A Majestade da Razão, por Simon Blackburn

Este Artigo em PDF

Simon Blackburn é professor de Filosofia no Trinity College, Cambridge.

______________________________________________________________________

Resumo

Neste artigo eu contemplo dois fenômenos que têm impressionado teóricos preocupados com o domínio de razões e com o que agora é chamado de ‘normatividade’. Um deles é a tão discutida “externalidade” de razões. De acordo com ela, as razões estão apenas lá, de qualquer maneira. Elas existem mesmo que os agentes não as notem. O outro fenô­meno é o da inescapável ‘normatividade’ de raciocínios do tipo meios-fins. Aqui, a irra­cionalidade de intencionar um fim mas falhar a respeito dos meios é um diferente farol luminoso. Temo que essas apoteoses da razão contenham muito menos do que toca os olhos. À ética não é dada nenhuma nova luz, nem é a sua armadura minimamente refor­çada, nem o seu status remotamente estabelecido além de qualquer coisa sonhada por Hume, por estes entusiasmos contemporâneos. De fato, a enorme quantidade de traba­lhos que têm se dedicado à coroação da razão tem sido quase inteiramente equivocada.

Palavras-Chave

Hume, Razão, Normatividade

Abstract

In this paper I contemplate two phenomena that have impressed theorists concerned with the domain of reasons and of what is now called ‘normativity’.  One is the much-discussed ‘externality’ of reasons. According to this, reasons are just there, anyway. They exist whether or not agents take any notice of them. The other phenomenon is that of the inescapable ‘normativity’ of means-ends reasoning. Here the irrationality of in­tending an end but failing to intend the means is a different shining beacon. I fear that these apotheoses of reason contain much less than meets the eye. Ethics is given no new light, nor is its armoury in the least strengthened, nor is its status beyond anything drea­med of by Hume remotely established, by these contemporary ethusiasms. In fact, the massive amount of work that has gone into the coronation of reason has been almost entirely misdirected.

Key Words

Hume, Raison, Normativity

______________________________________________________________________

 

I. Introdução

Neste artigo eu contemplo dois fenômenos que têm impressionado teóricos preocupados com o domínio de razões e com o que agora é chamado de ‘normatividade’[1]. Um deles é a tão discutida “externalidade” de razões. De acordo com ela, as razões estão apenas lá, de qualquer maneira. Elas existem mesmo que os agentes não as notem. Elas não existem apenas sob a luz de desejos contingentes ou de meras inclinações. Elas são ‘externas’ não ‘internas’. Elas nos conduzem mesmo se, por ignorância ou maldade, não as notemos. Elas fazem brilhar, muito conspicuamente, as luzes da objetividade, da in­dependência, e até da necessidade. Ao se aquecer sob essa luz, a ética é resgatada do lamaçal do sentimento e da preferência; e recupera a dignidade a ela negada por teóricos como Hobbes, Hume, Williams, Gibbard ou eu mesmo. Por isso, a muitos filósofos contemporâneos compete destacar e exaltar a natureza externa de razões, sua brilhante objetividade (Broome 2004; Dancy 2000; Nagel 1970; Parfit 1997; Raz 1975, 1978, 2003; Schafer-Landau 2003; Wallace, 1999).

O outro fenômeno é o da inescapável ‘normatividade’ de raciocínios do tipo meios-fins. Aqui, a irracionalidade de intencionar um fim mas falhar a respeito dos meios é um di­ferente farol luminoso. É da razão pura prática em operação: uma norma incontestável, mais uma vez mostrando uma sublime indiferença a qualquer fraqueza que as pessoas realmente possam ter, idealmente qualificada para fornecer um cavalo de Tróia na in­serção da racionalidade na vida prática. Se o princípio de meios-fim é ao mesmo tempo inequivocamente prático e filho querido da própria racionalidade, então, outros princí­pios da consistência, da humanidade, ou da universalização das máximas de nossas ações podem, talvez, seguir pela brecha liderada pela cidadela humeana. E assim temos a deslumbrante perspectiva que afirma que se as pessoas que escolhem mal estão esco­lhendo contra a razão, então isso pode ser visto como um defeito especial e grave; o que localizaria o tipo de falha que eles estão cometendo. Isso daria a nós, o povo de razão, uma alavanca especial com o qual deslocar os seus vícios. Ser capaz de encurralar pati­fes e vilões em um complexo reservado para aqueles que transgrediram contra a razão e a racionalidade, portanto, representaria um progresso definido.

É triste ter que estragar a festa, mas temo que essas apoteoses da razão contêm muito menos do que toca os olhos. À ética não é dada nenhuma nova luz, nem é a sua arma­dura minimamente reforçada, nem o seu status remotamente estabelecido além de qual­quer coisa sonhada por Hume, por estes entusiasmos contemporâneos. De fato, a enorme quantidade de trabalhos que têm se dedicado à coroação da razão tem sido quase inteiramente equivocada.

 II. Movendo a mente

É evidente que não devemos começar nos iludindo pelo substantivo, pensando na Razão como uma espécie de faculdade ou estrutura mágica. Devemos começar com a relação. Razões são razões para alguma coisa: o dado preliminar é relacional. O campo da rela­ção é menos claro; ou melhor, mais difuso. Proposições são razões para proposições, fatos são razões para intenções e desejos, algumas intenções são razões para outras. Ações têm razões, e uma ação pode ser o motivo de outra para uma ação diferente. Mas, correspondente a cada uma destas e de outras relações há um movimento potencial da mente, um movimento orientado pelo primeiro estado mental, ocasionando o segundo, quando a razão é aceita ou operativa. Então, quando falamos no caráter abstrato de uma proposição sendo uma razão para outra, ou de um fato sendo um motivo de uma norma ou decisão, o campo é o das representações abstratas correspondentes aos movimentos potenciais de uma mente assim guiada. O movimento em questão pode ser o de um es­tado cognitivo ou de um verdadeiro estado de crença para outro – isso quando falamos da razão teórica. Pode ser o que vai da apreensão de um fato sobre uma situação até uma ação, de um desejo ou da formação de um motivo ou intenção – quando falamos da ra­zão prática. Podemos também incluir movimentos que têm a ação em si como seu tér­mino, se quisermos. Um movimento também pode ser derivado de um plano, de uma intenção, ou da suposição de que a diplomacia esteja resolvida, juntamente com a crença sobre os meios que estão abertos, para a postulação ou a adoção de uma estraté­gia para a realização da intenção. Um movimento particular da mente pode, portanto, consistir em Sally perceber que há um rato debaixo da cadeira e inferir que o gato está em algum lugar por perto; ou perceber que arranhar o quadro negro perturba Molly e depois, guiada por este pensamento, supor que deve parar.

A noção de orientação destina-se a sugerir a diferença entre tomar uma coisa como uma razão para o outra e estar sujeito a algum tipo de livre associação em que uma coisa leva a outra, mas não por um processo de raciocínio. É a diferença entre pensar que um res­taurante é caro, e por isso ir a outro lugar, e descobrir (seja consciente ou inconsciente­mente) que o restaurante faz lembrar uma noite há muito tempo com a sua madrasta, e ver-se indo a outro lugar. Uma vez que a relação entre raciocínio e causas do compor­tamento é confusa, pode ser difícil dizer em que consiste a diferença, e certamente ha­verá casos que não são nem claramente uma coisa nem outra. Psicólogos em Newcastle descobriram que nas semanas em que havia um banner com a imagem de olhos direcio­nados para os preços sugeridos do café em uma sala comunitária, o número de pessoas que iam à caixa de contribuições foi três vezes maior do que nas semanas em que o banner fora substituído por uma imagem neutra, de flores. (Bateson, Nettle & Roberts, 2006).  Seria este um caso de livre associação entre a sugestão de estar sendo obser­vado, que levaria a um medo inconsciente de exposição; ou um caso de raciocínio in­consciente, desencadeado pela mesma sugestão, de início na possibilidade de estar sendo observado para o mesmo medo? Para os fins deste artigo, podemos escolher uma ou outra maneira. Devo preocupar-me mais com a sensibilidade consciente como ponto de partida e com a sua tendência de guiar o movimento da mente em questão, ao invés de com as forças subliminares ou subdoxasticas que podem ou não ser computadas como doadoras de razões.

