Da instituição do temor e do tremor, por Cesar Kiraly

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Cesar Kiraly é professor de Teoria Política na Universidade Federal Fluminense.

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Resumo

Investigaremos, por tudo o que foi dito sobre crenças na psicanálise, o argumento lógico de Anselmo acerca da existência de essências (prova ontológica da existência de Deus), bem como, as objeções apresentadas por Tomás. Temos como objetivo mostrar, como o faz Fernando Gil, a estrutura contígua presente na assertiva da existência de essências e na assertiva acerca da existência da soberania. Para que sejamos capazes de dizer que a soberania existe, antes devemos ser capazes de pensar alguma coisa além da qual nada pode ser pensado; como a existência de Deus. Contudo, para além das pesquisas de Fernando Gil, vamos examinar as teses de Tomás acerca do temor e do tremor enquanto fundamentos da autoridade política. As perguntas que nos fazemos, em virtude das questões de Anselmo sobre aqueles que sabem da existência de Deus, mas não sentem Deus, é a seguinte: pode a soberania estar fundada apenas no argumento ontológico, pode estar fundada, apenas, no argumento da causação do temor e do tremor, ou a soberania, necessariamente, é fundada, na dupla articulação entre o saber, lógico e ontológico, e as estratégias de produção de temor e tremor? Isto para, afinal, postularmos: a soberania ao invés de ser relacionada com o infinito não deveria ser relacionada com a idéia de ilimitado? Se a prova da existência de essências faz com que Deus seja encontrado no infinito, não deveria ser a soberania fundada na concepção de ilimitado? Qual seria a distinção entre o infinito e o ilimitado? Uma vez a soberania relacionada com a idéia de ilimitado, poderia ela ser fundamento da autoridade?

Palavras-chave:

Anselmo, Fernando Gil, Autoridade Política

Abstract

We investigate, for all that was said about belief in psychoanalysis, the logical argument of Anselm on the existence of essences (ontological proof of God’s existence), as well as the objections raised by Thomas. We aim to show, as does Fernando Gil, the contiguous structure present in the assertion of the existence of essences and the assertion about the existence of sovereignty. To be able to say that sovereignty exists, we should first be able to think something beyond which nothing can be thought of, such as the existence of God. However, beyond the research of Fernando Gil, we shall examine the thesis of Thomas about the frighten and trembling as the basis of political authority. The questions we ask ourselves derive from the issues of Anselm’s about those who know of the existence of God, but do not feel God is as follows: can sovereignty be established only in the ontological argument, on the argument of causation from fear and trembling, or is sovereignty necessarily founded on the double articulation between knowledge, logical and ontological, and the production strategies of frighten and trembling? This is to ultimately postulate: the sovereignty, rather than being related to the infinite, should not be related to the idea of the unlimited? If proof of the existence of essences imposes God to be found in the infinite, should not sovereignty be founded on the concept of the unlimited? What would the distinction between the infinite and the unlimited be? Once sovereignty is related to the idea of unlimited, it could it be the basis of authority?

Key words

Anselm, Fernando Gil, Political Authority

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Introdução

A preocupação psicanalítica com a crença nos leva a buscar as suas inscrições arqueológicas no pensamento filosófico. Encontramos uma relação bastante estreita entre a crença e o pensamento soberano. A crença é utilizada para pensar no âmbito político formas de onipotência predicadas com a idéia de infinito. Mas a soberania antes de ser política é teológica. Percebemos, contudo, a entrada da idéia de soberania no pensamento político pela transposição do infinito para o ilimitado. Essa seria uma forma de levar “aquilo maior do que o que não se pode pensar” para questões relacionadas ao tempo histórico. Com efeito, buscam-se os fragmentos lógicos e pathológicos da autoridade.

I

Investigaremos, nas linhas que se seguem, e por tudo o que foi dito sobre crenças na psicanálise, o argumento lógico de Anselmo acerca da existência de essências (prova ontológica da existência de Deus), bem como, as objeções apresentadas por Tomás. Temos como objetivo mostrar, como o faz Fernando Gil, a estrutura contígua presente na assertiva da existência de essências e na assertiva acerca da existência da soberania. Para que sejamos capazes de dizer que a soberania existe, antes devemos ser capazes de pensar alguma coisa além da qual nada pode ser pensado; como a existência de Deus. Contudo, para além das pesquisas de Fernando Gil, vamos examinar as teses de Tomás acerca do temor e do tremor enquanto fundamentos da autoridade política. As perguntas que nos fazemos, em virtude das questões de Anselmo sobre aqueles que sabem da existência de Deus, mas não sentem Deus, é a seguinte: pode a soberania estar fundada apenas no argumento ontológico, pode estar fundada, apenas, no argumento da causação do temor e do tremor, ou a soberania, necessariamente, é fundada, na dupla articulação entre o saber, lógico e ontológico, e as estratégias de produção de temor e tremor? No fim, postularemos: a soberania ao invés de ser relacionada com o infinito não deveria ser relacionada com a idéia de ilimitado? Se a prova da existência de essências faz com que Deus seja encontrado no infinito, não deveria ser a soberania fundada na concepção de ilimitado? Qual seria a distinção entre o infinito e o ilimitado? Uma vez a soberania relacionada com a idéia de ilimitado, poderia ela ser fundamento da autoridade?

II

Anselmo inventa a demonstração da existência de essências. Não que Anselmo tenha inventado o discurso sobre essências, porque na Grécia já muito se falava de essências, Platão e Aristóteles, de modos distintos, são essencialistas, tal como, no imaginário do platonismo, Plotino e Agostinho. Mas não havia a preocupação de se demonstrar existência de essências. A essência, tanto em Sócrates, quanto em Platão, basta que seja vista, na própria alma, pois essa participa do inteligível. Também para Aristóteles basta que se veja as essências pelo esforço descritivo, no caminho de se encontrar a natureza das coisas. Mas por que nem os gregos, nem os integrantes do platonismo, se preocupam em fundamentar a existência daquilo que procuram? Talvez porque a essência tivesse estatuto de evidência mais intenso, ou, talvez porque ainda não tivesse sido feita a pergunta fundamental: pode o mundo subsistir sem essências? A nossa questão: não será justamente a pergunta sobre a existência de essências que enfraquece o estatuto de evidência das essências[1]?

