La Mettrie, Filósofo da Felicidade Individual, por Alex Castro

Este Artigo em PDF

Alex Castro é doutorando e ensina no Departamento de Espanhol e Português de Tulane University, em Nova Orleans.

___________________________________________________________________

Resumo

Em julho de 1846, as autoridades parisienses simultaneamente proibiram, confiscaram e queimaram a História Natural da Alma, de Julien Offray de La Mettrie (1709-1751), e os Pensamentos Filosóficos, de Denis Diderot (1713-84), unindo na mesma fogueira os dois pensadores que, segundo Jonathan Israel, melhor encarnam o Iluminismo radical de meados do XVIII. Diderot tinha uma relação especialmente ambivalente com La Mettrie: atacava-o em público, mas concordava com ele em muitos textos póstumos que jamais permitiu publicar em vida.

Palavras-chave:

Iluminismo, La Mettrie

Abstract

In July 1846, the Paris authorities both banned,?confiscated and burned the Natural History of the Soul, Julien Offray de La?Mettrie (1709-1751), and Philosophical Thought, of Denis Diderot (1713-84),?uniting in the same fire the two thinkers who, according to Jonathan Israel, best embody the radical Enlightenment of the mid-eighteenth century. Diderot had an especially ambivalent relationship with La Mettrie, attacked him in public, but agreed with him in many posthumous texts that never allowed to publish in his lifetime.

Key words

Enlightment, La Mettrie

___________________________________________________________________

Introdução

Em julho de 1846, as autoridades parisienses simultaneamente proibiram, confiscaram e queimaram a História Natural da Alma, de Julien Offray de La Mettrie (1709-1751), e os Pensamentos Filosóficos, de Denis Diderot (1713-84), unindo na mesma fogueira os dois pensadores que, segundo Jonathan Israel[1], melhor encarnam o Iluminismo radical de meados do XVIII. Diderot tinha uma relação especialmente ambivalente com La Mettrie: atacava-o em público, mas concordava com ele em muitos textos póstumos que jamais permitiu publicar em vida. Para Diderot, independentemente de suas convicções pessoais, a filosofia era uma atividade pública e política, cujo objetivo era a criação de uma nova sociedade; para La Mettrie, a filosofia voltava-se para o indivíduo e para a busca da felicidade pessoal: mesmo quando concordavam em suas opiniões, ambos os filósofos divergiam quanto à conveniência de utilizá-las e divulgá-las. Nesse movimento ambíguo de atração e repulsão entre estes dois filósofos que mais concordavam do que discordavam já se podem ver as sementes das contradições internas que corroeriam o projeto iluminista.

O filósofo Alasdair MacIntyre, em seu influente estudo Depois da Virtude: Um Estudo em Teoria Moral[2] (1981), define o iluminismo como “uma justificativa racional e independente da moralidade” cujo colapso fornece o pano de fundo contra o qual os dilemas de nossa cultura tornam-se inteligíveis[3]; o iluminismo também seria o projeto moderno por definição, cuja autodestruição inevitável, por suas próprias incoerências internas, teria sido consumada por Nietzsche[4]. John Gray, retomando e concordando com MacIntyre em seu O Velório do Iluminismo (1995), afirma que os valores do iluminismo ainda se mantém apenas por medo das consequências de abandoná-los e por uma ausência manifesta de alternativas coerentes[5]; viveríamos hoje nas ruínas desse projeto autodestrutivo, cujo grande legado foi uma profunda desilusão, pois não criou uma nova civilização mas sim niilismo. A autocorrosão do projeto iluminista traria consigo a ruptura das tradições intelectuais ocidentais, especialmente do projeto, eminentemente moderno, de uma civilização universal[6]. Para Gray, o grande paradoxo da atualidade é uma ocidentalização quase universal do mundo justamente no momento em que o esvaziamento da cultura ocidental pelo niilismo já está quase completo. Quando a humanidade mais deseja ser ocidental, o Ocidente tem menos a oferecer[7]. Nas páginas seguintes, dialogaremos mais a fundo com três dos principais expoentes dessa posição: Max Horkheimer e Theodor Adorno, autores de Dialética do Esclarecimento[8] (1944), e Lester Crocker, autor de Uma Era em Crise: Homem e Mundo no Pensamento Francês do Século XVIII[9] (1959).

Ao mesmo tempo, deixando de lado polemistas ideologicamente comprometidos com a direita religiosa que veem na crítica ao iluminismo um ataque ao Ocidente, muitos historiadores sérios articulam uma defesa apaixonada dos valores do projeto iluminista – como Jonathan Israel, autor de duas excelentes e monumentais histórias do movimento, Iluminismo Radical[10] (2001) e Iluminismo Contestado[11] (2006). Para Israel, as atuais críticas ao projeto iluminista, tanto por parte de pensadores “pós-modernistas, pós-colonialistas, nacionalistas, tradicionalistas ou religiosos”, seria prova da vitalidade dessas ideias; os problemas da moderna teoria moral seriam fruto não do fracasso do projeto iluminista, como defende MacIntyre, mas da oposição, feroz, contínua e mundial, a valores iluministas como igualdade e democracia[12].

Entretanto, consideramos que não se pode adequadamente abordar a questão da crise moral do iluminismo sem uma análise detalhada de um filósofo esquecido por quase todos os pensadores acima: Julien Offray de La Mettrie (1709-1751), autor de O Homem-Máquina (1747) e Discurso sobre a Felicidade (1748). Para Israel, nenhum outro filósofo fez mais para separar a salvação individual da religião e para relocar a redenção pessoal no mundo terreno[13]. Levando o pensamento iluminista às suas últimas consequências, La Mettrie expõe, já no berço e de dentro, as principais contradições internas desse projeto, tornando-se assim odiado tanto por seus adversários quanto por seus partidários.

Pelas próximas páginas, usaremos alternadamente os termos philosophes e iluministas para designar, de acordo com a definição de Crocker, o grupo de escritores franceses do século XVIII que, refutando os dogmas cristãos, a autoridade da Igreja e quase sempre a própria existência de Deus, buscaram pela verdade à luz da razão e da experiência. Não eram filósofos sistemáticos stricto sensu mas pensadores morais e sociais, extremamente polêmicos, muitas vezes com elementos políticos ou científicos[14].

A Crise do Iluminismo

A Dialética do Esclarecimento (1944), de Max Horkheimer e Theodor Adorno, talvez seja o mais famoso livro da chamada Escola de Frankfurt. Escrito sob a sombra tanto do nazismo, do qual ambos autores acabavam de fugir, quanto da indústria cinematográfica de Hollywood da cidade que os acolheu, Horkheimer e Adorno tentam entender as razões para o fracasso do projeto iluminista: por que a humanidade, se perguntam, está entrando em uma época de renovado barbarismo ao invés de na era de paz e prosperidade que vinha sendo anunciada desde o século XVIII? O Ocidente derrubou o absolutismo do rei e a teocracia da Igreja, instaurou a primazia da razão e da ciência, mas o resultado foi o Holocausto. Se, por um lado, o aumento da produtividade e o desenvolvimento da tecnologia permitem maior conforto material à humanidade, esses mesmos avanços técnicos também possibilitam que pequenos grupos exerçam um poder desproporcional sobre o povo com métodos cada vez mais sofisticados de controle e vigilância.