Por representação abstrata quero dizer, simplesmente, que podemos deixar de fora a menção a agentes reais e seus estados reais da mente, e contemplar a orientação pura­mente em abstrato, considerada como uma relação entre as verdades, ou entre as verda­des e as possíveis intenções ou desejos. Podemos dizer, por exemplo, que o fato de uma ação angustiar pessoas é a razão para uma desistência, ou que o fato de haver um rato morto sob a cadeira é uma razão para inferir que existe uma gato por perto. Muitas ve­zes é difícil enquadrar essas relações abstratas sem uma cláusula ceteris paribus, uma vez que as circunstâncias particulares de casos particulares podem anular a razão. Se você tiver um furão como animal de estimação, um rato morto pode não ser uma razão para inferir a presença de um gato; e se alguém não estiver angustiado por que o que você faz é não o afeta, pode ser que não haja razão para parar. Assim, a generalização abstrata pode ser um guia geral útil, mesmo que aberta a exceções.

7. Alguns filósofos insistem que os movimentos reais e potenciais da mente devem co­meçar a partir de cognições genuínas, ou mesmo de fatos. Devo sobretudo adiar a apli­cação desta ideia, segundo a qual uma falsa crença ou um mal-entendido não fornece uma razão para nada. Podemos dizer que elas não fornecem um motivo real para nada, no entanto, desafortunadamente, algumas pessoas acreditam que sim. Eu não gosto in­teiramente desta estipulação, uma vez que ela nos obriga a dizer que as pessoas que, por pouca ou nenhuma falha própria, não entenderam os fatos mas inferiram ou agiram em conformidade, não tinham uma boa razão, ou não tinham uma razão real para o que fi­zeram. Isso soa áspero, pois elas podem não ter sido de todo irracionais, afinal. Elas certamente tinham suas razões para o que fizeram, e podem ter agido bem à sua luz. O general que está mal informado por uma fonte – que normalmente é confiável – sobre a disposição de tropas inimigas e mesmo assim planeja bem, só é injustamente acusado de não ter tido nenhuma razão para o que fez; ao contrário do que tem informação ade­quada e, em seguida, estraga completamente seus planos. O segundo pode ir à corte marcial por agir irracionalmente ou sem nenhuma razão, o primeiro certamente não. Da mesma forma que a vítima de uma alucinação que a leva a ‘perceber’ um rato na gaveta age de forma razoavelmente suficiente ao, em seguida, fechá-la; apesar de seu movi­mento da mente não ter começado com apreensão de um fato. No entanto, nada impor­tante se articula sobre esta estipulação no que se segue. Poderíamos, nestes casos, seguir o curso de dizer que houve depois de todas as razões ‘factíveis’ em jogo, não o fato de as tropas inimigas, sendo assim-e-assim, nem o fato da proximidade do rato, pois estes não eram fatos, mas o fato de que o informante relatou como ele fez, ou o fato de que parecia haver um rato lá. Da mesma forma, no caso de Newcastle, não podemos falar em assuntos fundamentados a partir do fato de estar sendo observado, mas podemos optar por dizer que eles são fundamentados pelo o fato de que existe a possibilidade de estar sendo observado. Como um aparte, é interessante perceber que uma versão exage­rada da ideia de que apenas fatos geram razões desempenha um papel importante em Spinoza, para quem a razão deve evitar as entradas da experiência (percepção), uma vez que os sentidos provocam ideias confusas ou mal interpretadas, e também porque nós somos “passivos” diante deles, e isso mancha o livre exercício da razão (Spinoza 2001, 3.1.3; Bennett 1984, 324-8). Mas podemos limitar o nosso campo de compreensões ge­nuínas, verdadeiras representações, sem qualquer restrição incapacitante.

É claro que objetivos e intenções – bem como apreensões – proporcionam razões e in­troduzem uma outra necessidade de cuidados em nosso placar. A razão que faz Sally arranhar o quadro-negro pode irritar Molly. Se dissermos, como sem dúvida devería­mos, que esta era uma má razão, o que temos é, infelizmente, uma ambiguidade entre avaliar negativamente a intenção de Sally e avaliar negativamente o meio que ela ado­tou para perceber isso. Podemos querer fazer isso se, por exemplo, não víssemos pro­blema na travessura de Sally enquanto Molly estivesse, por acaso, fora de um raio audi­tivo. É importante distingui-los, uma vez que imputam falhas bastante diferentes para Sally. A distinção seria importante, por exemplo, se conjecturamos a possibilidade de Sally irritar Molly no futuro.

Quando dizemos que o campo da razão é o dos movimentos da mente, devemos incluir falhas como o tipo de coisa que excita os veredictos de razoável ou vice-versa. Gordon pode ser razoável ao ignorar as intervenções de Jack, ou falhar em deixar de perceber sinais da angústia de Molly. Este é apenas um exemplo da maneira pela qual mais ge­ralmente criticamos tanto falhas de ação assim quanto ações positivas.

Então o que estamos dizendo sobre o movimento real ou potencial da mente? Dizemos que p é uma razão para q ou que o fato de x ser uma razão para fazer y quando achamos que é bom inferir q de p, ou ser movido à fazer y sobre a apreensão de x. Ao evocar a relação, elogiamos ou endossamos o tipo de orientação da mente que ela indica. O mo­vimento de apreensão do que a angústia até a sua parada seria um bom movimento da mente de Sally. Seria bom, mesmo se, de fato, Sally não soubesse nada sobre a angústia de Molly, ou não se importasse nem um pouco com isso, ou se estivesse ativamente gostando disso. Seria bom mesmo que Sally não pudesse faze-lo, talvez por algum tipo de insensibilidade arraigada ou alguma determinação igualmente arraigada e imóvel de ignorar ou humilhar Molly. A razão para Sally parar está apenas lá de qualquer maneira – é a angústia de Molly – e Sally, ou uma versão ligeiramente melhorada de Sally pode apreendê-lo pela percepção normal. Mas isso não significa que ela precisa de mais nada para apreendê-la como uma razão para parar. Ela pode ou não ser guiada por isso. Se ela for, diremos que ela está sendo razoável, como modo de elogiá-la.

III. A Blind Alley – Um Beco Sem Saída

A cegueira ou má-formação de um agente pode impedir que um bom motivo para um movimento seja sua razão para fazer qualquer coisa. Quando descrevemos a sua razão, estamos simplesmente produzindo um fato e uma explicação de seus estados – a forma como a sua mente foi guiada. Isso não tem nada a ver com a forma como ser guiado teria sido bom para ele. Quando os agentes não só não são movidos, mas não podem ser movidos na direção certa, eles ainda são passíveis de críticas. Esse é o único sentido no qual razões são externas. Isto por sua vez significa que não existe absolutamente ne­nhuma necessidade de seguir o movimento lamentável de Bernard Williams de criar perfis contingentes da preocupação real de um agente para determinar o que deve ser dito no contexto de uma avaliação. Isso acontece mesmo que, como Williams, expan­damos o domínio das preocupações reais de um agente para incluir um conjunto ideali­zado de preocupações, os únicos sobre os quais eles poderiam deliberar sobre maneiras que eles mesmos aprovem. Assim, quando Williams considera um agente, que é um agressor doméstico confirmado, e que não tem recursos internos suficientes para delibe­rar sobre a melhor maneira de ser, ele acha difícil julgar que haja uma boa razão para ele parar (Williams, 1995, p . 191). Eu digo o contrário, que não há nenhuma dificuldade aqui. Há de fato uma boa razão – uma excelente razão – para ele parar. Ele não vê razão para parar e talvez sua mente seja tão corrupta ou empobrecida, de modo a sempre a ser guiada dessa forma, ou até mesmo para que ele compreenda qualquer melhoria a res­peito disso. No entanto, seria melhor se ele o fizesse. Alguns podem ser otimistas o su­ficiente para supor que todos os seres humanos têm recursos suficientes dentro deles para adotar, como sua razão de agir, qualquer coisa que seja de fato razoável. É boa e piedosa, a esperança; mas a nossa linguagem e pensamentos estão longe de pressupô-lo de início. Não há necessidade de qualquer pressuposto otimista para afirmar que qual­quer agente pode ser movido por qualquer razão.

Com isso entendido, todo esse debate entre “internalistas” e “externalistas” na teoria da razão desmorona. Os externalistas estavam certos de que as razões estão apenas lá de qualquer maneira, ao pô-las em relação aos pontos de partida das orientações da mente – isto é, independentemente de determinadas pessoas as notarem, ou poderem pôr-se a mover em boas direções por causa delas. Mas esta é uma vitória inteiramente oca, para os internalistas permanece certo que é apenas à luz de formas contingentes que podemos exercer movimentos desse tipo; assim como, obviamente, é apenas à luz das formas contingentes que os elogiamos e os endossamos. Desta forma, o fenômeno não é de in­teresse do debate entre humeanos na teoria da motivação e valor, e outros.