A evidência está quase sempre relacionada como metáforas luminosas; como nos adverte Fernando Gil, “[a] filosofia da evidência é, a uma primeira abordagem, uma tematização da vista e da luz. Tudo parece confluir na luz. O corpo orienta-se espontaneamente para ver melhor, a luz provoca o despertar[2].” A mesma luminosidade da evidência está presente em Anselmo, pois o Deus que não precisa ser provado coloca-se diante dos olhos, como chama, mas o Deus que não se faz evidência se esconde dos olhos, e para esse preciso encontrar argumentos:

Procuro o Teu rosto, Senhor, redobradamente o procuro. Portanto, agora, Senhor meu, ensina meu coração sobre onde e como te procure, onde e como te encontre. Se não estás aqui, Senhor, onde Te procurarei estando ausente? Mas se estás por toda a parte, por que não me apercebo da Tua presença? Sem dúvida habitas numa luz inacessível. E onde está essa luz inacessível? Ou como terei acesso à luz inacessível[3]?

Por certo, Anselmo não julga que é necessário pensar sobre essências, porque essências podem ser tidas como crenças, mas o fato de que as questões sobre crenças são colocadas de um modo radical por Anselmo o permite, de modo como não o fez Agostinho, enfrentar tal questão filosófica. Para Anselmo a existência de uma essência está longe de ser matéria de crença, mas, e para aqueles que não crêem, como fazer que percebam essa verdade fundamental? Para aqueles que não conseguem entender a verdade fundamental é preciso fazer com que creiam; ora, não se pode exigir, dos que não sentem a evidência, que sejam capazes de entender antes de crer. Não que a essência seja matéria de crença, mas para que seja entendida, uma crença é necessária. E para isso nos diz Anselmo, frase que pode ser tida como inaugural da reflexão filosófica sobre crenças, inclusive para a percepção cética:

Não procuro Senhor, penetrar a Tua profundidade, porque de maneira nenhuma lhe comparo a minha inteligência, mas desejo entender, de certa forma, a tua verdade que o meu coração crê e ama. Nem procuro entender para crer, mas creio para entender. Pois, até isto eu creio: que se não acreditar, não entenderei[4].

Mas os insensatos não crêem, como eles podem entender? Para os insensatos um caminho muito incomum deve ser feito: produzir uma tal sorte de entendimento, de tal forma cristalina, que cheguem a crer, de modo que o entendimento, depois da crença, possa mostrar o abismo de insensatez onde se encontravam. Para eles, os insensatos, é preciso criar um argumento. Uma prova ontológica. Kant é quem, na Crítica da Razão Pura, inaugura a denominação do argumento de prova ontológica. Kant examina a estrutura o argumento de Anselmo e de Descartes para examinar a possibilidade de estabelecimento de tais tipos de provas. Porque se categorias são ferramentas a priori, ainda que existam essências, noumenon, não posso conhecê-las, por isso, não há que se falar de provas ontológicas. A prova ontológica, para Anselmo, é a demonstração para os insensatos – Kant não poderia ser tomado como um insensato, porque acredita em essências, apenas julga que não há como prová-las – do porquê não faz sentido deixar de crer. Trata-se de expor o insensato ao próprio absurdo de sua descrença. Essa possibilidade de manipulação da crença é que nos permite pensar que talvez a crença seja alguma coisa ainda mais relevante, para atestar a existência de essências, do que julgava Anselmo: crenças produzem essências. Para Anselmo a essência era um existente a despeito da crença, de modo que ainda que não cresse em Deus, poderia entendê-lo, o que imediatamente me catapultaria para a crença. Essa maleabilidade para produzir crenças, inclusive pelo entendimento, permite-nos entrever, será que não é a crença que produz tal assentimento ao entendimento? Anselmo, no Proslogion, julgará de tal forma intensa a capacidade do entendimento em produzir adesão que enuncia acerca de Deus: “… de tal maneira o entendo que, se não quisesse acreditar que Tu existes, não podia deixar de o entender[5]”. Não será o entendimento, para Anselmo, o que de maior pode fazer uma crença? Impedir qualquer juízo de não existência de essências.

Outrossim, mesmo que Anselmo tenha inventado a melhor estratégia para combater os infiéis, a invenção de Anselmo nos permite alguma coisa impensável às suas reflexões. A invenção do argumento ontológico de Anselmo nos permite não concordar com ele. Antes de Anselmo, e de suas reflexões, aos insensatos não era dada justificativa teórica para comprovar, pelo menos, as afinidades da incredulidade, depois de Anselmo podemos dizer: não acreditamos em essências porque essas não existem, porque a prova é retórica, ou, apenas suportamos essências porque são estratégias de credulidade para que algumas finalidades históricas e temporais possam ser atingidas. Anselmo permite o surgimento do cético acerca da essência, ou seja, o cético que vai além do desconforto do discurso diaphônico sobre essências.

Com efeito, o ceticismo pirrônico é anterior aos argumentos de Anselmo, como são anteriores as sistematizações de Sextus Empíricos e dos Acadêmicos, mas o grande problema do ceticismo antigo é a diaphonía dos argumentos que descrevem o mundo. Com Anselmo nos é dado aplicar um novo tipo de ceticismo. Não se trata da suspensão do juízo frente a um mundo, cujos argumentos de interpretação, são diaphônicos, causadores de perturbação, mas a recusa de que a prova da existência de essências, diga respeito a essências, e a assunção de que a estratégia para a comprovação ontológica é o recurso, por excelência, para o fortalecimento de crenças. A partir de Anselmo o ceticismo passa a ter um novo solo de indagações, o cético passa a ser aquele que investiga as dinâmicas intrínsecas às crenças, e quais são as estratégias, dogmáticas, inclusive, para fortalecê-las. Contudo, como Anselmo, os céticos modernos, os que recepcionam a tradição lógica da filosofia medieval, julgam que é impossível uma vida sem crenças[6].