De acordo com os autores, o homem busca entender a natureza, mas somente para dominá-la e aos outros homens. Discordam de Freud, notório ateu, que atribuía ao pensamento mágico uma “confiança inabalável na possibilidade de dominar o mundo” e atribuem essa mesma fé ao pensamento iluminista que vê na ciência a possibilidade de domar a natureza e entender o universo[15]. O pensamento mágico ainda admitia o desconhecido, o inominável, mas o Iluminismo não. Para Horkheimer e Adorno, o iluminismo é um medo radical do mito: ele mata um mito, mas somente para criar outro. Como a ciência teoricamente responde a tudo, nada pode estar fora de sua esfera de atuação: não existe o desconhecido, somente aquilo que a ciência ainda não explicou. Assim, o próprio desconhecido torna-se tabu: “Nada mais pode ficar de fora, porque a simples ideia do “fora” é a verdadeira fonte da angústia…”[16] E acrescentam: “o esclarecimento é totalitário como qualquer outro sistema”[17]. Para ambos os autores, o projeto iluminista destrói os antigos valores metafísicos e religiosos, para substituí-los pela razão e pela ciência, que não possuem dimensão moral: “A existência expurgada dos demônios e de seus descendentes conceituais assume em sua pura naturalidade o caráter numinoso que o mundo de outrora atribuía aos demônios.” Enquanto o antigo animismo atribuía almas aos objetos, o industrialismo, filho do Iluminismo, transforma almas em objetos[18].

Lester Crocker, em Uma Era em Crise (1959), parte de uma questão semelhante à de Horkheimer e Adorno: “Na perda da fundação metafísica dos valores e na consequente confusão e incerteza ética, acredito que podemos observar o primeiro capítulo da crise moral do mundo moderno, que atingiu seu ponto crítico no século XX[19].” De acordo com Crocker, os iluministas não previam a caixa de Pandora que estavam abrindo ao libertar o homem das leis externas e sobrenaturais que o regiam: o custo da independência do homem é a completa falta de sentido do universo, o fim dos antigos valores, a relativização e subjetivação geral da metafísica. Entretanto, mesmos os philosophes que mais deram arcabouço teórico ao projeto iluminista, como Diderot, conseguiram detectar precocemente as fissuras internas do Iluminismo e lutaram contra suas consequências niilistas[20]. Crocker conclui seu livro em um ambíguo movimento de acusação e afastamento: em primeiro lugar, ele afirma que seria patentemente absurdo culpar os philosophes pelas complexas circunstâncias que criaram eventos futuros, mas, em seguida, afirma que essas circunstâncias foram criadas, em grande parte, pelo clima intelectual promovido pela filosofia iluminista. Afinal, é ou não é patentemente absurdo culpar os philosophes pelo uso que outros fizeram de suas ideias? Apesar da construção algo tortuosa, Crocker, assim como Horkheimer e Adorno, atribui a culpa pelos desvios da modernidade solidamente aos pensadores iluministas. O que existia no reino das ideias, escreve Crocker, passou a existir no reino dos eventos políticos: a Revolução Francesa nada mais foi do que o coroamento de um século de esforços para libertar o homem de um milênio de peso morto medieval. O que os homens da Revolução tentaram fazer foi somente criar a sociedade racional que os philosophes tinham sonhado[21].

Sade e os Limites do Iluminismo

Para Horkheimer e Adorno, a personagem emblemática da ideologia iluminista levada às suas últimas consequências é Juliette, do romance homônimo (1797-1801) do Marquês de Sade. Nesse romance, e em toda sua obra, a lógica infernal de Sade desenvolve de forma implacável os argumentos e ideias dos philosophes:

Juliette … tira as consequências que a burguesia queria evitar: ela amaldiçoa o catolicismo, no qual vê a mitologia mais recente e, com ele, a civilização em geral.  … [Ela] não encarna, em termos psicológicos, nem a libido não-sublimada nem a libido regredida, mas o gosto intelectual pela regressão, amor intellectualis diaboli, o prazer de derrotar a civilização com suas próprias armas. Ela ama o sistema e a coerência, e maneja excelentemente o órgão do pensamento racional..[22]

Contraditoriamente, é o próprio prazer de Juliette em propositalmente inverter todos os antigos valores morais que a mantém presa a eles. Ainda são os valores cristãos que definem suas ações e seus prazeres:

Uma vez destruídas todas as ideologias, ela adota como moral pessoal aquilo que a cristandade considerava execrável na ideologia … Como boa filósofa, ela permanece … fria e refletida. Tudo se passa sem ilusões. … Apesar de toda superioridade racional, Juliette conserva ainda uma superstição. Ela reconhece a ingenuidade do sacrilégio, mas acaba por tirar prazer dele. Todo gozo, porém, deixa transparecer uma idolatria. … A natureza não conhece propriamente o gozo: ela não o prolonga além do que é preciso para a satisfação da necessidade. Todo prazer é social.[23]

Sob o domínio da razão implacável do iluminismo, até mesmo o amor que deveria redimir a humanidade é visto como uma regressão à idolatria: “Não foi apenas o amor romântico entre os sexos que, enquanto metafísica, sucumbiu à ciência e à indústria, mas todo o amor em geral, pois nenhum prevalece diante da razão”[24] Sade, apropriadamente, vê o amor somente como um laço econômico. Levando o racionalismo das teorias iluministas ao seu limite, ele argumenta, em Juliette, não haver razão lógica alguma para a proibição ao incesto: “não está absolutamente provado que as crianças nascidas do incesto têm mais tendência do que as outras a serem cretinas, surdas-mudas, raquíticas, etc…”[25] Visto de perto, entretanto, o radicalismo de Sade nos parece diferir dos philosophes somente em grau e intensidade: no Tratado da Natureza Humana (1739-40), por exemplo, David Hume, apesar de admitir a existência de algumas virtudes “naturais”, defende que a maioria das assim-chamadas “virtudes” são artificiais, criadas pela sociedade, e que “Eva não as entenderia”. Cita como exemplo a castidade e a modéstia: como a conexão entre um pai e seus filhos não é tão óbvia quanto a da mãe, a castidade surge como uma estratégia feminina interesseira para criar um elo, artificial e convencionado, entre filhos e homem, dando-lhe o máximo de certeza possível quanto a sua paternidade e, assim, aumentando as chances de que colabore na criação da prole.[26] Não seria difícil imaginar (ou até encontrar, em obra tão vasta) o mesmo argumento sendo cinicamente declamado, em meio a uma bacanal, por Juliette ou algum outro personagem sadeano.

