções de terra era levado a delegar o seu poder a outros agentes. O feudalismo da Europa Ocidental tinha adicionalmente a característica de encampar uma ideologia de “direitos”. As relações entre o senhor e o vassalo pressupunham garantias e obrigações – entre os homens e perante Deus. Assim como a autoridade real se circunscrevia, em princípio, pelos apelos a uma ordem moral superior e aos poderes políticos e legais da Igreja, a autonomia jurisdicional dos feudos era assegurada pela consciência do vassalo de seus “direitos” e pelo modo como a Igreja empregava a sua autoridade canônica para salvaguardá-los.
Dois princípios de autoridade começavam, então, a disputar o mesmo espaço político. Da concorrência entre as lógicas patrimonial e feudal, resultava um sistema de jurisdições (ou de imunidades) sobrepostas. Cada jurisdição concedia direitos, o que implicava a elevação de certos indivíduos ou grupos a uma condição privilegiada no convívio social. No agregado, tais jurisdições constituíam a comunidade política, que se mantinha mais ou menos coesa, dependendo do momento histórico vivenciado. Sob a autoridade (nominal) do senhor, os vassalos passaram a rebelar-se, lutando e barganhando com aquele mesmo senhor pelas prerrogativas administrativas e fiscais que lhe haviam sido concedidas pela Coroa. Se o senhor fosse forte o bastante, conseguiria manter a unidade política do feudo. Do contrário, chegava-se ao conflito armado com o vassalo. Max Weber, discorrendo sobre os princípios em que se baseava a ordem política nas sociedades medievais, observou a emergência do individualismo sob a forma das leis:
O indivíduo trazia consigo a ‘declaração de direitos’ onde quer que ele fosse. A lei não era a ‘lei territorial’, como a lei inglesa da Corte Real logo após a Conquista Normanda, mas, sim, o privilégio da pessoa como membro de um grupo particular. Porém, esse princípio da ‘lei pessoal’ não era aplicado de forma mais consistente àquela época do que o seu princípio oposto o é atualmente. Todas as associações formadas pela força da vontade lutavam pela aplicação do princípio da ‘lei pessoal’ em nome da lei que eles mesmos haviam criado, mas a medida em que eles eram bem-sucedidos variava de caso para caso. De todo modo, o resultado era a coexistência de inúmeras ‘comunidades legais’, as jurisdições autônomas que se sobrepunham, a associação política sendo apenas uma jurisdição autônoma – nos casos em que sequer havia uma associação política… (Weber, 2005, p. 819-820, tradução do autor).
Se todos tinham, por “direito”, a autonomia jurisdicional, ninguém tinha, de facto, a autonomia jurisdicional. Com a emergência do individualismo legal, o problema dos múltiplos centros de autoridade política se intensificou. A fluidez das instituições políticas tornara-se insustentável. Sob tais circunstâncias, o padrão medieval de autoridade política seria substituído, eventualmente, pelo modelo absolutista.
A ideologia dos senhores feudais não existia isoladamente. Alexis de Tocqueville anota, em Democracia na América, que senhores e vassalos se sentiam fortemente identificados uns com os outros, apesar da distância social que os separava. A influência do senhor sobre o servo abrangia todos os campos imagináveis. Desde a infância, os vassalos iam se acostumando com a idéia de serem “comandados”. Naturalmente, essa submissão trazia importantes conseqüências psicológicas. Em função do contato diário e íntimo entre eles, o senhor passava a encarar o servo como uma extensão, uma parte secundária e inferior dele próprio. Por seu turno, o vassalo sentia-se investido, com orgulho, dos títulos e riquezas do seu senhor. Para driblar a obscuridade de toda uma vida de obediência devida ao senhor, o vassalo alimentava o espírito com a “grandeza” tomada de empréstimo ao seu senhor. De modo algum, no entanto, esse senso pessoal de identificação anulava a distância social entre aqueles homens. Senhores e servos autoconcebiam-se como a extensão superior e a inferior deles mesmos (Tocqueville, 2003).
Aquela estrutura pré-moderna de autoridade envolvia a delegação ou a apropriação das funções de governo, levando um país a ostentar, ao mesmo tempo, uma autoridade absoluta constituída – a do rei – e várias jurisdições autônomas – dos feudos. O direito de exercer autoridade (isto é, exercer poder) e participar da distribuição de direitos e obrigações baseava-se ou nos privilégios hereditários dos nobres, ou na imunidade institucional da Igreja (e, ulteriormente, das corporações de ofício). Dentro da estrutura social, o indivíduo gozava de direitos em virtude ou de seu sangue, ou do pertencimento a certas organizações sociais. À exceção de uns poucos homens poderosos, a vasta maioria da população nunca travaria contato direto ou qualquer tipo de relacionamento político com o rei, a “Autoridade Política Suprema”. Campesinos e artesãos desfrutavam certos benefícios e desempenhavam algumas obrigações. Mas essa relação de direitos e de deveres era estabelecida no âmbito do feudo. Assim sendo, os extratos mais baixos da sociedade feudal eram fragmentados politicamente. Cada comunidade de campesinos pertencia à jurisdição de um senhor, e cada grupo de artesãos era compelido pelas leis de uma guilda ou pequena cidade. Os camponeses participavam da vida política medieval somente de forma indireta, e quando convocados pelo senhor de terras. O direito à posse de armas era razoavelmente comum entre os servos, já que as guerras intestinas constituíam aspecto importante daquela estrutura de poder. Os que não detinham o direito de empunhar armas ficavam virtualmente excluídos de todas as formas de expressão política da época. As próprias comunidades urbanas – que ganhariam autonomia jurisdicional por volta do século XII – tiveram de recorrer às armas para ter as suas liberdades e imunidades reconhecidas (Bendix, 1964).