A verdade do entendimento, segundo a qual o insensato, uma vez que a compreenda, será levado à crença: Deus é “algo maior do que o qual nada pode ser pensado. Acaso não existe uma tal natureza pois o insensato disse no seu coração: não há Deus. Mas com certeza esse mesmo insipiente, quando ouvir isto mesmo que digo, algo maior do que o qual nada pode ser pensado, entende o que ouve e o que entende está no seu intelecto ainda que não entenda que isso exista. […] Se, portanto, aquilo maior do que o qual não pode ser pensado está apenas no intelecto, aquilo mesmo maior do que o qual nada pode ser pensado é aquilo relativamente ao qual pode pensar-se algo maior. Existe, portanto, sem dúvida, algo maior do que o qual não é possível pensar-se não apenas no intelecto mas também na realidade[7]”. A tese de Anselmo é verdadeira sempre. De um modo semelhante ao que fará Hugo Grotius, mas esse ao invés de Deus, convalida a necessidade da existência da soberania. Ainda que Deus possa vir a não existir. Se Anselmo cria o argumento de necessidade da existência de Deus, Grotius produz o argumento da necessidade da existência da soberania, ainda que concebêssemos o inconcebível, a não existência de Deus[8].

O argumento de Anselmo, no Proslogion, segundo Costa Macedo, pode descrito da seguinte forma[9]: (1) o insensato nega Deus, de acordo com o fato de que tudo aquilo que se atribui a Deus, como eternidade, inespacialidade, imensidade, anterioridade e ulterioridade, não ser evidente. Devemos perceber que o insensato faz parte da estratégia argumentativa de Anselmo, tal como o infiel faz parte da estratégia de Descartes nas Meditações ou o cético faz parte da argumentação de Grotius no O Direito da Guerra e da Paz. (2) O insensato ouve a fórmula “algo maior do que o qual nada pode ser pensado” e percebe o sentido da assertiva. (3) Conclui, o insensato, que a fórmula corresponde à realidade. Ou seja, a possibilidade de se pensar em algo maior do que o qual nada pode ser pensado, verdadeiramente, persuade da existência de tal ser. (4) O efeito de entendimento é tão devastador sobre as crenças, que ao produzir a crença na existência de essências, faz como que se busque a instituição que se rege em função de tal verdade do entendimento. A relação entre entendimento, crença e instituição, para Anselmo, é evidente. O que nos permite extrair o questionamento: instituição cujo fundamento é a crença provocada pelo entendimento é uma instituição bastante sólida, qual o efeito pernicioso de uma instituição cujo fundamento é absolutamente blindado de dúvidas? Porque o fundamento, último, da instituição, e isso Anselmo acerta em cheio, é a crença. Instituições cuja crença fundamental é produzida pelo entendimento, como evidentes, são instituições perigosas? Ou podem se tornar perigosas?

Cabe indagar, portanto, as implicações estéticas, da existência de Deus, cujo entendimento, imprime a marca da crença. Pois o insensato não crê em Deus, primeiro porque não pode entendê-lo, segundo, porque não pode senti-lo, o crente possui Deus no coração, mas o entendimento de Deus, não leva, a deter experiências estéticas. O crente pode ser distinguido do insensato porque o crente além de entender e crer em Deus, é capaz de sentir amor por Deus, de alguma forma. Inclusive, ao contrário do insensato, em um primeiro momento, entende Deus, porque crê. Mas o “sentir por” não é um “sentir de”. Sentir amor “por” Deus não implica em sentir o aroma, o sabor, a suavidade, a beleza e a harmonia “de” Deus. Nessa matéria estão em pé de igualdade, insensatos e crentes, não podem sentir nada de Deus. O que significa que o entendimento de Deus coloca o insensato no mesmo “patamar” do crente, porque o entendimento de Deus produz a crença. Com efeito, uma vez desencadeada a crença nem crentes, nem antigos insensatos, são capazes de sentir. Mas insensatos e crentes não se igualam completamente, porque os crentes “sentem” o porquê não são capazes de sentir Deus. A chave está na luz. Enquanto os insensatos, muito embora compreendam e sejam capazes de crer, são insensíveis à intensidade do lumen divino, os crentes são sensíveis, mas sofrem com a intensidade luminosa, pelo fato de não conseguirem ver, em virtude da constituição pecaminosa da natureza humana. Apenas há verdade na luminosidade, mas como a vista é curta, e os olhos frágeis, perde-se a imensidade. Pois Deus “… não só [é] algo maior do que o qual não pode pensar-se, mas [é] algo maior do que possa pensar-se[10]”. E para o crente, em sua percepção da evidência, Anselmo escreve como quem escreve para si mesmo, intimamente:

Obscurece-se pela sua vista curta e perde-se na Tua imensidade e, verdadeiramente, é apertada pela sua estreiteza e é oprimida pela Tua amplidão. Quão grande é aquela luz, a partir da qual brilha tudo o que, sendo verdadeiro, se torna luminoso para a mente racional! Que ampla é aquela verdade, na qual tudo quanto é verdadeiro e for da qual não há senão nada e falsidade[11].

A luminosidade existe para aqueles que crêem para entender, de um modo original. O entendimento, inexorável, do infinito, o saber e o reconhecer de que se pensa em algo maior do que possa pensar-se, e que é, abre a necessidade de Deus, mas a angústia de olhar sem ver é privativa dos que crêem para entender e não dos que entendem para crer, e tornam a entender, de modo transfigurado. A evidência é verdade enquanto luminosidade, mas é inacessível enquanto conteúdo. Apenas os contornos de Deus, como os seus atributos, podem ser conhecidos, numa espécie de resistência sinestésica, além de ver Deus, posso tentar tocá-lo, cheirá-lo e escutá-lo. Mas a tentativa é frustrada como quem tenta olhar para o sol. O impedimento para a relação sinestésica com a luz é o pecado. A impossibilidade de participação completa da natureza de Deus. Aquilo que impede a imagem e semelhança enquanto sobreposição. “Tens em ti, de maneira inefável, todas estas coisas, Senhor Deus, que as concedeste às realidades por Ti criadas segundo o seu modo sensível. Mas os sentidos da minha alma entorpeceram, atordoaram-se, foram obstruídos pelo torpor inveterado do pecado[12]”. E por isso afirma:

Ó luz suprema e inacessível, ó verdade integral e feliz, que longe estás de mim, que tão próximo estou de ti! Que distanciada estás do meu olhar, de mim que estou tão presente ao teu olhar. Por toda a parte estás presente inteiramente e não te vejo. Em ti me movo e em ti existo e não posso aproximar-me de ti. Dentro de mim e ao meu redor e não te sinto[13].