Sade leva o materialismo de Spinoza e Hume ao seu limite: o homem é livre de qualquer restrição moralpois vive em um universo absurdo e sem sentido, sem nenhum valor. Independentemente de seus muitos erros, escreve Crocker, Sade foi o destruidor da auto-ilusão e da auto-cegueira humanas.[27] Por isso, representaria a culminação da revolta filosófica contra o Cristianismo, o elo mais poderoso de uma corrente que vinha do passado:

As mais absolutamente radicais consequências da posição ética e metafísica do ateu do século XVIII são atingidas nas obras do Marquês de Sade, cuja importante posição no pensamento de sua era tem sido vergonhosamente negligenciada. … Sade somente articula as consequências derradeiras … das filosofias radicais desenvolvidas previamente no mesmo século.”[28]

La Mettrie, Autor de O Homem-Máquina

Sade, entretanto, embora se considerasse um filósofo, nunca foi levado a sério como tal. Apesar dos discursos filosóficos de seus personagens desnudarem tão precocemente as contradições internas do projeto iluminista, o elemento de grotesco em suas obras permitiu que fossem facilmente descartadas como delírios de um louco. Somente a partir de meados do século XX, Sade começou a ser reabilitado, se não como filósofo e ficcionista, certamente como um nexo importante para entender a revolução cultural de finais do século XVIII.

Curiosamente, Horkheimer, Adorno, Gray e MacIntyre analisam Sade e também mencionam Nietzsche, filósofo bastante posterior, mas não citam La Mettrie (1709-1751), de uma geração imediatamente anterior à de Sade, contemporâneo de enciclopedistas como Voltaire (1694-1778) e Diderot (1713-84). Sade, entretanto, conhecia e admirava La Mettrie, e inclusive o menciona em seus livros. Em Juliette, um dos personagens afirma, apaixonadamente, que a tirania, a injustiça e a desordem são as principais forças do universo e, por isso, quanto mais atrozes forem os crimes do homem, mais harmoniosa será sua relação com a ordem natural das coisas. E a voz narrativa comenta: “Amável La Mettrie, profundo Helvécius, sábio Montesquieu, por que, se já tinham penetrado nessa verdade, somente aludiram timidamente a ela em seus divinos livros?”[29] Assim como Sade, La Mettrie também buscou levar as ideias iluministas à sua conclusão última e inevitável; ao contrário de Sade, entretanto, La Mettrie era lido e (quase sempre) levado a sério enquanto filósofo. Para Crocker, La Mettrie tem o sistema de pensamento mais rigoroso, consistente e sem concessões de todo o materialismo do século XVIII[30]. Por outro lado, um artigo recente (1999) de William Fossati já traz sua conclusão no título: “Maximum Influence from Minimum Abilities” (literalmente, “máxima influência proveniente de mínimas habilidades”); apesar de pensador medíocre, La Mettrie teria “barbarizado” o iluminismo e sido uma força devastadora na derrubada do antigo regime.[31] Suas ideias polêmicas fizeram com que fosse expulso de dois países, suas obras foram censuradas e proibidas, e filósofos que deveriam ser seus interlocutores tornaram-se seus desafetos. Ainda assim, ou exatamente por isso, La Mettrie foi o filósofo materialista mais conhecido pelo grande público nos anos 1745-50 e se manteve como um dos autores materialistas mais vendidos na França, Alemanha e Países Baixos por décadas após sua morte.[32]

A principal obra de La Mettrie é O Homem-Máquina (1747), na qual o corpo humano foi pela primeira vez descrito e explicado sem recorrer à metafísica, ao sobrenatural ou à busca pela localização fisiológica da alma: para o médico ateu La Mettrie, o corpo humano era como uma máquina, um mecanismo complexo obedecendo a regras precisas. Anti-humanista, La Mettrie via no homem um animal como qualquer outro: “O Homem não é feito de uma argila mais preciosa; a Natureza usou somente uma e a mesma massa, na qual ela somente variou a levedura.”[33] Apesar de hoje parecer banal, o escândalo gerado pelo livro fez com que La Mettrie fosse expulso da França e, posteriormente, da Holanda. Aram Vartanian, um dos maiores especialistas em La Mettrie, considera O Homem-Máquina “o livro mais entusiasticamente [heartly] condenado em uma época de competição feroz por tais honras.”[34] Vartanian também não hesita em chamar o livro de uma “segunda revolução copérnica”, ocorrida em nível local e pessoal ao invés de cósmica e impessoal, ao negar ao homem existir simultaneamente em dois planos, o natural e o sobrenatural.[35]

Em O Discurso sobre a Felicidade (1748), La Mettrie vai além e traça as consequências éticas e morais da doutrina exposta em O Homem-Máquina: se Deus não existe e se o corpo é uma simples máquina, então as fontes da felicidade são, em larga medida, físicas. A felicidade torna-se, portanto, quase sinônimo de saúde: uma pessoa fraca, doente e incapaz jamais poderá ser tão feliz quanto outra no auge da forma física. Cada ser humano, de acordo com seus gostos e propensões, busca a felicidade em uma determinada direção. Para La Mettrie, a verdadeira felicidade consiste em seguir esse impulso. Ao contrário do ascetismo dos estoicos e cristãos, que afirmavam que só o homem virtuoso é feliz, enquanto os maus são sempre desgraçados (literalmente desgraçados, pois não contam com a graça de Deus), La Mettrie rebate que a verdadeira felicidade está completamente ao alcance dos maus e dos pecadores, e até mesmo dos ignorantes e estúpidos: não é o conhecimento ou a virtude que levam à felicidade.

Se os gozos da natureza são crimes, o prazer e a felicidade dos homens consiste em ser criminosos.[36] Sendo o prazer da alma a fonte verdadeira de nossa fortuna[37], é evidente que em relação à felicidade tanto o bem quanto o mal são em si mesmos completamente indiferentes, e que quem obtenha uma satisfação maior fazendo o mal será mais feliz do que quem obtenha uma menor fazendo o bem. O que explica porque tantos velhacos são felizes nesse mundo, e nos faz ver que uma felicidade particular e individual, sem virtude, pode ser encontrada no próprio crime.[38] Toda a diferença que existe entre os bons e os maus é que, em uns, o interesse particular destrói o interesse geral, que se perde de vista imediatamente, enquanto que os outros sacrificam de bom grado, e até com prazer, seu próprio bem em prol do bem público, ou de um amigo.[38] Mesmo que seja parricida, incestuoso, ladrão, perverso, infame e merecidamente execrado pelos homens honestos, ainda assim será feliz. Pois que desgraça e que pesar podem causar ações que, por mais negras e horríveis que supostamente sejam, não deixam (seguindo a hipótese) nenhuma marca do crime na alma do criminoso?[40]