As sociedades medievais européias excluíam a maioria das pessoas do exercício dos direitos públicos, os quais dependiam das concessões reais de imunidade. Isso equivalia à exclusão de (quase) toda a massa servil da participação política, num tempo em que a autoridade para exercer as funções de governo era indistinguível da efetiva ação política. Na ausência de canais para a manifestação das camadas menos favorecidas – em termos sociais e econômicos –, não restava espaço para o protesto, para as reivindicações. O represamento da população politicamente insatisfeita culminou com os movimentos de contestação à autoridade constituída.[18] O potencial catalisador de tais movimentos para o fim da ordem feudal é hoje bem conhecido pelos historiadores. Com a Modernidade a caminho, a questão mais problemática se desenhava da seguinte maneira: a Igreja, enfraquecida, não mais conseguia a obediência dos cidadãos, através de seus apelos à auctoritas divina; por outro lado, o esfacelamento da estrutura social, que respaldava os principados, minava a potestas mundana. A obediência civil, que aos poucos ia deixando de ser percebida como “obrigação perante Deus”, ainda não havia sido concebida como contrato entre homens. Múltiplas relações de autoridade política se afirmavam, em um momento imediatamente anterior à difusão do absolutismo político pela Europa. Absolutismo que consistiu na tentativa dos reis de reaver a autoridade política – mesmo que, a rigor, a autoridade propriamente dita tenha passado por significativas distorções conceituais no processo de transição para a vida moderna.
Bibliografia
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[1] Cipriano (aprox. 200-258 d.C.), um advogado famoso por seus talentos na administração, convertido ao cristianismo romano, depois feito bispo, chegou a sugerir, a respeito da natureza dos procedimentos da Igreja: “Age has succeeded age, bishop has followed bishop, and the office of bishop and the principles of church government have been handed down, so that the Church is established on the foundations of bishops, and every act of the Church is directed by those same presiding officers” (apud Wolin, 1960, p. 108).
[2] O Montanismo foi um movimento da segunda metade do século II d.C. Caracterizou-se pela forte crença na iminência do Apocalipse, tingida em entusiasmo e ascetismo. Foi ulteriormente condenado pela Igreja.
[3] O Donatismo foi um movimento de ruptura (cisma) do século IV d.C. De origem africana, distinguia-se pelo rigorismo, por uma teoria perfeccionista da Igreja, e pela idéia de que aqueles sacramentos administrados por ministros impuros eram inválidos. Não raramente, membros do movimento recorreram à violência física para fazer emplacar as suas crenças.
[4] A heresia consistia, na prática, em toda ação humana que contrariava a autoridade divina da Igreja. Esta, por sua vez, tratava de impingir, a quem tentasse desacreditá-la, o epíteto de “herético” – o que trazia enorme carga pejorativa, descredenciando a crítica desautorizadora. Nesse contexto, a instituição da heresia funcionava como um “jogo de desautorizações”.
[5] “Timor fundamentum salutis est” (apud Wolin, 1960, p. 118).
[6] Agostinho escreve contra o pano de fundo da invasão de Roma pelos povos germânicos, os “bárbaros”, no início do século V.
[7] “Duo quippe… sunt quibus principaliter mundus hic regitur: auctoritas sacra pontificum et regalis potestas” (apud Arendt, 1988, p. 169).
[8] Também conhecida como “teoria dos dois gládios”, ou “teoria das duas espadas”. A nova proposta consiste na fundição das ordens temporal e espiritual sob o comando centralizador da Igreja. Há tentativas de justificação doutrinária dessa união nos escritos de Oto de Freising, santo Tomás de Cantuária, João de Salisbury, são Bernardo e, principalmente, Hugo de São Vítor. A maioria delas, baseada em textos do Antigo Testamento.
[9] Inocêncio III, “Sicut universitatis conditor” [1198]. O papa seria o grande responsável, juntamente de Gregório IX, pelo reconhecimento da Universidade de Paris, importante centro de reflexão filosófica e teológica, no século XIII. Com isso, a um só tempo, reafirmava-se o monopólio da Igreja sobre as fontes de produção do conhecimento e reforçava-se, por conseqüência, a teocracia pontifical.