Anselmo ao fundar a estrutura, de prova, das coisas que são para si, ou seja, enquanto fundamento, acaba por dar origem a tradição filosófica do pensamento soberano. Um tipo de pensamento que estabelece modos argumentativos que provam a existência dos entes abstratos fundamentais. Alguns filósofos podem ser agrupados no regime do pensamento soberano, dentre eles, cabe dizer, Descartes, Hugo Grotius, Jean Bodin, Thomas Hobbes, Jean Bodin etc. A prova ontológica de Descartes é a que mais se aproxima da de Anselmo, mas difere ao afirmar que a existência é uma propriedade, em virtude da idéia de perfeição. Assim, a propriedade das coisas que penso são existentes necessariamente. E se posso pensar em propriedades, com efeito, o ser portador da propriedade também existe. Assim, ao pensar na perfeição preciso procurar o ente portador da propriedade da perfeição, ou seja, Deus. Passaremos, então, a examinar o conceito de soberania. Para se compreender a invenção da soberania é preciso compreender toda a complexidade do pensamento de Anselmo. Toda a conflitiva envolvente à prova da existência de essências. E toda a exclusividade que a resistência sinestésica fornece aquele que crer para ver. A onipotência na formulação de comandos e a expectativa do mal são características da relação do poder soberano. Cabe indagar se o mesmo infinito que é atribuído à existência de essências, como a existência de Deus, pode ser atribuído à soberania, ou se haveria, portanto, distinção entre os modos de essência. Propomos entender que a soberania não é de nenhuma forma infinita, como é “aquilo maior do que se pode pensar”, mas que é ilimitada “aquilo maior do que se pode temer”. A segunda formulação pode ser tomada como axioma soberano.

III

Fernando Gil, no trabalho La Conviction, produz a perspectiva filosófica do pensamento soberano, ou seja, o contraste de uma característica que nos permite agrupar alguns pensadores em torno do tema do infinito e do ilimitado, visando o rebatimento nos fenômenos políticos. O início do pensamento soberano é a obra de Anselmo (Anselmo permanece sendo o mais conflitivo dos autores soberanos, em função do complicado jogo que estabelece entre luminosidade, entendimento e crença), como indica Fernando Gil, mas sabemos que a soberania é uma outra coisa, muito embora seja um discurso sobre a essência, do que a natureza de Deus. Como perceber o aspecto soberano da soberania? Anselmo, como salienta Gil, em uma pequena nota, no texto De Casu Diaboli, afirma que o maior erro do demônio foi ter querido, além da felicidade e da capacidade de escolher, ser maior do que Deus[14]. A incapacidade do diabo em ser maior do que Deus acaba por marcar também o limite do homem, não há que se falar em intelecto humano maior do que o intelecto divino, o que faz com que as razões de Deus sejam intangíveis. Mas se o demônio não pode tudo, o que é o infinito, ele pode um pouco, o que é o ilimitado. Mas não são todos os homens que podem um pouco, mas apenas aqueles que detém a soberania, ou seja, aqueles que desafiam ver por detrás da luz. O que faz Gil comentar: “Não podemos inferir que a revolução seja diabólica. Ela se faz contra os poderes constituídos, não contra a soberania[15].” Seria então a soberania diabólica? A soberania detém, pelo menos, parte das tentações do demônio, segundo a descrição de Anselmo. O que, para todos os efeitos, estabelece intervalo entre ter a soberania e exercer a soberania. A revolução é feita contra o exercício, e nunca contra a posse da soberania, pois a soberania, como constituição do ilimitado, é fluida, e pode transitar entre poucos e muitos. O exercício da soberania, como aquilo além do que não se pode temer, possui afinidades com o máximo da tentação frente a Deus, ser infinito em si mesmo, mas como a soberania não exerce o infinito, a sua eterna frustração leva os homens à constituição do ilimitado. A revolução é sempre contra as tentações de se constituir uma soberania infinita. Por isso, não é contra Deus, mas contra quem se deseja colocar no lugar de Deus, a revolução é feita contra o ilimitado que não se resigna a sua condição de não-infinito.

Anselmo, com efeito, é o primeiro formulador de uma ontologia do pensamento soberano, e por isso é original, mas é Jean Bodin quem transforma o argumento do pensamento soberano em uma máquina de guerra da filosofia política. Bodin nos adverte que a soberania é esse isso na política que não se altera, o seu aspecto essencial, para o qual os filósofos políticos não atentam, a dimensão de constância no mar revolto de instabilidade[16]. A soberania é o isso da política que não é polemós. Por isso a constituição de um soberano é um procedimento de intensidade pública. Não se trata do estabelecimento de um corpo administrativo no momento da tomada, por assim dizer, do poder ilimitado, mas a convergência permitindo que todo o poder esteja concentrado. A soberania, uma vez estabelecidas convergências, pode ser organizada pelo soberano, pois ele pode limitar os poderes, estabelecer funções, dividir atribuições, mas o soberano é aquilo além do que não se pode limitar. A soberania é o ilimitado e o soberano o exercício da ilimitação. Ponto a partir do qual todas as limitações emergem, mas ponto o qual as limitações não atingem. Nas soberanias populares o soberano é o povo.

A soberania é aquilo que não pode ser limitado, ou seja, aquilo além do que não se pode ir. O medo além do qual não se pode ir. Na verdade, aquilo, além do que, não é possível ir, o medo além do qual não se pode produzir. “Podemos dizer, então, que todo cidadão é sujeito desde que sua liberdade seja limitada pelo poder soberano ao qual deve obediência[17]”.

A autoridade soberana é sempre perpétua. Não importando o conteúdo assumido pela soberania, uma soberania pode ser exercida pela tirania ou pode ser exercida pela participação de magistrados que tornam a justiça reta. Mas nos dois modos de lidar com a força, a soberania é a mesma, ou seja, um poder maior do que o qual não se pode pensar, ou um medo maior do que se pode pensar. Se os magistrados podem ser retirados de suas funções, não são soberanos, se uma administrador pode ser retirado de seu poder, não é soberano. A soberania é um exercício unido a um modelo. A soberania comporta a proteção entre soberanos, e isso não significa perda de poder soberano, mas honra, para o soberano que protege outra soberania. O interesse, na proteção, desqualifica a honra.