O grande inimigo da felicidade natural do ser humano é o remorso. Para La Mettrie, se felicidade significa saúde, o remorso torna-se então uma verdadeira doença psíquica que deve ser eliminada. O remorso seria o resultado de preconceitos morais arbitrários inoculados desde a infância, com o objetivo único de reprimir desejos e condenar o prazer como inferior, pecaminoso e perverso. La Mettrie considera que as crianças, desde seu nascimento, sofrem uma verdadeira lavagem cerebral: ao mesmo tempo em que os preconceitos, crenças e convicções de sua cultura são mostrados como éticos e intrinsecamente bons, seus desejos naturais são suprimidos e vilificados. Esse processo “leva o nome pomposo de educação”, escreve ele, nada mais é do que o condicionamento mais rasteiro, pouco diferente do que é realizado com cachorros. Assim, ao fazer com que ações e atitudes totalmente antinaturais pareçam naturais e, até mesmo, inevitáveis, a sociedade transforma suas crianças em membros respeitáveis da comunidade. No conflito entre seguir os instintos naturais ou o condicionamento social, o primeiro, mais forte, mais verdadeiro e mais visceral, sempre vence, mas a um preço altíssimo. O condicionamento, apesar de derrotado, ainda possui força suficiente para causar remorso, culpa, tristeza e arrependimento, muitas vezes destruindo a própria felicidade do indivíduo. A doutrinação de padrões morais arbitrários e o terror da punição eterna reprimem o instinto natural do homem de buscar sua própria felicidade. Como o ser humano é amoral e antissocial, sem essa repressão, não haveria autoridade e a sociedade ruiria: para La Mettrie, a civilização só pode existir através da coerção dos instintos do homem. Dado que não existe moral, a punição para os crimes não pode mais ser vista como retribuição por pecados cometidos, mas somente como uma ação para inibir novos crimes e proteger a paz social. A moral deixa de ser divina e torna-se pragmática, padrões arbitrários de comportamento cujo objetivo é a própria defesa e manutenção da coletividade.

O objetivo de La Mettrie é ajudar a humanidade a se soltar desses grilhões artificiais e dessa infelicidade condicionada. O homem é um ser puramente material, ele explica, e seus tão preciosos valores são totalmente arbitrários e impostos pelo meio. La Mettrie conclui que o homem é naturalmente propenso ao crime e que qualquer tentativa de impor limites arbitrários aos seus desejos só resultará em sofrimento e remorso. A felicidade verdadeira está em nos libertarmos da fé em Deus e abraçarmos nossa natureza material. O homem inteligente, então, apesar de livre para seguir seus desejos sem culpa e remorso, escolherá seguir as regras civilizadas, por julgar que a manutenção da sociedade é do seu interesse individual. Se quiser ser feliz, o homem deve ceder às paixões que não conseguir evitar. Se suas ações forem antissociais, ele será condenado pela coletividade, talvez até encarcerado, mas pelo menos estará livre da culpa inoculada por preconceitos arbitrários, livre do terror de se achar condenado ao fogo eterno, livre da ideia de que é um ser intrinsecamente perverso e pecador. Sabendo a reação que O Discurso sobre a Felicidade vai causar, La Mettrie já se defende previamente da acusação de incitar ao crime:

Que não se diga que incito ao crime – queira Deus que não! – mas apenas, por uma coerência de sistema, que incito à tranquilidade no crime.[41] Não dou alento aos malvados, mas me compadeço deles, por humanidade, e os tranquilizo, pela razão. … Se tiro de suas costas um pesado fardo, reconheço também que eles são, em si mesmos, um ônus para a sociedade, diante da qual eu não apenas não os justifico em absoluto, como também faço frente a eles. Ela [a sociedade] tem suas leis e seus costumes, tem suas armas para quando for ferida. Não sou seu vingador, nem seu apoio.[42]

Se O Homem-Máquina já causou escândalo sem tocar em nenhuma questão de fundo ético ou moral, O Discurso da Felicidade funcionou como uma verdadeira bomba sobre a comunidade filosófica. La Mettrie, médico experiente realizando uma terapia de choque, corajosamente tirou as muletas da filosofia: não apenas rejeitou todos os princípios religiosos, mas também Deus, a educação e qualquer valor moral. Mais ainda, ao defender que o homem era naturalmente antissocial e amoral, ele atacava também o senso-comum dos philosophes. Não se pode acusar La Mettrie de não ter a exata noção do que estava fazendo. Em sua obra Discurso Preliminar (1750), ele afirma claramente seu objetivo: fazer com que todos os esforços para conciliar filosofia com teologia e moralidade pareçam frívolos e impotentes. Enquanto isso, os filósofos iluministas tentavam separar a filosofia da teologia, desmitificando assim o mundo, mas também tentando, ao mesmo tempo, manter a filosofia firmemente ancorada na moralidade.[43]

Apesar de a comparação de La Mettrie com Sade ser, em nossa opinião, quase inevitável e auto-evidente, ela foi raramente feita fora de estudos específicos sobre La Mettrie. Uma das poucas exceções é Lester Crocker, em seu An Age of Crisis. O filósofo Charles Taylor, em seu influente Fontes do Self: a Construção da Identidade Moderna (1989), apesar de observar que Diderot e D’Holbach talvez tenham sido um pouco injustos com La Mettrie, aponta que o Marquês de Sade estava somente seguindo La Mettrie quando mostrou que a completa rejeição de todos os limites sociais poderia ser abraçada como uma liberação total e consistente da religião tradicional e da metafísica, jogando fora, assim, morais, lei e virtude.[44] Entretanto, uma distinção importante deve ser feita, além do óbvio fato de o primeiro ser cientista e filósofo e do segundo, dramaturgo e escritor: apesar de ambos pregarem uma ética hedonista na qual a virtude não leva necessariamente à felicidade, La Mettrie, ao contrário de Sade, nunca estimulou o crime como caminho à felicidade nem idealizou o criminoso como o ideal de cidadão ao qual os fracos deveriam aspirar. Ele pregava que cada indivíduo buscasse sua felicidade, sim, mas lamentava pelo destino dos indivíduos cuja busca pela felicidade os colocasse em confronto direto com a moral da sociedade onde viviam.[45]

La Mettrie, Diderot e os Limites do Iluminismo

A maioria dos philosophes buscava evitar cuidadosamente o relativismo moral e ético: derrubavam todos os antigos preconceitos medievais, religiosos e aristocráticos, mas pareciam ter medo de acompanhar suas próprias ideias às suas conclusões lógicas. Ainda defendiam os antigos valores, mesmo quando esses entravam em conflito com suas ideias e até mesmo com a evidência empírica à disposição. Atacavam a lei de Deus e erigiam em seu lugar a lei da natureza: para exemplificá-la, citavam frequentemente a enorme variedade de comportamentos humanos por todo o mundo como evidência de que os valores de sua sociedade não eram, de fato, universais. Entretanto, quando essa evidência empírica desmentia valores morais que desejavam conservar, mesmo esses valores sendo anátemas às suas ideias, os philosophes silenciavam. Em um exemplo conhecido, Diderot defendia o casamento monogâmico e a fidelidade sexual como uma “instituição humana fundamental baseada na natureza”, apesar de ter a sua disposição numerosos exemplos antropológicos e biológicos que comprovavam que a monogamia não era regra nem entre humanos nem entre muitos animais.[46]