[10] A este propósito, comenta Steven Marrone que, por volta do século XI, “there was unique respect for papal authority, especially as exercised in and with church councils but also as expressed in other declarations and mandates”. Não obstante, “no precise theory of papal, episcopal or conciliar authority gained universal acceptance… even in the West. As dedicated a hierocrat as Augustine of Ancona [1243-1328] acknowledged the possibility of papal heresy” (Marrone, 2006, p. 42). Começava a fazer água a galvanização político-teológica de Constantino. Entre os autores de então, a transição fica bem marcada no pensamento de Pedro Abelardo (1079-1142). Contrariando uma tradição rigidamente hierocrática, que se perpetuava desde a patrística grega, Abelardo sugeriu, em sua obra Sic et Non (“Sim e Não”), que as muitas variações observadas nas interpretações da Escritura feitas pelos doutores da Igreja desautorizavam qualquer pretensão romana de oferecer uma versão oficial do credo cristão. Afinal, havia, para cada grande questão teológica de sua época, “autoridades” eclesiásticas com posições discrepantes e, em certos casos, polares, a favor ou contra. Como se pode antecipar, a formulação de Abelardo implicou questionamento à autoridade temporal e espiritual dos papas, cardeais e bispos da Igreja Romana, na medida em que trouxe a lume a falibilidade/incoerência de suas leituras de mundo.
[11] É relevante citar, mesmo que brevemente, algumas idéias de um poderoso pensador irlandês da Idade Média, cronologicamente intermediário a Agostinho e Tomás de Aquino: João Escoto Erígena (c. 810-877). Erígena tem sido apontado, umas tantas vezes, como um racionalista nos moldes de Aquino. Trata-se de equívoco, na visão de Étienne Gilson: “A autoridade contra a qual Erígena se insurge não é a de Deus, é a dos homens, isto é, a interpretação da palavra de Deus – que é infalível –, por razões humanas – que não o são. (…) O que Deus diz é verdade, quer a razão o compreenda, quer não” (Gilson, 2007, p. 245). A razão não passaria, no pensamento de Erígena, de um instrumento (legitimado pelos homens) para a intelecção do divino. O fundamento autoritativo continua, no entanto, a ser a fé na Escritura, na palavra de Deus. A rigor, o adjetivo de racionalista, imputado a Erígena, caberia mais adequadamente na descrição do ideário de Anselmo de Cantuária, ou santo Anselmo (1033-1109). As teses desse importante pensador cristão, segundo Gilson, “oferecem um primeiro exemplo de exploração racional do dogma que as teologias ditas escolásticas logo iriam desenvolver” (idem, p. 303). Anselmo perseguiu, de maneira obstinada, oferecer demonstrações lógicas da existência de Deus: as chamadas “provas ontológicas”. Tudo seria comprovado por intermédio da razão, e absolutamente nada seria baseado na Escritura – quatenus auctoritate Scripturae penitus nihil in ea persuaderetur (Anselmo, 1973). O pressuposto fideísta, no entanto, permanece: não se compreende para crer; mas, ao contrário, crê-se para compreender. A fé é o dado de que o homem deve partir, na teologia anselmiana.
[12] Em Tomás de Aquino, todo o domínio da filosofia pertence à razão; assim como a teologia dedica-se às questões da fé.
[13] O que alimentará farta controvérsia com os “papistas”, destacadamente o arcebispo Gil de Roma.
[14] Dentre os quais, destacam-se: Quaestiones octo de auctoritate summi pontificis, Compendium errorum Joannis papae XXII e Dialogus de imperatorum et pontificium potestate.
[15] Essa separação rígida entre o político e o espiritual, e também entre o filosófico e o teológico, começa a ser articulada bem antes de Guilherme de Occam, nas reflexões pioneiras de Alberto Magno (1193 ou 1206-1280), o mestre de Tomás de Aquino.
[16] Aqui há uma ambigüidade. Nas sociedades políticas da Idade Média, o povo era mero objeto do governo, não tomando qualquer parte no processo político. Ainda assim, os reis e a nobreza insistiam em fazer reivindicações em nome do “povo”. Bem sabido é que essa ambigüidade não se restringe à Idade Média.
[17] Movimentos esses, diga-se de passagem, muito comuns na Europa, a partir do século XI. Basicamente, enquadram-se em quatro tipos: (i) o milenarismo, que rejeitava a comunidade religiosa existente, definida pela Igreja, e defendia a idéia de um mundo perfeito por vir; (ii) os “governos privados”, simbolizados pelos enclaves políticos que ameaçavam a autoridade dos governos nacionais (a título de comparação anacrônica, a Máfia siciliana); (iii) o “banditismo social”, representado pela atitude do personagem Robin Hood, isto é, a conduta de tomar – literalmente – os bens dos ricos, entregando-os aos pobres; e (iv) o legitimismo populista, que consistia no protesto violento contra as condições existentes, com vistas a se obterem concessões em termos de direitos (Bendix, 1964, p. 43-46).