Dizer que Bodin padece de platonismo, ao criar o requisito do modelo, não produz qualquer efeito. Pois, muito embora saibamos que o fundamento do poder soberano é um enunciado com características do platonismo, isso não faz com que os efeitos da soberania não sejam produzidos. Inclusive, isso não faz com que os efeitos do medo além do qual não se pode pensar desapareça, do horizonte da servidão voluntária.

Se tal poder absoluto é dado [ao homem a que o povo entrega poderes absolutos] simples e incondicionalmente, e não em virtude de alguma junta ou comissão nem na forma de concessão revogável, aquele que recebe o poder é, e deve ser reconhecido como, um soberano. O povo renuncia e aliena o seu poder soberano a título de investi-lo com isso e colocá-lo na possessão, e isso transfere todos os poderes, autoridade, e direitos soberanos, tal como o homem que dá a outro possessão e direito de propriedade o qual possuía[18].

Bodin não confunde a soberania com a exceção. Pois se a soberania pudesse ser confundida com a exceção não poderia seria atribuída soberania a qualquer príncipe, porque todos estão submetido às leis de Deus, às leis da natureza e certas leis humanas comuns a todas as nações. A soberania não é o infinito: pois esse é reservado a Deus, à natureza (exercício direto das leis de Deus) e aos costumes (exercício direito do arbítrio livre conferido por Deus). A soberania é resguardada ao ilimitado:

IV

Anselmo, no seu argumento demonstrativo, e lógico, da existência de Deus, funda a comprovação da entidade essencial, ou metafísica, no recurso ao infinito, à idéia de infinito; de um modo, como, mais tarde, Descartes faz com a idéia de perfeição. A essência do argumento é que uma existência sem o atributo da infinitude, ou da perfeição, não pode possuir tais idéias a não ser que participe da existência que possui esses atributos. A despeito da refutação cética, ou empirista, dessa tese, a prova da existência de Deus encontra um intenso rebatimento na configuração das crenças sociais, e políticas de um modo mais aplicado. Fernando Gil mostra que a estrutura do argumento da soberania política é a mesma presente na prova da existência, ou necessidade, de Deus. A prova ontológica da existência da soberania é residual à prova ontológica da existência de Deus. Com efeito, também na atividade temporal não temos exemplos de entidades capazes de monopolizar toda a capacidade de aplicar sanções, ou todo o acúmulo do poder social, mas ainda assim somos capazes de tentar pensar nessa alguma coisa que, empiricamente, ou sensivelmente, não existe. A prova ontológica da soberania é a justificativa para o fato de que podemos pensar no poder infinito ou perfeito. Não vemos Deus, mas sabemos da sua existência pela impossibilidade lógica de se pensar atributos que não possuímos, também não vemos a soberania, mas sabemos de sua existência pela impossibilidade de pensar atributos que não possuímos. A essa forma, e estilo filosófico, de elaborar o problema da existência de entidades metafísicas Gil, pensando na filosofia política, atribui o nome de pensamento soberano.

Contudo, a constatação do pensamento soberano não é imediata, nem possui evidência index sui. O pensamento soberano é precedido de um juízo de constatação: 1) na prova ontológica de Deus: o juízo de constatação que não podemos pensar em atributos que não possuímos e 2) no caso da prova ontológica da soberania: o juízo de constatação de que não podemos pensar em atributos de concentração absoluta da sanção. Depois do juízo de constatação, apercebemo-nos, efetivamente pensamos nessas entidades metafísicas, ainda que não possamos. Como é possível? Com efeito, essas entidades efetivamente existem. Gil denomina esse procedimento, de afirmação da existência, de salto alucinatório. Alucinatório por quê? Porque o problema da existência é deslocado para o problema da criação de entidades. A prova ontológica, de Deus ou da soberania, não resolve o problema da existência, muito embora estabeleça um fundamento. Anselmo apela para motivos de revelação, ainda que seja capaz de provar logicamente a existência, mesmo para aqueles que não acreditam. Outrossim, Descartes estabelece a necessidade de elementos produtivos, como a geometria: para sair do cogito e começar a conhecer entidades claras e seguras. Da mesma forma, Jean Bodin torna a soberania procedimental para que possa sustentá-la como definição política. O salto alucinatório, posterior a constatação do problema lógico, efetivamente cria o objeto. A lógica indica para a ausência de um ente existente, cuja necessidade é estabelecida, o salto alucinatório adere a essa necessidade e produz o objeto.

Nem Anselmo, nem Descartes podem admitir que estão inventando, de modos distintos, Deus. Muito menos Bodin, com efeito, pode admitir que está a produzir os elementos fundamentais, e conceituais, da soberania moderna[19]. Mas, como nota Gil, o procedimento de invenção do objeto está atrelado à disposição cognitiva mobilizada na importância social de entidades metafísicas. Ou seja, não existe sociabilidade sem metafísica. Agora, toda sociabilidade, por definição, metafísica, precisa ser configurada pelos moldes do pensamento soberano? Tudo nos leva a crer, e investigaremos essas razões, que o pensamento soberano é uma das estratégias políticas possíveis para a criação de instituições.

Tomás de Aquino na sua Suma Teológica questiona as relações entre soberania política e existência de Deus[20]. A política e a teologia possuem muitas questões contíguas. Contudo, em virtude do objeto central da soberania, propomos investigar a idéia de temor à autoridade. Vamos privilegiar essa idéia porque o temor está presente, tanto nos fundamentos da verdade teológica, quanto nos fundamentos da estrutura de obediência às instituições políticas. Inclusive a política secular continua a se valer do temor à autoridade. As alternativas, de orientação cética, ao pensamento soberano postulam: é possível que a política não pressuponha o temor? Passemos ao estudo da questão 19 da II seção da parte II da Suma Teológica de Tomás.