 IV. Tipos de Orientação

Devemos notar que é do tipo de orientação que estamos falando, não do seu objetivo, nem de suas consequências. A princípio, uma boa viagem pode levá-lo a um lugar ruim, ou um mau caminho para um bom lugar, mas os movimentos são bons ou ruins pelo que eles são, não pelo lugar onde o levam. Pode ser bom que Henry tenha voltado para a casa (porque ele achou que o gato estava trancado no banheiro), mesmo que ele não tivesse uma boa razão para isso, mesmo que ele tenha decidido fazê-lo por causa de alguma neurose, ou de algum projeto nefasto. Houve, de fato, um bom movimento da mente que poderia ter sido feito – a partir do pensamento de que o gato pudesse estar trancado, até a decisão de voltar para a casa – mas não foi isso que aconteceu. Por outro lado, pode ser uma pena que Sally tenha passado a acreditar que o gato estava por perto, porque seu plano era decapita-lo; embora sua razão para acreditar nisso fosse a – per­feitamente boa – de que havia um rato morto embaixo da mesa. Pode ser bom que Ce­dric tenha trazido flores à Sally em seu aniversário, mesmo que a razão para isso fosse à má de nela provocar reações alérgicas. Você pode mover-se de uma forma ruim mas chegar a verdades, e assim fazer a coisa certa ou louvável. E, inversamente, você pode mover-se bem, mas mudar-se para falsidades, e assim fazer a coisa errada ou lamentá­vel, embora devamos aceitar que existem alguns destinos tão ruins que de forma alguma poderiam contar com um caminho agradável que o salvasse – a intenção de cometer genocídio, por exemplo.

Uma distinção que não precisamos habitar encontra-se entre movimentos que de alguma forma são deliberados. Aqueles com que o próprio agente sente-se confortável, ou que aprova; e movimentos que o agente conhece mesmo que não conscientemente, ou dos quais pode querer distância. Isso está perto da distinção de Gibbard entre aceitar uma norma e ser tomado por uma (Gibbard, 1990). Assim, pode-se dizer que alguém que esteja tomado por um fetiche ou por uma compulsão não tem uma razão para fazer o que faz, mas se encontra provocado ??a fazê-lo, como se por alguma força externa. En­tretanto, pode-se igualmente dizer que ele tivera uma razão para agir de tal forma. Leôncio de Platão, que tinha um apego vergonhoso a cadáveres recentemente executa­dos, encontrou-se suficientemente tomado pela notícia de que havia cadáveres a serem vistos, para ir a vê-los (Platão, 2008, IV, 439e). Ele pode ter sentido como se estivesse a fazê-lo “quase” contra sua própria vontade. Mas podemos corretamente dizer que ele tinha o seu motivo para ir. O que não diremos é que o fato de que há cadáveres recen­temente executados em algum lugar é realmente um motivo para ir olhar, a menos que nós queiramos pensar no mesmo processo, por exemplo, com estudantes de medicina.

No caso da razão teórica, a nossa noção de como verdades se relacionam entre si nos dá nossos padrões de movimentos bons ou maus. É claro que não é completamente fácil descrever as relações por trás desses padrões. Mas nós conhecemos o padrão geral. A premissa p faz q mais provável, ou q fornece a melhor explicação para p ou a explicação mais simples ou apenas plausível de p. O padrão de ouro, é claro, é que p não pode ser verdade sem que q seja verda.de, mas poucos movimentos da mente são guiados pelas relações que atendem ao padrão de ouro, exceto em salas de aula de lógica e matemá­tica. Na maioria dos casos, temos que nos contentar com menos; ou, se usarmos o termo modal, pode ser porque estejamos operando sob a suposição contextual tácita de que algumas possibilidades são muito estranhas ou irrelevantes para serem levadas em con­sideração (Lewis, 1996). Quando nos contentamos com menos, só podemos querer dizer que, de acordo com as circunstâncias, p era uma razão boa o suficiente para assumir q; e aqui as circunstâncias podem determinar não só a probabilidade de q ser falso, mas a gravidade de entender errado e o custo de investigar mais. Algo só pode corresponder a um bom movimento da mente se nada mais paira sobre ele. Isso tem a ver com a relação entre os padrões aléticos e pragmáticos, uma área em que existe uma clara diferença entre o tipo “certo” de razão, para acreditar em algo, e o tipo “errado” da razão, tal qual a vantagem em assim fazê-lo. Uma distinção semelhante surge no raciocínio prático, que se articula sobre a diferença entre uma razão para admirar algo, o que se dá por causa da maneira como algo é meritoso ou merece admiração, e um tipo estranho ou “errado” da razão, como razões estratégicas ou políticas para fazer o mesmo. A dife­rença está no tipo de movimento da mente em questão. Se estamos incitando alguém a admirar algo porque fazê-lo seria político, não estamos recomendando o tipo de movi­mento que leva em conta apenas as propriedades relevantes que a coisa possui, aqueles que consideramos os indicadores de mérito e são orientados para admiração em sua conta. Se – mas somente se – estivéssemos preparados para recomendar este tipo de movimento, diríamos que a coisa possui mérito ou merece admiração. Mas, se vemos vantagem em admirá-la, por exemplo, tornando-se parte de um clube ou ao disfarçar algum retorno financeiro, estamos apenas esperando por um ponto final particular, e o único movimento da mente que é elogiado é aquele que leva em consideração a vanta­gem e tudo  que cerca o ganho. No caso alético, há questões profundas, indo ao cerne do pragmatismo, sobre as conexões entre o sucesso na ação por um lado e uma habilidade cognitiva geral para representar o mundo do outro (Blackburn, 2005). 15.15. Feliz­mente, no entanto, isso não nos interessa neste trabalho.

No caso da razão prática, as normas mais largas são as de avaliação em geral. Se, ao dizer que o incomodo de Molly é uma razão para que Sally pare , eu recomendo, en­dosso, ou expresso aprovação do movimento da mente em que Sally perturba Molly e, como resultado ela desiste; passamos a um julgamento ético. Eu tenho minhas próprias razões para isso: eu defendo que as coisas vão melhor se as pessoas forem guiadas dessa forma. Se eu vou mais longe e digo que esta é uma razão decisiva ou obrigatória para a desistência de Sally, então eu não apenas elogio o movimento, mas insisto nisso ou o considero como obrigatório, neste ponto já estaremos prontos para censurar Sally se ela não agir da forma adequada.

Existem, obviamente, muitas maneiras, para nossas mentes, de estar aquém das expec­tativas. Podemos estar inquietos ou letárgicos: muito rápidos ou muito lentos para for­mar crenças, atitudes ou emoções. Nosso movimento que vai da apreensão da realidade à ira flamejante pode ser muito lamentável. Se estamos de cabeça quente, logo, irracio­nais. Não podemos ser movidos de maneira a alterar as nossas opiniões com os comen­tários ajuizados de outros. Somos teimosos, portanto, irracionais. Há muitas, muitas, maneiras de agir errado, e nenhum de nós as evita a todo o tempo.

Em casos normais de sucumbência à tentação, podemos ser descritos, ainda que inutil­mente, como sendo irracionais. Ver a situação como ela é, e julgar que tal ação é o me­lhor a se fazer dada a forma como as coisas estão, e depois fazer a outra coisa, é o caso padrão de sucumbir a uma tentação, e será geralmente (embora nem sempre) um tipo de movimento mau ou inferior da cabeça, isto é, um caso de não ser razoável.[2] Talvez seja isso que os teóricos são depois de falar em akrasia como envolvendo irracionalidade, uma afirmação que de outra forma pareceria órfã de qualquer cadeia sensível de pensa­mento.

Se a vida fosse simples, a virtude da razão seria simplesmente uma questão de se mover bem, uma relação diádica de cada vez. Mas é claro que ela não é. Muitas considerações clamam por atenção, muitos movimentos que de outra forma seria bons são anulados ou superados por outros. Os phronimos ou pessoas de juízo e razão prática não precisam apenas de sensibilidade para razões, uma de cada vez, mas da capacidade de uni-las, pesá-las e priorizá-las. Tanto melhor que eles o façam, mais razoável permitimos que sejam.

Uma vez que os movimentos da mente, no sentido generoso que nós nos demos, ocu­pam tanto do território da ética, deve ser pouco surpreendente que o projeto de Scanlon de ‘desresponsabilização”, de ver conversas sobre bom e mau, certo e errado, obrigação e culpa, como veredictos em termos de ‘razões’, pode ser viável (Scanlon, 1998). Tam­bém não é de se estranhar que Michael Smith possa incitar a soberania do sujeito ideal­mente racional, uma vez que este será apenas o sujeito cuja mente se move exatamente como deveria.[3] Mas, é claro, a aquisição é meramente nominal. São todos movimentos dentro da ética. Não nos é fornecida qualquer metodologia independente, ou de subscri­ção independente da ética como um domínio. A sugestão que temos seguido não nos diz nada sobre a autoridade destes veredictos sobre bons ou maus movimentos práticos da mente. Eles simplesmente utilizam os julgamentos por eles mesmos. Se já estávamos preocupados com objetividade antes, seremos incomodados por ela depois. A despeito de qualquer aparência contrária, essa conversa sobre razões não traz nenhum novo pa­drão, nenhum suporte para qualquer padrão que possamos implementar.