Por um lado, os philosophes buscavam fundar um novo tipo de conhecimento, baseado na lei natural, na ciência e na razão; por outro, na ausência de Deus, tanto a lei natural, quanto a razão e a ciência tornavam-se amorais, dando origem a uma profunda crise ética. A maioria dos filósofos iluministas procurou fugir dessa contradição posicionando-se em um insustentável meio-termo: destruíam a fonte dos valores tradicionais da sociedade, a Igreja e o Rei, mas mantinham esses mesmos valores intocáveis. Ou, usando o exemplo acima, se o Deus não existe, se o poder do Rei é injusto e se várias sociedades não a praticam, por que a monogamia deveria ser a norma social? Nessa questão, e em outras semelhantes, a maioria dos iluministas silenciava, receosos de ir longe demais. Como aponta Jonathan Israel, tanto as autoridades conservadoras quanto os philosophes geralmente concordavam que textos que fossem prejudiciais à sociedade não deveriam ser publicados.[47] Naturalmente, ambos os lados definiam “prejudicial” de maneiras radicalmente diferentes, mas o próprio Diderot, como veremos abaixo, auto-censurou muitos textos por não considerar prudente ou conveniente sua publicação.

A crise moral pulsa subjacente em toda a filosofia iluminista. Muitos philosophes acreditavam que a natureza moral do homem era fraca ou nula e que, de acordo com o verbete “Natureza” da Enciclopédia (que poderia ter sido escrito por La Mettrie), a sociedade só era possível porque o sistema educacional inculcava nas pessoas uma falsa preocupação com seus semelhantes.[48] Já que não havia Deus e a natureza era amoral, cabia à sociedade criar a moralidade que mais lhe aprouvesse. Para Helvetius e D’Holbach, por exemplo, o materialismo invalidava, por definição, qualquer noção de responsabilidade moral, embora ambos considerassem que condicionamento social poderia fazer com que os homens se comportassem moralmente.[49] D’Holbach, antecipando as preocupações de Adorno e Horkheimer quanto à indústria cultural, defendia a criação de uma nova moralidade social através dos meios de comunicação de massa disponíveis, enquanto Philipon de la Madelaine, antecipando Althusser mas ao avesso, defendia a doutrinação social das crianças em escolas, organizações paramilitares para a juventude, manuais cívicos produzidos em massa e festivais periódicos patrocinados pelo governo.[50]

Claramente, a questão moral era o calcanhar de aquiles do Iluminismo e a maioria dos philosophes procurou fugir dela, concentrando-se em propostas práticas. Enquanto Voltaire, Diderot, D’Holbach e Helvetius, entre outros, lutavam para demonstrar que uma sociedade humanista e ateia também poderia ser ética e moral, La Mettrie desmontava por dentro toda a lógica interna do projeto iluminista – ou, talvez, montava com mais competência – e demonstrava quais seriam as conclusões inevitáveis daquelas ideias. Ao mesmo tempo em que setores religiosos e conservadores utilizavam as opiniões escandalosas de La Mettrie como exemplo da imoralidade dos iluministas, estes buscavam ao máximo se afastar do autor de O Homem-Máquina, desqualificando-o sempre que possível. Para eles, La Mettrie teria ido além de todos os limites, não em destruindo ideias pré-concebidas, mas por seu cinismo moral e social.[51] Filósofos que se declaravam abertamente ateus afirmavam que, mesmo em uma sociedade de ateus, La Mettrie seria condenado e punido.[52] Uma década depois da morte de La Mettrie, seu antigo colaborador D’Argens descrevia-o como um “cavalo de Tróia”, alguém que não era de maneira alguma “um de nós”, alguém tão pernicioso à sociedade que qualquer verdadeiro filósofo ficaria horrorizado por sua pretensão ao mesmo nome, alguém capaz de trazer vergonha eterna à filosofia.[53] De fato, para um bispo francês de meados do século XVIII, a diferença entre La Mettrie e Diderot era acadêmica: o ressentimento dos Enciclopedistas com La Mettrie, conclui Thomson, tinha boas razões.[54] Tanto para o philosophe quanto para o antiphilosophe, escreve Wellman, La Mettrie era um proverbial exemplo dos perigos da filosofia.[55]

La Mettrie era considerado um fardo que só poderia prejudicar a causa dos philosophes, pois ao levar às últimas consequências posições que compartilhava com outras pessoas, poderia fazer com que essa filosofia aparentasse ser perigosa para a sociedade como um todo. E, de fato, na segunda metade do século, os oponentes dos philosophes consistentemente utilizaram citações de La Mettrie contra eles. La Mettrie sabotou os esforços de Diderot e D’Holbach de mostrar que a moralidade natural e social coincidiam.[56]

Para os philosophes, foi relativamente fácil excluir La Mettrie do grupo: ele sempre viveu isolado, seu nome não tinha peso na França por ter passado o final da vida no exterior e morrera convenientemente cedo – segundo boato, de indigestão por ter se excedido no patê. D’Argens, em sua História do Espírito Humano (1765-68) afirmava que o antagonismo dos iluministas à La Mettrie se deveu não a’O Homem-Máquina, cujos pressupostos eram amplamente aceitos pelo grupo, mas sim ao Discurso sobre a Felicidade, que destruía toda e qualquer base para uma filosofia moral iluminista.[57]

As mesmas razões que levaram Sade a admirar La Mettrie também fizeram com que Diderot o rejeitasse. No Ensaio sobre os Reinados de Cláudio e Nero, Diderot escreveu sobre o autor de O Homem-Máquina: “Dissoluto, impudente, um bufão, um bajulador, feito para a vida cortesã e para o favor dos nobres. Ele morreu como deveria, vítima de sua própria intemperança e tolice. Ele se matou por ignorância da arte que professava.”[58] Naturalmente, o próprio boato da morte por excesso de patê se encaixa perfeitamente na imagem de La Mettrie que seus inimigos queriam traçar: inconsequente, intemperante, exagerado. Como em quase todo boato, não se sabe se a reputação criou o boato ou se o boato criou a reputação. De acordo com Crocker, Diderot esteve sempre dividido entre um racionalismo humanista e um materialismo racional, e temia as consequências do niilismo radical de La Mettrie. Entretanto, sua própria tendência a “seguir suas ideias até o fim da estrada” o levou às mesmas e perigosas conclusões de La Mettrie.[59] Em 1752, ainda no começo de sua carreira, era chamado de “segundo La Mettrie” por Rousset de Missy.[60] Em muitos dos seus trabalhos póstumos, aqueles que ele cuidadosamente não deixou que fossem publicados em vida, Diderot emite opiniões e ideias muito próximas à do filósofo-glutão que ele tanto desprezava.