O procedimento adotado por Tomás é sempre muito rigoroso. Ele sumariza todas as hipóteses necessárias para a aprovação ou para a refutação da tese. No caso do temor coloca a questão em termos: é possível se desconsiderar o dom do temor? Ab initio devemos interrogar o porquê de se considerar o temor um dom. Para Tomás o temor pode ser considerado um dom porque é um elemento da graça divina. O que significa: Deus permite que os homens temam. Porque o temor nos aproxima de sua revelação. De modo que se nos remetermos a associação que fazemos entre Anselmo e Bodin: poderemos, desde que juntos sejam interpretados, perceber a tese de Tomás, que dará, sem grandes alterações, nas teses de John Austin e Thomas Hobbes. Pois Anselmo produz a prova lógica, mas para que o entendimento produza uma crença, algo deve nos levar aos enunciados necessários, porque não somos seduzidos imediatamente pelo entendimento. A filosofia política, afim ao modo discursivo do pensamento soberano, procura encontrar argumentos que estabeleçam a necessidade de se realizar as tarefas do entendimento que rebaterão em Deus e na soberania. O medo é o argumento. Assim, Bodin encaminha para tal resolução, ao distinguir a soberania do soberano, pois o ilimitado exercício deve corresponder ao ilimitado modelo, ao soberano é feito o juízo de altura à própria soberania. Assim, se a revolução é passível de um medo maior do que o medo exercido pelo soberano, ela não é contra as leis de Deus, mas contra o mal exercício do poder. Não se pode temer nada mais do que se teme ao soberano. O modo como Tomás encaminha a questão do medo de Deus e da autoridade, ajuda-nos a entender a questão.

Doze questões devem ser respondidas para que possamos investigar a possibilidade, ou não, de se desconsiderar o dom do temor: 1) Deus deve ser temido? 2) Pode-se dividir o temor em: filial, inicial, servil e mundano? 3) O temor mundano é sempre mau? 4) O temor servil é bom? 5) O temor servil é o mesmo temor que encontramos no temor filial? 6) A caridade exclui o temor servil? 7) O temor se relaciona com a sabedoria? 8) O temor inicial se confunde com o temor filial? 9) O temor é um dom do espírito santo? 10) O temor cresce na mesma proporção da caridade? 11) O temor permanece na pátria? (utrum maneat in patria) 12) Quais os frutos do temor?

Para o nosso argumento não é importante atribuir o mesmo peso a todas as questões concernentes ao temor, por isso, vamos privilegiar, em nossa exposição, algumas em detrimento das outras. Tomás quando expõe a tese, que deseja refutar, a posiciona em termos de aparência (Videtur)[21]. Se estivéssemos a estabelecer um discurso sobre o tomismo esse fato não teria muita importância, mas como o ceticismo é um elemento constante em nossas preocupações, vale a pena indicar que a aparência, para Tomás, sempre oblitera verdade por trás das coisas. A postura cética, e também empirista, de se fiar no que aparece, e recusa a pluralidade de discursos sobre o fenômeno, pela epoché, apenas no caso do ceticismo, é o ambiente de refutação que Tomás parece desejar produzir, para depois descartar os argumentos. Suas questões começam com Videtur. Trata-se o “Videtur” daquilo que deve ser refutado pela sumarização dos argumentos. A pluralidade de argumentos, para Tomás, leva ao processo de desvelamento da aparência e encontro da verdade. Para o cético a pluralidade dos argumentos (isosthenia) leva à suspensão do juízo (epoché) e sucessiva imperturbabilidade (ataraxia). Com efeito, para o cético humeano a pluralidade dos argumentos deve ser sustentada, a tensão entre os argumentos deve ser mantida, para que a investigação possa manter o seu caráter não dogmático, fragmentado e experimental.

Assim, o primeiro artigo da questão 19 começa com a seguinte sentença: “parece que Deus não pode ser temido” (Videtur quod Deus timeri non possit)[22]. A aparência é fundada nos seguintes argumentos: 1) O temor só pode ser sentido com relação a um mal futuro, como Deus é isento de todo o mal, logo, Deus não pode ser temido; 2) O temor rivaliza com a esperança, como temos esperança em Deus, logo, Ele não pode ser temido e 3) para Tomás: Aristóteles afirma que tememos aquilo que nos causa mal, como o mal não vem de Deus, mas dos homens, Deus não pode ser temido. A resposta de Tomás a essas objeções da aparência é engenhosa: o temor possui dois objetos: 1) o mal mesmo temido e recusado pelos homens e 2) aquilo do qual o mal pode proceder. Com relação ao primeiro objeto, Tomás observa que a objeção é verdadeira, pois em sendo Deus desprovido de mal, Ele não pode ser temido. Contudo, com relação ao segundo objeto, o temor é mais delicado. Pois podemos ser ameaçados por um mal “proveniente Dele, quer com relação a Ele[23]”. Donde se depreende, mesmo que não haja mal em Deus, Ele pode fazer o mal. Mas que tipo de mal? Em quais circunstâncias? O mal proveniente de Deus é o mal da punição, aquele presente na pena, para expiação[24]. O mal da punição, proveniente de Deus, não é um mal absoluto, mas relativo, “em si mesmo é absolutamente um bem”. Tomás define o “bem” como a orientação ordenada para um fim justo, ao passo que o mal pode ser definido como a ausência da ordem e da finalidade. O mal da pena é um mal porque nos priva de alguma coisa, mas na verdade orienta para o bem. Contudo, mais grave do que o mal da pena é o mal da culpa. Pois o mal da pena provém de Deus, sendo desencadeado por uma falta. O mal da culpa vem dos homens, sendo constituído, justamente, quando nos afastamos de Deus, quando deixamos de temê-lo.

O temor, e essa é a solução de Tomás, deve ser perseguido: trata-se do antídoto do mal da culpa. Aquele que teme afasta a culpa e aceita a punição prevista por Deus. O temor pode ser classificado como filial (o temor do filho pelo pai), inicial (o temor da esposa pelo marido), servil (o temor do escravo pelo senhor) e mundano (o temor de perder os bens). Nos três primeiros tipos de temor a relação se dá em virtude do medo da pena. Temor de ser punido pelo pai, pelo marido e pelo senhor[25]. Esse temor comum é importante, para Tomás, pois se assemelha ao temor por Deus, não se trata de um temor ignoniminioso: pois é temor que se estabelece no amor. Contudo, o temor mundano é mais grave. Porque pelo medo de perder os bens o homem pode se afastar de Deus. Ou, o que é ainda mais grave, pelo medo de perder os bens, o homem pode se aproximar de Deus. “Os demônios crêem e temem”. O temor mundano é sempre mau:

Com efeito, se alguém chamasse a cobiça de amor ao trabalho, porque os homens trabalham por cobiça, não seria denominação correta, pois os homens cobiçosos não procuram o trabalho como fim, mas como meio, já que são as riquezas que eles têm como fim; por isso, chama-se propriamente de cobiça o desejo ou o amor das riquezas, o que é um mal. Semelhantemente, chama-se propriamente amor do mundo aquele pelo qual alguém se apega ao mundo como a um fim. […] Portanto, o temor do mundo é o que procede do amor do mundo, como de má raiz. E, por isso, o temor mundano é sempre mau[26].