V. Maus Tratos contra Animais

Derek Parfit escreve que “outros animais podem ser motivados por desejos e crenças. Só nós podemos compreender e responder às razões” (Parfit 1997, p. 127).  Mas agora vemos que a coisa não é bem assim. O fato de haver uma cobra no caminho é uma ex­celente razão para dar um passo para o lado. Mas também é uma excelente razão para o meu cão assim fazer, e o cão pode fazê-lo de forma tão rápida e ágil quanto eu. Animais de fato diferem de nós: nós podemos trazer à mente faixas mais amplas de considera­ções, e realizar estimativas complexas de razões para priorizar. Mas nessa ocasião, o cão responde à razão até com mais espontaneidade do que eu. Parfit havia dito, correta­mente, que “razões para agir são fatos que contam a favor de algum ato” (p. 121), e nessa situação, o cachorro entendeu e respondeu de forma inteligente para uma delas – o fato que contou a favor de saltar para o lado, assim como eu fiz.

Parfit provavelmente não tinha a intenção de negar, como ele acabou fazendo, que o cão responde a razões. O teor de sua discussão, como o de muitas outras, é que nós mesmos não estamos apenas respondendo à presença da cobra, mas à algum “caráter normativo” da cobra ou, em outras palavras, algo de caráter ainda mais avaliativo ou deontológico sobre o fato de ela estar no caminho. Uma auréola de normatividade beatifica a união entre a presença da cobra e o passo subsequente para o lado, um esplendor do qual Par­fit, mas não o cão, pode gozar.

Não é preciso dizer, isso é pura fantasia. A posição e a postura da cobra são suficientes para fazer alguém pular. Nós não precisamos responder a qualquer coisa mais ou dife­rente, na verdade; já que a velocidade é provavelmente a essência, não temos necessi­dade de fazê-lo. Não há tempo para um processamento extra. E uma vez que o passo para o lado é altamente necessário, este é um bom movimento da mente, igualmente para o cão. Poderíamos, se quisermos, dar algum significado ao dizer que nós, mas não o cão, vemos a cobra como um motivo para pular de lado. Se isso significa mais do que como estamos dispostos a agir, uma propriedade que nós compartilhamos com o cão, então deve ser algo que esteja ao longo das linhas de nossa satisfação com o movi­mento, ou a boa vontade em apoiá-lo e recomendá-lo para ocasiões semelhantes; ou em outras palavras, a nossa própria avaliação positiva da nossa própria conduta. Isso é tudo o que nos separa do cão. Se a tivermos como algo negativo e dissermos que sim, que não lamentamos o movimento ou sentimos vergonha dele, ou inclinados a pedir descul­pas por isso, então mais uma vez o cão e nós estamos todos na mesma situação, uma vez que ele também não sente arrependimento ou tendência para se desculpar. Talvez um jovem mangusto sinta alguma proto-versão dessas emoções, fosse seu passo para o lado ridicularizado como covarde por seus mentores mangusto. Mas não o cão, e nós com­partilhamos tudo que é essencial para andar com igual segurança através da floresta. Assim, não há nada sobre nossos pensamentos realizados em termos de razões que pro­porcione alguma evidência para o intuicionismo especista de Parfit.

Será que ganhamos algo ao subscrevermo-nos à tese de que, se um agente tem uma ra­zão para fazer algo e está devidamente ciente da razão que obtém, então ele deve ser motivado a fazê-lo, “sob o desconforto da irracionalidade” (Wallace, 1999, p. 218, ci­tando muitos outros)? Primeiro, note-se que não é muito evidente o quão grave é esse desconforto: Sally e sua malícia pode, evidentemente, encontrar-se bastante contente. Se queremos tornar Sally melhor pelo desconforto da ameaça, é melhor que seja de um tipo diferente. E a maioria das pessoas acha que é suficiente chamar as crianças como Sally de impertinente, insensível, maldosa, descuidada, insensível, ou mesmo má, enquanto que afinal era a dor que a cobra pode causar, mais do que qualquer outro desconforto imaginário, que explica o nosso passo para o lado. Nós pensamos ‘Oh céus, ela pode me morder’ ao invés de ‘Oh céus, como é horrível sentir-se irracional”. É a invocação da irracionalidade uma melhoria, ou, como parece, um simples gesto – um empobreci­mento que clareia texturas interessantes ou determinados passos para o lado de casos individuais de vício e virtude? Nos moveríamos, é claro, como a mente de Sally, de melhores maneiras. Gostaríamos que a angústia de Molly a orientasse de forma mais confiável, no caminho inverso do que evidentemente se traça agora. Temos dispositivos familiares de persuasão e argumentação. Você gostaria que Molly fizesse o mesmo com você? poderíamos perguntar. Talvez Sally não se importe com o som de unhas na lousa, mas Molly poderia fazer tudo recíproco tocando sua gaita de foles, o que tanto irrita Sally. Sally certamente não gostaria disso. Esperamos que pensar sobre isso a motive a parar. Mas pode ser que não. Ela pode apostar na bondade e no perdão de Molly, que não tocaria sua gaita, ou apostar que seus pais a parariam se ela o fizesse. Ou então, ela pode esperar Molly tocar sua gaita, para testar o incomodo primeiro. Ela poderia até vencer Molly em uma luta. Talvez ela saiba que pode ter que pagar pela diversão mais tarde, mas ainda achar que ser impertinente agora é algo irresistível. Assim, poderíamos tentar esfregar o nariz de Sally na angústia de Molly, esperando ativar a empatia ou compaixão, e daí o remorso e um melhor estado de espírito. Mas talvez nós falhemos; afinal, era a perspectiva de angústia de Molly que animava as travessuras de Sally em primeiro lugar.

24. Então, nós vamos embora balançando nossas cabeças. Sally parece incorrigível. Ela não tem respeito pela lei (e por Molly). Ela não tem o coração no lugar certo. Mas será que tem a cabeça no lugar certo? Diante disso, a compreensão de Sally é impecável. Ela sabe exatamente o que ela está fazendo, e por que ela está fazendo (isso não quer dizer que ela entenda os fatos psicológicos subjacentes a rivalidade entre irmãos). Sugerir agora que é a cabeça que está errada parece simplesmente uma deformation professio­nelle que aflige os filósofos morais, ao invés de uma estrada aberta a novas provas da incorreção de Sally, ou novas terapias para trazê-la de volta para o reto e estreito. É nesse sentido que Bernard Williams zombou do ignis fatuus da filosofia moral: “o ar­gumento de que vai impedi-los em suas trilhas quando eles vêm para levá-lo embora”.

VI. A autoridade da razão.

A área do problema na qual a minha proposta se apura bem é a da “autoridade” da ra­zão, um problema que alguns escritores têm encontrado nas propostas humeanas sobre motivação e desejo. Em um artigo influente sobre este tema, Warren Quinn afirmou que essa não é uma questão básica entre os racionalistas, como ele próprio, e “subjetivistas” ou “non-cognitivistas” (Quinn, 1995). Apesar de renegar os rótulos, ele tem claramente em mente abordagens expressivistas e, em geral, naturalistas, sobre a ética do tipo que sou a favor. Ele escreve que:

A questão básica aqui é mais fundamental: se atitudes, pró e contra, concebidas como estados funcionais que nos dispõem a agir, têm qualquer poder para raciona­lizar essas ações.

Ele ressalta que estados funcionais inúteis e bizarros (como a disposição para ligar qualquer rádio que eu encontre desligado), não ‘me dão sequer uma razão prima fa­cie para ligar rádios’. A disposição pode explicar como eu sou, mas por si só não pode fazer qualquer ato de ligar rádios de forma aleatória resultar em algo sensato. E, depois de rejeitar qualquer tentativa de chamar os estados de ordem superior, tais como atitudes prós ou contra a ter a partir desta primeira ordem de disposição. Para ajudar-nos com este problema, ele conclui que disposições em si mesmas, tais como tendências para tentar obter coisas ou sentir dor por coisas, não ‘racionalizam’ escolhas. Mesmo esco­lhas de meios para determinados fins não são racionalizadas, a menos que os próprios fins sejam. Só uma verdadeira cognição dos objetos de escolha como “bons” poderia fazer isso. Parfit entusiasticamente segue a mesma linha (Parfit 1997, p. 128).