Em 1846, a sentença que condenou seus Pensamentos Filosóficos à fogueira acusava Diderot de pregar a igualdade entre as religiões, afirmar que nenhuma era superior à outra e aconselhar os homens a basear sua conduta moral somente em seus desejos e preocupações sociais.[61] Forçado a prometer não escrever mais textos sacrílegos e irreligiosos, Diderot aprendeu bem sua lição: seus próximos trabalhos a explorar os grandes temas filosóficos, como Deus, a criação e o universo, são todos publicados postumamente.[62] Entretanto, muito de sua produção publicada em vida deixa antever numerosos pontos de contato com La Mettrie. Em seu artigo “Liberdade”, Diderot afirma que a liberdade é uma ilusão infantil e, portanto, o homem não pode ser virtuoso ou perverso, mas somente bem ou mal-afortunado, “praticante do bem ou praticante do mal”. No verbete “Animal“, da Enciclopédia, afirma que a capacidade de raciocínio do homem é somente uma extensão da capacidade de sensação e que vai diminuindo nas formas mais baixas de vida.[63] Em sua carta a M. Landois, em 1756, ele repete a teoria: ninguém pode deixar de ser mau por vontade própria e a única diferença entre os homens seria fazer bem ou fazer o mal (“bienfaisance” ou “malfaisance“); os primeiros seriam não virtuosos, mas somente bem-afortunados de terem uma inclinação natural para fazer o que a sociedade aprova. Por fim, em O Sonho de Alembert, considerado por Israel um dos pontos culminantes da filosofia do Alto Iluminismo[64] e somente publicado em meados do XIX, Diderot escreve:

– E o que são vício e virtude?

– Sorte ou azar. Somos bem ou mal nascidos; somos irresistivelmente levados pela corrente geral que conduz um à glória e o outro à ignomínia.

– E a auto-estima, a vergonha, o remorso?

– Puerilidades baseadas na ignorância e na vaidade de um ser que imputa a si mesmo o mérito ou o demérito de um momento de necessidade.[65]

Também em seu hoje famoso diálogo satírico O Sobrinho de Rameau, Diderot põe na boca de seus grotescos personagens praticamente as mesmas conclusões às quais chegou La Mettrie. Se Diderot realmente pensasse que o formato de sátira o insularia daquelas opiniões polêmicas, entretanto, ele teria publicado o diálogo em vida, mas não o fez. Não há como negar que as questões espinhosas levantadas por La Mettrie estavam na mente de Diderot. Em outras ocasiões, como ao refutar as implicações morais do ensaio de D’Holbach, “De l’Homme”, Diderot não estava acima de utilizar os argumentos de La Mettrie sobre constituição individual do ser humano em seu favor. Diderot estava ciente das dificuldades de conciliar seu materialismo filosófico com sua busca por valores morais e ordem social na natureza: para ele, entretanto, a solução niilista encontrada por La Mettrie era inaceitável.[66]

Para Crocker, Diderot personifica perfeitamente o conflito ético do iluminismo. Por um lado, ele escrevia que gostava de filosofia que exaltasse a humanidade, pois degradá-la seria encorajar “o vício”. E, por outro, de acordo com Crocker, degradar a humanidade foi justamente um dos resultados da revolução liderada por Diderot. Apesar de enojado pelas ideias extremas e brutais de La Mettrie, os escritos mais radicais e não-publicados de Diderot são “virtualmente indistinguíveis”, na opinião de Crocker, da ética do autor de O Homem-Máquina.[67]

Uma Filosofia Apolítica do Indivíduo

Ao contrário dos outros filósofos materialistas da época, La Mettrie é estritamente apolítico. Ele nunca afirma que a sociedade funcionará melhor se os indivíduos buscarem satisfazer suas paixões. Essa questão não parece lhe interessar. Sua única preocupação é o bem-estar do homem e ele abstrai o indivíduo do seu contexto social para poder melhor estudar seus problemas fundamentais. Enquanto Diderot, Voltaire e grande parte dos philosophes partem do todo para o individual, La Mettrie parte do individual e permanece nele. Os filósofos iluministas encaravam a filosofia como algo político: tentavam criar uma nova sociedade e, para que essa nova sociedade existisse, o novo homem teria que se comportar de uma determinada maneira. La Mettrie, por seu lado, encara a filosofia como médico: sua preocupação é o bem-estar do seu paciente individual, não da sociedade como um todo. Filosofia, para ele, era uma extensão da arte médica de curar casos individuais.[68] Kathleen Wellman, que dedica todo um livro ao estudo de La Mettrie enquanto médico, La Mettrie: Medicina, Filosofia e Iluminismo[69] (1992), afirma:

Não é que, como muitos críticos alegaram, ele fosse antissocial, mas sim que, ao contrário da maioria dos philosophes, não estava preocupado com a sociedade, a não ser de maneira periférica. Ele não explorou a relação do indivíduo com sua sociedade, ou com os objetivos de sua sociedade, nem examinou o propósito, a natureza ou a origem da sociedade, porque essas coisas não são o objeto apropriado de investigações científicas empíricas. Ele estava, ao invés disso, mais preocupado em utilizar seus conhecimentos médicos para isolar [carve out] áreas de liberdade individual contra a repressão da sociedade do que em construir programas para amplas mudanças sociais.[70]

Vartanian aponta duas importantes contribuições de La Mettrie a respeito do conceito filosófico de felicidade. Em primeiro lugar, ele é o primeiro a falar de felicidade como um direito que, assim como o direito à vida, seria inalienável. Para ele, o direito à felicidade seria um fato biológico. E, em segundo lugar, ao reconhecer que a felicidade dependia dos impulsos e desejos individuais de cada um, e não de seguir os preceitos morais da sociedade como um todo, ele também se torna o primeiro a falar em felicidade individual.[71]