Deve-se temer, mas não se deve temer qualquer coisa, outrossim, deve-se atentar para a finalidade do temor. Podemos explorar a proximidade entre os termos temor e tremor. Assim, devemos tremer frente à possibilidade de nos desviarmos da finalidade, mas não devemos temer de modo fútil, o dever se manifesta de maneira correta quando somos corajosos para não tremermos frente a desafios mundanos, mas devemos temer não sermos capazes de sustentar nossa proximidade de Deus. Tal como devemos tremer frente à possibilidade da pena estabelecida por Deus. Tememos a Deus porque a sua pena combate à falta de ordenação, mas nos felicitamos por sermos punidos, e, com esse sofrimento, estarmos orientados para a finalidade do bem. Ao temermos o mundano não podemos sentirmos felicitados com a punição, pois a finalidade do mundano se extingue no mundo.

A opção teológica, demonstrada por Tomás, não se extingue nas matérias da religiosidade. Os enunciados sobre o conhecimento, possível, das finalidades de Deus, bem como, os enunciados sobre a teologia moral, rebatem nas instituições. Os enunciados, de Tomás, não seriam mais importantes para política se estivesse a falar de assuntos adstritos ao modo de organização das instituições. O procedimento adotado por Tomás é um elemento constante na política. A política é determinada com mais intensidade pelos enunciados que circunscrevem a natureza humana que age na política. Ao falarmos que a política deve ser conduzida pelos meios x ou y abrimos espaço para o debate sobre a condução, e esse se extingue de imediato. Raramente esse tipo de enunciado encontra decantação na vida política. A estratégia de se afirmar um universo teológico ou de conhecimento é o território do embate entre filosofias que são importantes para a política. O temor de Deus é o mesmo temor que se deve ter pelos enunciados produzidos pelo poder secularizado. Dotado com os mesmos elementos de sofisticação conceitual. O poder secular não deve ser temido pelas finalidades mundanas, mas porque representa a finalidade do bem. O poder secular para Tomás não é mundano. E rivaliza, da mesma forma, como em relação a Deus, com a mundaneidade.

[D]eve-se dizer que quando os poderes seculares infligem penas para fazer os homens afastarem-se do pecado, nisso são ministros de Deus, conforme a Carta aos Romanos: “A autoridade é instrumento de Deus para castigar quem age mal”. E, sendo assim, temer o poder secular não é próprio do temor mundano, mas do temor servil ou inicial[27].

O temor se confunde com a sabedoria. Pois o temor indica que sabemos nos portar conforme a razão natural. O servo é sábio quando serve ao senhor, o filho, quando obedece ao pai, e a mulher, quando segue o marido. Todavia, a sabedoria também se exerce na esfera secular. A razão secular se confunde com a razão natural. Por isso, o temor do poder secular também é uma forma de se temer a Deus. Pois se Anselmo prova a existência ontológica de Deus e Bodin prova a existência temporal da soberania, Tomás prova a existência de Deus e da soberania de uma única vez. Com efeito, através do correto manejo do silogismo do temor. Ainda que Tomás não o enuncie, podemos vertê-lo da seguinte forma: o sábio é aquele capaz de sentir temor pela finalidade correta, o poder secularizar é ministro de Deus – está orientado conforme a finalidade do bem – logo, devemos obedecer ao poder secular e temê-lo como tememos a Deus.

Para que não reste nenhuma dúvida sobre a ligação do temor com o poder secular, Tomás elabora o artigo 11 da questão 19. “[P]arece que o temor não subsiste na pátria[28].” As razões da aparência, que afastam o temor da pátria, podem ser divididas em três: 1) O temor não pode subsistir na pátria porque apenas o mal é objeto de temor, como não pode haver mal na pátria, desde que orientada à finalidade, não pode existir temor. 2) Como os homens da pátria são semelhantes a Deus, e Ele nada teme, não pode haver temor na pátria. 3) A pátria existe para combater o mal, não cabe a pátria ter esperança, como a esperança é mais perfeita do que o temor, se não existe esperança, também não há que se falar em temor na pátria. Tomás refuta essas três aparências: 1) A primeira aparência é refutada pela lembrança dos dois objetos do temor. Apenas o temor em Deus está ausente da pátria, mas o temor de Deus está presente. 2) A semelhança a Deus é sempre imperfeita, como é impossível imitar a Deus absolutamente, o bem aventurado deve permanecer a temer a Deus, mas não deve temer o mundo. 3) A esperança, como o temor, sempre guarda deficiências. “[O] temor implica uma deficiência natural da criatura, por distar infinitamente de Deus, o que ainda continuará na pátria. Por isso, o temor não desaparecerá totalmente[29]”.