Parece estranho dizer que um movimento, no sentido de, por exemplo, comer um pe­daço de uma torta não é “racionalizado” pela minha fome; por isso precisamos dar uma olhada mais de perto nessa linha de pensamento.  Antes de tudo, que movimento da mente está em questão? Uma proposta seria a de que é o que vai da tomada de cons­ciência de um desejo à tendência de satisfaze-lo. Mas esse não é o caso típico. Ao deli­berar sobre um desejo não somos tipicamente auto-reflexivos, tomando o fato sobre nós mesmos como nosso ponto de partida. Em vez disso, tomamos o fato sobre a nossa situ­ação. Nossos desejos são estados funcionais manifestos na relação entre o fato apreen­dido e a tendência para a ação que dele resulta.[4] Como o desejo de comida, a fome se manifesta na maneira pela qual uma tendência de lidar com as questões da torta é guiada por uma consciência que está a ser anunciada. Será que o desejo, então, “racionaliza” a tendência? Isso explica que, qualquer que seja a maneira como se fala das disposições, pode-se dizer que explicamos as suas manifestações. Mas Quinn, de fato, está certo quando diz que isso, por si só, não mostra se o movimento da mente é bom ou ruim, admirável ou desprezível, e por isso não financia a avaliação da conversa em termos de razão ou racionalidade. Esse não é o seu trabalho. No entanto, tudo o que mostra é que a petição de Quinn – que o desejo deveria validar ou racionalizar a escolha – estava to­talmente equivocada. Entrar na empresa que afirma que um movimento da mente era bom ou “racional” é propor-se a um negócio diferente. Para fazer isso é preciso voltar atrás, e ver se é possível encaixar o movimento em qualquer pratica na área que se en­dossa, ou pelo menos compartilhamentos, entendimentos, ou aceitações como imunes a críticas. O compulsivo, o desejo excêntrico, como o vício de ligar rádios desligados, é inútil, e potencialmente caro e irritante. Por isso estamos longe da disposição de endos­sar o movimento da mente – da consciência de um rádio desligado à motivação de ligá-lo – que manifesta a compulsão.

Quinn pode ter pensado: se desejos particulares não podem se racionalizar, então, nada em nossas disposições cognitivas tomadas como um todo poderia fazê-lo. O quadro é o do mundo humeano com a ‘normatividade’ branqueada de fora. Esta seria uma forma perigosa de argumento, cuja fraqueza é mais familiar a partir de discussões sobre coe­rentismo e fundamentalismo que se aplicam a estados cognitivos. Enquanto muitos es­critores aceitam que a crença não pode validar-se, eles tendem a supor que a sua adesão a um conjunto suficientemente coerente pode fazê-lo. Ou, se outras coisas além de cren­ças são autorizadas a entrar na piscina da justificativa, elas podem incluir coisas como processos e ações, tais como o engajamento dos processos perceptivos na interação cau­sal com o mundo, ou as experiências resultantes de tal compromisso. Se assim começa-se a pintar um quadro satisfatório da justificação cognitiva – que é melhor que se faça, porque ele é realmente o único jogo na cidade – então uma história paralela pode fazer um trabalho paralelo de disposições práticas, primeiro invocando uma matriz inteira de disposições circundantes, e então, potencialmente, invocando a experiência da forma como essas disposições resistem ao teste do tempo, como elas são testadas na prática humana. Este conjunto proporciona o único tribunal que um único desejo poderia en­frentar. Em outras palavras, embora possamos estar para além de qualquer desejo ou disposição particular, e considerar o seu bem à luz de outros desejos e disposições to­madas como um todo, não há nenhum processo de postar-se detrás de todos eles de uma vez, não mais do que não seja o caso da crença. Alguém com a orientação de Quinn pode tentar dizer que enquanto isso serve “apenas para nós”, só poderia nos dizer o que realmente valoramos, mas não o que é de valor. Mas pouco se ganha denegrindo os úni­cos métodos que usamos, ou poderíamos usar. Insistir sobre a clivagem entre “fato” e “valor” neste momento não seria muito como estar protegendo a autonomia do mundo normativo, como tornando-se por um lado imune a atenção e por outro não sem inte­resse concebível. Essas são, de fato, apenas ilusões dos filósofos, não valorações e nor­mas, que são branqueadas fora do mundo humeano.

 VII. Questões Abertas

No entanto, o entusiasmo contemporâneo pelas razões sugere que, em muitas mentes, a substituição da soberania do bem pela soberania das razões é a de não ser apenas uma mudança de idioma, mas uma mudança de regime. É a abertura de caminho para uma nova aurora da filosofia, uma nova derrogação, e um novo território filosófico para ocu­par e explorar. É importante, portanto, considerar a visão de que ao movemo-nos para o território da razão estamos, de fato, movendo-nos. Sugiro que a única tentação restante para pensar nisso deve-se à possibilidade de uma ‘questão aberta’ semelhante à famosa pergunta aberta de Moore sobre a bondade. No entanto, nesta aplicação, esta questão não se abre entre a bondade e alguma propriedade natural, mas entre a razão e a bon­dade. Assim, se tudo o que eu disse é verdade, um crítico pode reclamar: como pode haver a difícil questão em aberto de saber se ser bom é algo sempre razoável? Como pode haver um problema, por exemplo, em saber se a razão pode às vezes exigir um sacrifício de deus em favor de candidatos concorrentes como o auto-interesse? Como poderíamos sequer nos preocupar se a razão está do lado da prudência e auto-interesse, ou do lado da justiça, da benevolência, ou do bem comum?

A questão é muito real, e fertiliza a concepção da razão como um tipo particular de au­toridade, uma estrutura normativa autônoma magnífica o suficiente para ser usada para medir e analisar até mesmo as afirmações próprias da virtude. Mas eu quero explicar a questão em aberto de forma diferente.

Porque, assim como ‘razoável’ e seu clã são termos gerais de louvor, dentre outros ter­mos como tais, podem se inscrever em um elenco particular. Eles podem ser confinados a elogios dentro de um subconjunto de dimensões possíveis. Isto acontece sempre que se fala de “bom para” (a economia, as culturas) ou “bom de” (do ponto de vista dos bancos, dos agricultores), e, da mesma forma que falamos de razões de Estado, razões econômicas, razões de saúde, razões pessoais, ou estratégicas. Considere notória afir­mação de Maquiavel, no capítulo XVIII do Príncipe:

A um príncipe, portanto, não é necessário ter de fato todas as qualidades supracita­das, mas é indispensável parecer tê-las. Aliás, ousarei dizer que, se as tiver e utili­zar sempre, serão danosas, enquanto, se parecer tê-las, serão úteis. Assim, deves permanecer clemente, fiel, humano, íntegro, religioso – e sê-lo, mas com a condi­ção de estares com o ânimo disposto a, quando necessário, não o seres, de modo que possas e saibas como tornar-te o contrário.

Eu não acho que Maquiavel diga em tantos termos que muitas vezes é razoável para um príncipe ser impiedoso, desumano, infiel e tudo mais. Mas ele diz algo que parece como se implicasse isso, a saber, que muitas vezes é absolutamente necessário que ele seja assim, e que se deixar de sê-lo quando a ocasião requer ele não conseguirá poder ou será destruído. O Príncipe, poderíamos dizer, às vezes tem uma razão esmagadora para se comportar de forma cruel, desumana, desleal e de má-fé. Em suma, ele deve se com­portar mal. A dimensão na qual a apologia é dada é simplesmente a de auto-interesse, estabilidade ou sobrevivência; e Maquiavel notoriamente pensa que quando estes com­petem com a bondade convencional não só eles ganham na conduta real dos homens, como é necessário que o façam. Aqui o que o príncipe tem mais razão para fazer não é o que é melhor: o movimento da mente que é elogiado pode ser astuto, enganador, traiço­eiro e desumano. Ele tem que ser essas coisas (embora parecer não ser), a fim de sobre­viver.

Tudo isso está de acordo com a nossa proposta. O ponto é que o movimento astuto e estratégico da mente é realmente louvável. Ele pode não estar a ser elogiado em termos convencionais, é por isso que Maquiavel promoveu tal choque e ganhou sua reputação escura – mas isso é louvável dentro do que ele considerava como as mais importantes dimensões da política, ou seja, a sobrevivência e sucesso. E se pensarmos, é sempre assim. Sempre que alguém descreve um potencial conflito entre a razão e a virtude, o que descobre é que as razões são restritas a uma dimensão. A questão é ainda mais am­pla, mais humana. Virtudes da justiça ou benevolência precisam cercear-se por conta dos pedidos insistentes desta dimensão.