Para La Mettrie, a moralidade não teria nada a ver com a natureza, mas seria somente uma ficção indispensável, criada por razões sociais e arbitrárias; o homem que cede aos seus desejos naturais seria tão criminoso quanto o Rio Nilo, ao inundar suas margens; portanto, a felicidade seria uma questão puramente individual, totalmente distinta tanto do bem-comum coletivo quanto do progresso moral e social do indivíduo. E conclui afirmando que, já que a filosofia e a moralidade são opostos em conflito permanente e insolúvel, então a filosofia, por um lado, e a moral, a religião e a política, por outro, são absolutamente irreconciliáveis.[72] Naturalmente, essa conclusão o colocava em conflito aberto não apenas com as autoridades constituídas da época, mas também com os philosophes, mesmo os mais ateus e radicais, que buscavam criar uma nova sociedade baseada em uma moral laica. La Mettrie não negava que a sociedade necessitava criar e impor leis para manter a ordem social, mas considerava que essas leis não se baseavam nem na natureza e nem na razão, sendo portanto inerentemente arbitrárias. Para Diderot e grande parte dos philosophes, por outro lado, a felicidade humana consistiria em viver a vida em conformidade com as leis universais da natureza e da razão, moderando nossas paixões de acordo com as circunstâncias naturais, modelando e melhorando a condição humana e atendendo às necessidades da sociedade.[73] Sua luta contra a religião não significava negar valores como reciprocidade, justiça e a necessidade de o indivíduo racional conformar-se ao bem comum coletivo[74] mas, pelo contrário, defendiam que o indivíduo só podia existir com segurança e conforto em sociedade e, para isso, precisa controlar seus desejos e emoções que podem atrapalhar a harmonia de sua existência individual.[75] Ou seja, dificilmente aceitariam ser agrupados sob a mesma rubrica de um hedonista anárquico como La Mettrie, que concebia a felicidade como um processo puramente físico, individual e apolítico.[76]

E, naturalmente, mesmo este “apolítico” precisa ser qualificado: La Mettrie, por raciocínio e temperamento, era completamente alheio e desinteressado às consequências políticas que suas teorias poderiam ter se aplicadas coletivamente à sociedade. Além disso, La Mettrie também afirmava, concordando nisso com Voltaire, que a filosofia, ou seja, a verdade, era naturalmente para poucos: enquanto tentava-se educar a elite, era inevitável (e aconselhável) que as massas permanecessem vivendo nas trevas da ignorância.[77] Enfim, como tantos pensadores libertários mas individualistas, a ênfase de La Mettrie no indivíduo e sua recusa em considerar as consequências sociais de suas teorias acabam colocando-o, para todos os fins práticos, no campo reacionário, distanciando-o ainda mais de Diderot e dos philosophes.

Conclusões

Jonathan Israel, em suas duas citadas histórias do Iluminismo, busca defender o projeto iluminista de críticos “pós-modernistas, pós-colonialistas, nacionalistas, tradicionalistas ou religiosos” – um grupo heterodoxo onde ele encaixa nomes como Alasdair MacIntyre, John Gray e Charles Taylor.[78] Apesar de considerar La Mettrie e Diderot os dois autores que mais efetivamente encarnaram o iluminismo radical de meados do XVIII[79], Israel faz questão de enfatizar que o primeiro era um “emprestador, copiador e plagiador” (ele usa as três palavras na sequência: “a borrower, copyist and plagiarist“) que somente regurgitou e resumiu as ideias e trabalhos dos últimos cinquenta anos.[80] Para Israel, haveria uma tendência atual, por parte de pensadores pós-modernos, de celebrar La Mettrie como um filósofo que teria sido injustamente vilipendiado pelos philosophes apenas por ter desnudado as ilusões, pretensões e contradições que eles mesmos não conseguiram resolver; de considerar La Mettrie um pensador honesto e perceptivo que percebeu a “feia realidade” que outros não quiseram ver; de enxergá-lo como vítima de covardes morais e hipócritas dogmáticos, receosos da perseguição que sofreriam agora que haviam sido expostas as falhas intrínsecas de seu projeto de construir uma moralidade laica baseada no materialismo.[81] Com exceção do tom jocoso, Israel resume as ideias dos seus adversários com precisão. Apesar de termos grande respeito por seu tour-de-force de história do Iluminismo, esse ensaio também se insere na tendência (que ele chama de “pós-moderna”) de reavaliação positiva da obra de La Mettrie, de vê-lo como uma consciência crítica dentro do próprio iluminismo, como um pensador que, desde os primórdios do movimento, teve a coragem, a lucidez e, por que não, a temeridade de levar aos seus limites máximos as premissas e princípios formulados por Diderot e pelos philosophes.

Lester Crocker, por seu lado, apesar de ressaltar a importância de Sade na história do pensamento iluminista, também acrescenta que opiniões extremas, como as dele e de La Mettrie, não eram típicas nem representativas, tendo sido indignantemente rejeitadas por seus “pais espirituais”. Entretanto, o valor dessas ideias extremas está em sua relação estreita com as premissas mais amplamente aceitas por quase todos os outros philosophes, demonstrando assim potencialidades dessas premissas que muitos deles tentavam negar e que os anti-iluministas tentavam denunciar.[82]

Para os pensadores conservadores e religiosos do século XVIII, o projeto iluminista era pura heresia, sem valor algum. Para filósofos como La Mettrie e para ficcionistas como Sade, pelo contrário, o balanço era completamente positivo: o iluminismo vinha para libertar o homem de Deus e realizar seu verdadeiro potencial. Diderot, entretanto, de modo incipiente e precoce, já no começo do processo histórico que ele mesmo ajudou a desenvolver, percebe algumas das mesmas fissuras estruturais e contradições internas que Horkheimer e Adorno, entre outros, denunciariam quase duzentos anos mais tarde. Mesmo em seu ardor antirreligioso e humanista, Diderot teme que a consequência lógica do projeto iluminista é (ou pode vir a ser) o tipo de barbarismo amoral tão temido por seus adversários religiosos e tão celebrado por La Mettrie e Sade. Nesse aspecto, a grande diferença entre La Mettrie e Diderot estaria não em sua filosofia em si, mas em seu posicionamento político diante da sociedade: vendo a questão por um prisma puramente individual, La Mettrie celebrava a libertação do indivíduo das trevas e superstições medievais; vendo a questão pelo prisma coletivo, Diderot aparentemente previa e temia as consequências sociais e políticas de uma nova moralidade laica construída sem bases religiosas ou metafísicas.

Bibliografia

Bronner, Stephen Eric. Reclaiming the Enlightenment. Toward a Politics of Radical Engagement. New York: Columbia University Press, 2004.

Crocker, Lester G. An Age of Crisis. Man and World in Eighteenth-Century French Thought. Baltimore: Johns Hopkins Press, 1959.

Emerson, Roger. “Peter Gay and the Heavenly City.” in Journal of the History of the Ideas, Vol.28, no.3. (Jul.-Sep., b 1967), pp. 383-402.

Gay, Peter. “An Age of Crisis: A Critical View” in The Journal of Modern History, Vol.33, no. 2. (Jun., 1961), pp. 174-177.

Gray, John. Enlightenment’s Wake: Politics and Culture at the Close of the Modern Age. Londres: Routledge, 2007.

Gutting, Gary. Pragmatic Liberalism and the Critique of Modernity. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.

Horkheimer, Max & Theodor Adorno. Dialética do Esclarecimento: Fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

Hume, David. A Treatise of Human Nature. Oxford: Oxford University Press, 2000.

Israel, Jonathan. Radical Enlightenment. Philosophy and the Making of Modernity. 1650-1750. Oxford: Oxford University Press, 2001.

—. Enlightenment Contested. Philosophy, Modernity and the Emancipation of Man. 1670-1752. Oxford: Oxford University Press, 2006.