Em certo sentido, como dissemos, Tomás antecipa Hobbes e Austin. Porque eles não se contentam em fundar a autoridade no argumento lógico e entendem que um certo tipo de devoção temente está implicada na atividade da obediência. Pois se para Anselmo a obediência se segue pelo amor natural do crente a Deus, ou do sentimento necessário da presença de Deus, para Tomás, Hobbes e Austin, o temor da autoridade advém da possibilidade do mal. Um mal que se dá na justiça, pois orientado segundo finalidades, mas ainda um mal. E na relação entre o comando e o mal que nasce a soberania. Vimos que o maior erro do demônio, segundo Anselmo, foi querer ser maior de Deus. Mas por mais que Tomás nos diga que o temor da pátria é da mesma natureza do temor a Deus sabemos que Tomás está errado. Está certo quando afirma que o temor é fundamental para a consecução da autoridade, e a possibilidade de produzir tremor nos súditos, e nos crentes, comprova nosso argumento, mas não está certo quando afirma que existe participação virtuosa entre os modos de poder. A participação virtuosa na retórica de dominação é evidente. Mas existe forte distinção. Não é o temor infinito que está em questão, porque ao temor infinito está relacionada à eterna danação. O medo da eterna danação não provoca o tremor que constitui a soberania. O temor que produz soberania é o temor da danação imediata. Tomás descobre que existe dupla articulação na afirmativa da soberania: lógica e pathológica. Mas se engana, para além da importação da estrutura, importa-se, também, na concepção de Tomás, o uso da finalidade divina. O que Bodin, Hobbes, Austin evidenciam – como na máxima de Grotius – é que o argumento da soberania está correto, ainda que postulemos o que não se pode postular, que Deus não existe. A soberania rompe com o infinito para fundar o temor na sensação do ilimitado.

Deus é o temor infinito. O soberano é o temor ilimitado. O tremor infinito mantém os homens próximos de Deus. O tremor ilimitado mantém os homens próximos da soberania. Deus nunca é mal, mas pode, orientado por uma finalidade justa, punir, e isso é um mal, apenas para quem recebe, porque para Deus, e para o mundo, foi um bem. A soberania pode ser orientada para uma finalidade justa, mas não se pode dizer que a soberania é desprovida de mal. Na verdade, cabe à soberania monopolizar o mal, como quem monopoliza a violência. A soberania produz o temor mundano. Bodin, Hobbes e Austin, de modo diferentes, como também Grotius, ancoram a soberania na relação entre infinito, divindade, e ilimitado, poder soberano, de modo que levam em consideração o fato de que as ofensas às leis de Deus são maiores do que as ofensas às leis do soberano, mas, ou dedicam a Deus o monopólio do mal para a consecução de suas punições, ou são eloqüentemente silenciosos acerca do que fazer. Sabe-se, no pensamento soberano, que maior do que a soberania, Deus, mas a sapiência da infinitude de Deus não produz efeitos que não sejam efeitos, eles mesmos, soberanos. Por isso, o pensamento soberano produz os mesmos efeitos, ainda que façamos a crueldade de pensar o que não pode ser pensado: a não existência de Deus.

V

O percurso argumentativo deste artigo: 1) interrogação da prova ontológica de Anselmo. 2) Percepção de que a estrutura formal do argumento ontológico de Anselmo é aproveitada pelo pensamento soberano. 3) Constatação de que Bodin encaminha a idéia de infinito para a percepção do ilimitado. 4) Interrogação, em Tomás, do fundamento lógico e pathológico da questão da autoridade: na duplicidade soberana do temor e do tremor. 5) A percepção de que o pensamento soberano, apesar da estrutura, pode conceber aquilo que não pode ser concebido.

BIBLIOGRAFIA

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Schneewind, J.B. The Invention of Autonomy: A History of Modern Moral Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.

[1] Aqui o pensamento de Anselmo é comentado de modo pouco ortodoxo, porque inserimos questões que não são próprias ao contexto no qual pensa o autor, mas concernentes ao recebimento da tradição da prova ontológica. O contexto onde Anselmo está inserido é o da discussão entre dialéticos e não-dialéticos. Os dialéticos rejeitam tudo o que é contrário à razão, inclusive as escrituras quando não respeitam as regras do pensar correto, e os não-dialéticos rejeitam a razão, em favor das escrituras e da experiência mística. Anselmo é um dos primeiros grandes pensadores medievais, porque consegue manter-se entre essas duas correntes. Como, via de regra, acontece aos grandes pensadores, dificilmente capturamos a filosofia de Anselmo em um único registro. Não se trata apenas de um lógico, apenas de um medieval ou apenas um homem de orações.

[2] Fernando Gil, Tratado Da Evidência (Lisboa: Impr. Nac.-Casa da Moeda, 1996). p. 145.

[3] Anselmo, Proslogion (Porto: Porto Editora, 1996). p. 20-21.

[4] Ibid. p. 23.

[5] Ibid. p. 25.

[6] Etienne Gilson, A Filosofia Na Idade Média (São Paulo: Martins Fontes, 1995). p. 794-853.

[7] Anselmo, Proslogion. p. 23.

[8] “O que discutimos até aqui teria um certo grau de validade, mesmo se concedêssemos aquilo que não pode ser concedido… que Deus não existe”.Citadas em J.B. Schneewind, The Invention of Autonomy: A History of Modern Moral Philosophy (Cambridge: Cambridge University Press, 1998). p. 70-81.

[9] Costa Macedo, “Comentários Acerca Do Proslogion,” in Proslogion (Porto: Porto Editora, 1996). p. 74.

[10] Anselmo, Proslogion. p. 32.

[11] Ibid. p. 31.

[12] Ibid. p. 33.

[13] Ibid. p. 32.

[14] Anselm, “The Fall of the Devil,” in Complete Philosophical and Theological Treatises (Minneapolis: Arthur J. Banning Press, 2000). p. 214-215

[15] Fernando Gil, La Conviction ([Paris]: Flammarion, 2000). p. 371.

[16] Jean Bodin, Six Books of the Commonwealth (Oxford: Basil Blackwell Oxford, 1955). p. 25.

[17] Ibid. p. 18-25.

[18] Ibid. p. 25-36.

[19] Ibid. p. 25-36. Para Bodin a soberania é descoberta como fundamento do poder político. O que faz com que a descoberta da soberania produza estabilidade para o exercício do poder, pois se constata: o poder é fundado no exercício do ilimitado, que produz limitações, mas que em-si não pode ser limitado.

[20] Tomás não fala em soberania política, mas em pátria, todavia, o sentido é eminentemente político.

[21] Tomás de Aquino, Suma Teológica, trans. Carlos-Josaphat Pinto de Oliveira, vol. 5 (São Paulo: Edições Loyola, 2004).

[22] Ibid. p. 243.

[23] Ibid. p. 244.

[24] Ibid. p. 244.

[25] Ibid. p. 245, 249, 251, 255 e 259.

[26] Ibid. p. 248.

[27] Ibid. p. 248.

[28] Ibid. p. 261.

[29] Ibid. p. 263.