Assim, podemos abrir a questão de saber se ser bom é sempre algo razoável. Não por­que a razão é um legislador autônomo a alguma distância não especificada do bem, cu­jas injunções têm a sua própria autoridade, mas pela possibilidade de essas injunções entrarem em conflito com os preceitos da virtude ou da obrigação.  Nós a abrimos, por exemplo, quando explicita ou implicitamente nos preocupamos com o velho e descon­fortável conflito entre o interesse próprio e as virtudes da consideração do outro. Em um mundo ideal, talvez, poderíamos elogiar cada um, sem nunca classifica-los, pois eles marcham no mesmo passo. Mas no mundo real, e apesar do otimismo de alguns filóso­fos clássicos, qualquer coincidência entre eles é um negócio frágil; servos do mundo não são necessariamente bons administradores de seus próprios interesses, e de fato é uma conquista política levá-los à qualquer coisa parecida com um alinhamento. Maqui­avel achava que, na Itália do seu tempo, tal alinhamento não fora obtido; portanto, as razões de estado tiveram de superar as virtudes mais conhecidas, e era melhor que o príncipe ideal estivesse ciente desse fato feio.

Podemos ter também outros desalinhamentos em mente. Poderíamos perguntar se é sempre razoável, para ser justo, ter em mente potenciais conflitos entre o bem comum e algum outro princípio de justiça. Aqui nós provavelmente limitaríamos a dimensão do louvor indicado pela ‘razão’ às relações consequentes ou utilitárias, e nos preocuparía­mos com o sacrifício do princípio que elas parecem ser capazes de exigir. Mas para re­solver este conflito, se é que ele pode ser resolvido, não podemos apelar para o tribunal autônomo da razão. Nós só podemos andar em volta do nosso próprio pensamento mo­ral e ético, para depois dedicarmo-nos a qualquer resolução que nos agrade.

 VIII. Meios e Fins

Passamos agora para a tão discutida questão de meios e fins do raciocínio, que tão fre­quentemente desfilou como uma espécie de prêmio da “racionalidade prática”, uma res­trição normativa tida como de autoridade quase divina, e até mesmo como um cavalo de Tróia a se inserir na cidadela do naturalismo. Se o naturalismo humeano não pode se­quer notar a majestade desta norma, então ele está realmente em apuros.

Pode valer a pena observar que Kant não pensava assim. O pensamento de Kant é analítico de uma forma que nos indica que, se vislumbramos o fim, vislumbramos o que é conhecido como o único meio para isso:

Na volição de um objeto como meu efeito, a minha causalidade como causa de agir, isto é, o uso de meios, já está pensado, e o imperativo extrai o conceito de ações necessárias para este fim apenas a partir do conceito de vontade deste fim (…) quando eu sei que só por tal ação o efeito proposto pode ocorrer, é uma propo­sição analítica que se eu quero totalmente o efeito, também quero a ação necessária para tal; pois é a mesma coisa, representar algo como um efeito possível por mim de determinada maneira e representar-me como agindo desta forma com relação a isso. (Kant, 1785)

Podemos ver por que ele pode ter pensado isso se considerarmos o problema da inter­pretação oferecida por um agente que pode, à primeira vista, parecer ter a intenção (que vou usar como sinônimo de “vontade”) de um fim, mas mostra pouca ou nenhuma in­clinação para adotar o que ele sabe serem os meios necessários. É pelo menos plausível dizer que não podemos ter certeza de em que pé ele se encontra com relação ao as­sunto.[5] Será que ele realmente possui a intenção de sair para jogar golfe comigo, se ele disse que iria, mas não se preocupou em contatar clubes ou colocar gasolina em seu carro? Talvez ele tenha dito isso mas está descansando confortavelmente em frente à TV. Conforme o tempo passa, a interpretação vacila. Kant diz que apenas se intencio­narmos totalmente o fim temos a intenção dos meios, e isso parece quase certo. Sua intenção pode ser ambígua, ou o seu conhecimento dos meios necessários pode não ser suficientemente firme, como quando ele sabe que a hora de ter saído já passou, mas “espera que algo possa acontecer”. O que está claro é que não podemos contar com ele; nós não sabemos o que ele pensa do projeto de jogar golfe, talvez nem ele o saiba, e provavelmente não há nenhuma realidade determinada sobre onde ele se encontre.  So­cialmente, ele é um incômodo estrondoso, uma vez que na verdade sua confirmação aparentemente sincera acaba servindo apenas para descobrirmos que ele não estará lá.

Uma norma de ação é algo com o que podemos nos conformar, ou falhar em nos con­formar. Mas se Kant está certo, então há uma dificuldade sobre falhar em se conformar com a ‘norma’ de racionalidade de meios-fins. Isso é algo que não pode ser feito. Há, porém, um conjunto de normas muito estreitamente relacionadas, e de fato o nosso er­rante parceiro de golfe apresenta o que é deixar de cumpri-las. Ele é um incômodo, como já foi notado. Ele é incapaz de seguir compromissos aparentes, pois comunicar a intensão de algo do que é provável que o público dependa é normalmente assumir um compromisso.  Ele é um indeciso [weak-willed], no sentido corretamente destacado por Richard Holton, que tem por base as discussões pioneiras de Michael Bratman sobre a virtude da coerência diacrônica em objetivos (Bratman 1988, Holton, 1999). Tudo isso é suficientemente sério, e no fim das contas, tem sido algo conhecido por ser importante por um longo período de tempo: “Nenhum homem, tendo posto a mão no arado e olhado para trás, está apto para o Reino de Deus”. Mas o que ainda não está claro é se existe uma “norma” mais específica de racionalidade de meios-fins, contra a qual ele transgrediu, ou a qual ninguém pode transgredir. É nesta parte do caminho que encon­tramos a doutrina de Kant.

Se houver uma tal norma mais específica, ela requer uma cuidadosa formulação. Vamos considerar apenas situações em que é conhecida, bastante vívida ou wholeheartedly; isso significa que M é o único meio para ter E como fim. Suponha que nós tentemos:

Se uma pessoa pretende o fim F, então ela deve intencionar o meio M.

Em seguida, enfrentamos os problemas da ‘desvinculação factual’, destacada na lógica deôntica pelo paradoxo do homicídio suave (o paradoxo de Forrester) e, recentemente ressuscitado por John Broome e Joseph Raz. O paradoxo original, devemos recordar segue:

Se você matar alguém, então você deve [ought to] matá-lo suavemente

Você mata alguém

Por isso: você deve matá-lo suavemente

Por isso: você deve matá-lo.

O problema é como interpretar a primeira premissa para que a conclusão não a siga, em primeiro lugar por uma simples aplicação de modus ponens, e, por outro, pelo princípio de que se um complexo deve ocorrer em seguida, os seus constituintes devem ocorrer. Pois um assassinato suave também é um assassinato.

Antes de continuar, será bom lembrar de alguns pontos batidos em nós pela lógica for­mal elementar. Um argumento nos leva a conclusões a partir de premissas, e não de crenças para crenças. Se falamos em conclusões de argumentos como sendo ‘desvincu­ladas’, isso não implica que eles sejam aceitos ou que acreditar neles seja uma boa ideia. A não ser que seja uma boa ideia aceitar as premissas, e o fato de que eles implicam em uma conclusão pode contar contra isso. Em segundo lugar, dentro de um argumento, uma conclusão pode ser desvinculada, mas permanecer sob um pressuposto. Desvincu­lar não é o mesmo que descarregar todos os pressupostos ainda em jogo. Não há limite, por exemplo, para as suposições em um jogo no qual premissas de um modus ponens podem ser supostas, e sua conclusão desvinculada – mas ainda assim permanecer sob suposição. A importância de lembrar estas distinções aparecerá em breve.

Um segundo ponto a ser lembrado é que o auxiliar no termo consequente, o “dever” [ought] da deliberação, não é bem um “dever” de ética. Não é assim em ‘se quisermos chegar ao Blackwell, devemos descer a Turl’. Na verdade, o idioma Inglês de todos os dias é muito feliz ao substituir outros auxiliares modais com mais sabor de necessidade e menos de obrigação: “Para chegar a Blackwells você deve [must]/ tem que [have to]/ deveria [should]/ é melhor [had better]/ descer a Turl ‘, e podemos muito igualmente substituir a prescrição condicional: “para chegar a Blackwell, desça a Turl [To get to Blackwells, go down the Turl]. As coisas são mais claras se geralmente reservamos o “dever” [ought] para casos em que há realmente um elemento moral ou valorativo. O ponto a se manter é de que estamos aconselhando a causa da ação no contexto da assun­ção de um fim a ser alcançado.