La Mettrie, Julien Offray de. Machine Man and Other Writings. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.

—. Discurso sobre la Felicidad. Buenos Aires: El Cuenco de Plata, 2005.

Leith, James A. “Peter Gay’s Enlightment” in Eighteenth-Century Studies, Vol.5, no.1. (Autumn, 1971), pp.157-171.

MacIntyre, Alasdair. After Virtue. A Study in Moral Theory. Notre Dame: Notre Dame University Press, 1984.

Sade, Marquis de. Juliette. New York: Grove Press, 1988.

Spinoza, Baruch. The Ethics of Spinoza. The Road to Inner Freedom. New York: Citadel, 1995.

Taylor, Charles. Sources of the Self: the Making of the Modern Identity. Cambridge, Harvard University Press, 1989

Thomson, Ann. Materialism and Society in the Mid-Eighteenth Century. La Mettrie’s Discours Préliminaire. Genebra: Librairie Droz, 1981.

Vartanian, Aram. La Mettrie’s L’Homme Machine. A Study in the Origins of an Idea. Princeton: Princeton University Press, 1960.

—. Science and Humanism in the French Enlightenment. Charlottesville: Rookwood Press, 1999.

Wellman, Kathleen. La Mettrie. Medicine, Philosophy and Enlightenment. Durham: Duke University Press, 1992


[1] Israel, Jonathan. Radical Enlightenment. Philosophy and the Making of Modernity. 1650-1750.Oxford: Oxford University Press, 2001. p.704

[2] MacIntyre, Alasdair. After Virtue. A Study in Moral Theory. Notre Dame: Notre Dame University Press, 1984.

[3] Gray, John. Enlightenment’s Wake: Politics and Culture at the Close of the Modern Age. Londres: Routledge, 2007. p.148

[4] Gray, op.cit, p.152

[5] Gray, op.cit, 145

[6] Gray, op.cit, 146

[7] Gray, op.cit, 178

[8] Horkheimer, Max & Theodor Adorno. Dialética do Esclarecimento: Fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Zahar, 1985

[9] Crocker, Lester G. An Age of Crisis. Man and World in Eighteenth-Century French Thought. Baltimore: Johns Hopkins Press, 1959

[10] Israel, Jonathan. Radical Enlightenment. Philosophy and the Making of Modernity. 1650-1750. Oxford: Oxford University Press, 2001.

[11] Israel, Jonathan. Enlightenment Contested. Philosophy, Modernity and the Emancipation of Man. 1670-1752. Oxford: Oxford University Press, 2006.

[12] Israel, 2006, p.870

[13] Israel, 2001, p.704

[14] Crocker, op.cit, p.xv

[15] Horkheimer & Adorno, op cit, p.25

[16] Horkheimer & Adorno, op cit, p.29

[17] Horkheimer & Adorno, op cit, p.37

[18 Horkheimer & Adorno, op cit, p.40

[19] Crocker, op.cit, p.xi

[20] Crocker, op.cit, p.16-17

[21] Crocker, op.cit, p.448

[22] Horkheimer & Adorno, op cit, p.92

[23] Horkheimer & Adorno, op cit, p.99

[24] Horkheimer & Adorno, op cit, p.109

[25] Horkheimer & Adorno, op cit, p.110

[26] Hume, David. A Treatise of Human Nature. Oxford: Oxford University Press, 2000. Livro III, parte 2, seção 12

[27] Crocker, op.cit, p.471

[28] Crocker, op.cit, p.10-11

[29] Citado em Crocker, op.cit, p.11

[30] Crocker, op.cit, p.168

[31] Citado em Israel, 2006, p.807

[32] Israel, 2006, p.802

[33] Citado em Crocker, op.cit, p.15

[34] Vartanian, Aram. La Mettrie’s L’Homme Machine. A Study in the Origins of an Idea. Princeton: Princeton University Press, 1960. p.95

[35] Vartanian, Aram. Science and Humanism in the French Enlightenment. Charlottesville: Rookwood Press, 1999. p.49

[36] La Mettrie, Julien Offray de. Discurso sobre la Felicidad. Buenos Aires: El Cuenco de Plata, 2005. p.71

[37] Nos parece claro que La Mettrie usa “alma” somente no sentido figurado.

[38] La Mettrie, 2005, p.77

[39] La Mettrie, 2005, p.80-81

[40] La Mettrie, 2005, p.116

[41] La Mettrie, 2005, p.118

[42] La Mettrie, 2005, p.121

[43] Wellman, Kathleen. La Mettrie. Medicine, Philosophy and Enlightenment. Durham: Duke University Press, 1992. p.253

[44] Taylor, Charles. Sources of the Self: the Making of the Modern Identity. Cambridge, Harvard University Press, 1989. p.335

[45] Wellman, op.cit, p.237

[46] Leith, James A. “Peter Gay’s Enlightment” in Eighteenth-Century Studies, Vol.5, no.1. (Autumn, 1971), pp.164-5

[47] Israel, 2006, p.801

[48] Leith, op.cit, p.168

[49] Leith, op.cit, p.169

[50] Leith, op.cit, p.168

[51] Israel, 2006, p.803

[52] Israel, 2006, p.804

[53] Israel, 2006, p.813

[54] Thomson, Ann. Materialism and Society in the Mid-Eighteenth Century. La Mettrie’s Discours Préliminaire. Genebra: Librairie Droz, 1981. p.187

[55] Wellman, op.cit, p.275

[56] Thomson, introdução de La Mettrie, Julien Offray de. Machine Man and Other Writings. Cambridge: Cambridge University Press, 1996. p.xxvi

[57] Vartanian, 1960, p.115

[58] Citado em Wellman, op.cit, p.213

[59] Crocker, op.cit, p.170

[60] Israel, 2001, p.710

[61] Israel, 2006, p.788

[62] Israel, 2001, p.710-11

[63] Israel, 2001, p.712

[64] Israel, 2001, p.711

[65] Citado por Crocker, op.cit, p.170-171

[66] Thomson, op.cit, p.184-185; Leith, op.cit, p.169; Thomson em La Mettrie, 1996, p.xxiv-xxvi; Wellman, op.cit, p.215

[67] Crocker, op.cit, p.82-83

[68] Israel, 2006, p.798

[69] Wellman, Kathleen. La Mettrie. Medicine, Philosophy and Enlightenment. Durham: Duke University Press, 1992

[70] Wellman, op.cit, p.218

[71] Vartanian, 1999, p.76

[72] Citado em Israel, 2006, p.805

[73] Israel, 2006, p.806

[74] Israel, 2006, p.809

[75] Israel, 2006, p.811

[76] Israel, 2006, p.809

[77] Israel, 2006, p.810

[78] Israel, 2006, p.863-871

[79] Israel, 2001, p.704

[80] Israel, 2001, p.708

[81] Israel, 2006, p.807

[82] Crocker, op.cit, p.216