Um último aviso preliminar é que devemos notar algo de traiçoeiro sobre o nosso hábito de introduzir uma aparente referência a estados da mente, tais como desejos ou inten­ções, no antecedente de tais relações condicionais. No contexto de uma deliberação, o máximo de sentido que pode ser ouvido da relação condicional é que se quisermos al­cançar o fim, devemos intencionar os meios; isto é, em um mundo normal no qual o fim deve ser alcançado, tal e tal é o plano a se adotar. No contexto da deliberação, “se que­remos que ele venha, temos que [have to] escrever uma carta”, “se gostaríamos [would like] de passar um bom tempo é melhor não irmos para Torremolinos”, ou “se deseja­mos [wish] chegar à casa hoje à noite é melhor [had better] sairmos agora”; normal­mente seriam tomadas como dotadas de antecedentes, não de estados da mente, mas da sua satisfação: poderíamos igualmente ou melhor colocá-lo dizendo que “se é para ele vir, … [if he is to come]” “se é para termos um bom tempo, … [if we are to have a good time]” ou “se é para chegar em casa, …[if we are to get home]”. A referência aos dese­jos, intenções ou desejos é, na minha opinião, uma forma incidental de indicar por que estamos interessados ??em planejar esses resultados, em vez de uma forma integral de especificar a condição em si mesma questão. Não há inferência, nenhum movimento da mente, a partir do reconhecimento de um estado da mente ele mesmo para uma de­manda ou plano, mas apenas uma inferência a partir da presunção de que o fim é algo a ser [is to be] alcançado, a se propor um plano para alcançá-lo. Tal menção auxiliar de intenções, vontades ou desejos, também pode se dar com consequentes de relações con­dicionais. Eu poderia dizer: “se você vai fazer [are to do] a limpeza, você vai querer usar um avental”, quando eu suponho que (a) você vai fazer a limpeza até (b) você não quer fazê-lo e (c) você não a fará, e também não quererá usar um avental. A relação condicional não induz contradição, porque a menção de um desejo é incidental ao seu conteúdo real, que é a recomendação: ao fazer a limpeza, use um avental.

 IX. Deliberação

Uma sugestão popular que eu costumo aceitar é que, no paradoxo do homicídio suave, a desvinculação é inválida porque a primeira premissa deve ser interpretada em termos de um “dever” [ought] abrangente. Nós só temos:

Deve [ought] ser isso (ou você não mata ninguém, ou o faz suavemente)

E isso juntamente com ‘você mata alguém’ não produz uma tal inferência.

Mas a leitura abrangente parece improvável nesses termos. Um conselho sobre o que fazer se surge alguma contingência certamente não é o tipo com o qual se faça disjun­ções. Imagine uma corrida de três cavalos. Eu aconselho o meu amigo editor ‘se o Galloper não correr, venda as apostas nos pares do Trotter’. Isso não é o mesmo que ‘venda as apostas dos pares (não importa se Galloper corra ou se Trotter vença) A venda da aposta nos pares que eu aconselhei pode ser uma boa, uma vez que Trotter não é um cavalo tão bom quanto o terceiro competidor, Canter. Então, com vender a aposta eu sugeri que o editor pudesse ganhar algum dinheiro. Mas vender a aposta a partir de um disjunção pode ser uma opção muito ruim, por exemplo, se houver uma chance muito maior do que a dos pares de que Galloper corra. O conselho não diz que não  há relação entre o fato de Galloper correr ou você vender a aposta nos pares, uma vez que você poderia seguir este conselho, mas não o original, ao descobrir que Galloper correrá. Se você obviamente não pode extrair isso do conselho nesse caso, é muito difícil que seja diferente se eu arbitrariamente escolher dá-lo utilizando um verbo auxiliar. ‘se Galloper não correr, você precisa [should]/ é melhor que [better]/ pode ser que queira [might want]/ deve [ought] vender as apostas nos pares no Trotter.

A reformulação proposta é inadequada em outros aspectos importantes. Considere esta conversa, em que Donald, Dick, Condi e George são quatro co-conspiradores:

Donald: Estamos de acordo, então, sobre uma política de aprisionamento aleatório de iraquianos (IRI)

Dick: Se os aprisionarmos, devemos humilhá-los desumanamente (H)

Condi: Não. Se os aprisionarmos, devemos tratá-los com decência e compaixão (não-H). O que você acha, George?

George: Eu concordo com ambos Dick e Condi.

Condi / Dick / Donald: O quê?!

Certamente Condi, Dick e Donald estão certos em se espantar. No contexto da delibera­ção sobre o que fazer supondo que prenderemos iraquianos aleatórios, o comentário de George é completamente confuso.[6] Simplesmente George não está disposto a concor­dar com ambas as propostas; em tratá-los de forma humana ou tratá-los de forma desu­mana.

Isso torna-se óbvio se olharmos novamente para a maneira como naturalmente formu­lamos as relações condicionais. Podemos dizer: “se você vai [are to] matar alguém, você deve [ought to] fazê-lo de forma suave.” A atividade é uma de supor que se admita que o fim está dado, para depois recomendar meios; e esta é uma atividade muito diferente daquela de avaliar o par de <fins/meios> em conjunto, que é toda a proposta recomen­dação abrangente da disjunção. No contexto deliberativo, IRI está sendo tomado como dado, assim como o conselho para vender as apostas nos pares só se torna atrativa se Galloper for tirado do páreo. Acho que a melhor maneira de colocar isto é dizer que a relação condicional nos faz considerar o mais próximo de um mundo normal no qual o fim é dado como algo a ser alcançado, e propõe-se um plano: um plano do que deve ser feito ou do que é o melhor a ser feito nesse mundo, ou para criar esse mundo.[7] A questão de saber se era uma boa ideia alcançar este fim simplesmente não está em questão. Não mais do que quando dizemos “se a grande lama vem vindo, fujam para salvar suas vidas!” e expressamos qualquer atitude, probabilidade ou conveniência da grande lama vir, ou de qualquer complexo que tem um componente como este. A vari­ante do inglês mais próxima do latim talvez seja a mais perspicaz, aqui: quando [when] você matar alguém, você deve matá-lo suavemente.

Com estes pontos entendidos, fica claro que a contribuição de George é, com efeito, uma contradição, um endosso de dois planos incompatíveis. E isso não seria verdade, é claro, se a relação condicional fosse simplesmente um “dever”[ought] abrangente a go­vernar uma disjunção. Se isso assim fosse, a observação de George seria perfeitamente inteligível como uma maneira de dizer ou de deixar implícito que não devemos aprisio­nar iraquianos de forma aleatória. Mas espero que a maioria de nós, simplesmente por causa disso, não concorde com Dick na conversa acima.  Considerando que, se o grande problema da abrangência disjuntiva estivesse correto, poderíamos muito bem fazê-lo. De forma semelhante, considere:

Donald: Os iraquianos não devem ressentirem-se por estarmos lá.

Dick: Se eles o fizerem, devemos espancá-los até a morte.

Condi: Eu concordo com Donald, mas não com Dick.

Se a observação de Dick for analisada ??como ‘deve ser o caso de eles não ressentirem a nossa presença ou eles são espancados até a morte’, o que está de acordo com o que Donald disse, não haveria espaço para a posição de Condi. Mas, obviamente, há.

No contexto da deliberação, a relação condicional ‘se matarmos alguém, então devemos fazê-lo suavemente’ é uma recomendação perfeitamente aceitável de um plano para o mundo normal mais próximo em que estamos, de fato, a assassinar alguém. É muito melhor fazê-lo suavemente! O ‘dever’ de planejamento se destaca. O plano é depen­dente de um antecedente estar satisfeito: é só se ou quando vamos, matar alguém que devemos seguir o plano para fazê-lo suavemente. Isso é mais evidente quando o assas­sinato é inevitável e irrevogável: os assassinos que contratamos já estão a caminho e não há meio de fazê-los parar, mas podemos de alguma forma obter um analgésico para a vítima antes que eles cheguem, isso é o que devemos fazer (Setiya de 2007 ). Mas a mera suposição ou postulação do fim nos leva ao mesmo contexto deliberativo como de irrevogabilidade real. A proposição consequente é destacável, mesmo que o assassinato não seja irrevogável ou inevitável; ele pode ainda estar sob consideração com o conse­quente apenas desvinculado, da mesma forma que eu nos lembrei desde o início – que qualquer consequente que seja destacado em um argumento formal está potencialmente a caminho de uma reductio ou um modus tollens:

Dick: Mataremos prisioneiros?

Colwyn: Se assim o fizermos, devemos fazê-lo suavemente

Donald: Há uma grande dificuldade quanto a isso, uma vez que nenhum de nossos sol­dados sabem como.

Condi: Ainda assim, Colwyn está certo; então, talvez, depois de tudo, o melhor seria não matar prisioneiros.

Aqui a proposição consequente é provisoriamente desvinculada, uma implicação fun­cionou (o plano requer recursos que não temos), e se transformou em uma objeção à proposta de assassinar prisioneiros. A proposição consequente é desvinculada, assim como qualquer proposição pode o ser no decurso de qualquer inferência, não necessaria­mente como algo a ser aceito por mérito próprio, mas sob uma suposição, provisoria­mente, a caminho de continuar a inferência e, em seguida, potencialmente, a um retro­cesso, na direção da suposição antecedente original. É aqui que devemos lembrar as observações que fiz sobre a desvinculação não ser o mesmo que aceitação.

Tudo isso é o contexto de deliberação. Repetir, nesse contexto, uma relação condicional “se pretendemos E devemos fazer M”, é sinalizar a aprovação de um plano de ação (M) no mundo normal em que estamos a realizar ou fazer acontecer E. Nada é dito sobre a possibilidade de ter propriamente a intenção ser uma ideia boa, moralmente aceitável, inevitável, ou qualquer outra coisa. Uma consequência das deliberações em que as rela­ções condicionais funcionam apenas como normalmente o fazem (sustentando um modus ponens, abrindo o caminho para um modus tollens), pode ser a de torná-la mais clara do que antes, quando era melhor abandonar a própria intenção. E, nesse con­texto, “se pretendemos o fim, então devemos ter a intenção dos meios” é claramente um bom princípio. “Tomando-se o mundo normal mais próximo no qual o fim deve ser [is to be] alcançado, planeje os meios”. Claro que você deve [should], e se Kant estava certo você precisa [must], sob a pena de perder a sua pretensão genuína de intencionar o fim.

Mas isso não quer dizer que, se mudarmos para o contexto diferente – do julgamento externo – precisaremos ver algo de bom, seja ao ter uma intenção, ou ao usar qualquer meio que a intenção requeira para ser cumprida.

 X. Avaliação

Embora a linguagem das razões possa ser usada com cuidado para que as necessárias distinções sejam mantidas, ainda é muito fácil entender tudo de maneira errada. Assim, considere a questão de saber se a intenção do vilão Iago de destruir Otelo ‘fornece uma razão’ ou ‘fornece uma razão normativa “para ele criar mentiras sobre Desde­mona.[8] Naturalmente hesitamos em dizer que ela o faça: nós não queremos nos ouvir recomendando nada sobre a finalidade de Iago, nem sobre os meios que ele adota. Por outro lado, Iago faz do seu planejamento algo impecável; tendo posto a mão no arado, ele não volta atrás, mesmo que esteja arar o campo errado. Como podemos combinar completamente a nossa rejeição da intenção de Iago e suas servas com o reconheci­mento de suas habilidades como um planejador?

Felizmente, temos amplas formas de dizer o que precisa ser dito. Há duas coisas terrí­veis a dizer sobre Iago: ele tinha finalidades de vilão em vista, e escolheu meios de vilão para executá-las. Há uma – talvez relutante – boa coisa a dizer sobre ele: ele é um orga­nizador capaz. Quando ele contempla e destina o mundo normal mais próximo no qual ele está prestes a efetuar a destruição de Otelo, planeja de forma eficiente e, como se vê, de forma bem sucedida. Se imaginarmos, em vez disso, um Iago que (pelo menos apa­rentemente, se nos lembrarmos de Kant) pretende a destruição de Otelo, mas que pouco ou nada faz de efetivo para executá-lo, então as coisas estão invertidas. Há uma coisa ruim a dizer sobre ele – ele não é um planejador eficaz ou eficiente e duas coisas um pouco melhores a serem ditas sobre o cenário Shakespeariano: primeiro que ele não prepara Desdemona, e segundo que a sua intenção de destruir Otelo parece relativa­mente insegura ou hesitante. É um erro tentar encaixar tudo isso, e talvez mais distin­ções, em um veredicto que pretenda afirmar se Iago teve ou não uma “razão normativa” para o seu comportamento, ou qualquer parte dele. A linguagem simplesmente não su­portaria a complexidade da distinção entre a perspectiva de deliberação e de avaliação externa, e também incentiva a desatenção para com a diferença crucial entre a descrição de Iago (dar-se em termos de suas razões para fazer uma coisa ou outra) e o endosso de uma ou outra faceta dos movimentos de sua mente.

Uma confluência que auxilia na confusão desta questão é que a relação condicional “se pretendemos o fim devemos pretender os meios” pode soar como se o antecedente loca­lizasse um estado da mente. Em seguida, parece que a questão deve ser se a nossa posse desse estado da mente fornece algum tipo de razão para supor que “deveriamos” [ou­ght], talvez em algum forte sentido ético, intencionar os meios. E isso geralmente soa ultrajante: como podemos determinarmo-nos a ter razões ou mesmo obrigações, com tanta facilidade? Mas, como já discutido, no contexto de deliberação a aparente referên­cia a um estado da mente é incidental. Não há inferência que parta de um estado da mente para um plano, mas apenas uma suposição de que algo está a ser feito em direção à seleção condicional de um plano para alcançá-lo. Com isso temos a aparência de que a racionalidade de meios-fins, ou a normatividade de meios-fins, fornece um problema para humeanos, como uma joia brilhante que eles não podem tocar. O que, portanto, faz como que todo incentivo que tivéssemos para minerar para os outros desapareça.

 XI. A Plasticidade da razão

Se jogarmos fora a atenção para a natureza particular das falhas das pessoas, preferindo um diagnóstico que as ponha como ‘desarrazoadas’ ou ‘irracionais’ sempre que suas mentes se movam de maneiras que nós pensamos que sejam inferiores, não só perdemos texturas e distinções importantes, mas também perdemos mais chances de engajamento e melhora. Pois ‘desarrazoado’ e – ainda mais – “irracional” não funcionam somente como termos gerais para denegrir o movimento das mentes das pessoas. Eles geralmente têm conotações mais sinistras cujo defeito é irremediável; que não são sensíveis à pres­são discursiva, o que nos licencia a trata-los como um paciente, ou, em outros casos, como algo além do limite humano, ou fora do jogo. Voltemos à errante Sally. Podemos dizer, claro, que Sally é irracional ou desarrazoada, que sua mente está sendo guiada por maus caminhos. O que não podemos fazer é investir o termo com mais interesse do que ele ganha quando apontamos para as descrições mais específicas e perspicazes das fa­lhas específicas que infectam o personagem de Sally. Mas, se quisermos melhorar a Sally, são seus defeitos particulares que necessitam de atenção especial. Podemos que­rer valorizar Sally um pouco mais, ter cuidado com a forma como louvamos Molly quando Sally está presente, sermos mais cuidadosos ao proporcionar oportunidades para a inveja e o ciúme, e assim por diante. Em ambientes mais severos, poderíamos ter quisto assustá-la ou suborná-la. Seja o que racionalistas, intuicionistas, realistas, kantia­nos, ou platônicos possam dizer, estas são as únicas ferramentas que ninguém tem. Po­demos vencer no final. Sally pode não ser irremediável depois de tudo. Pois uma impli­cação de tudo isto é que a razão é tão flexível quanto o sentimento.


[1] Devo dizer que tenho dúvidas sobre o termo, e geralmente me pego o escrevendo como sous rasure. Acredito que Fodor disse que ‘vacas fazem “moo”, mas filósofos fazem’ noorma ‘”, e eu concordo.

[2] As exceções que tenho em mente são casos do tipo Huckleberry Finn. Ver Bennett 1974.

 [3] Neste trabalho eu não destaco qualquer diferença entre as palavras ‘racional’ e ‘razoá­vel’. Acréscimos teóricos à parte, acho que eles não vão além de como Edward Craig uma vez colocou para mim: ser razoável apenas significa ser razoavelmente racio­nal.

 [4] No meu 1998, p.254, eu digo que esse é o “erro característico de toda uma geração de teóricos que querem ir além de Hume”, e dez anos mais tarde eu posso adicionar cerca de um terço de uma nova geração.

[5] Sou grato em adotar essa útil expressão de Michael Bratman.

[6] A separação dos contextos de deliberação de contextos de julgamento foi recomen­dada em Thomason 1981.

[7] Eu falo do próximo mundo normal, seguindo Bonevac 1998. O ponto de vista é que condicionais nos levam para o mais próximo mundo normal no qual seu antecedente está satisfeito. Esse não é necessariamente o mundo mais próximo, desde que o mundo real pode ser anormal. A consequência é que a lógica condicional não é monotônica. Condicionais no discurso comum não aceitam reforço: ‘se você virar a ignição o carro vai ligar’ pode ser verdade, enquanto ‘se você ligar a ignição depois de tirar a bateria, o carro vai ligar’ não é.

 [8] A pergunta refere-se nestes termos à Michael Bratman …

Tradução: Hugo Arruda