Raphael Millet é professor do Colégio Pedro II.
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Resenha do livro:
Kiraly, Cesar. Os Limites da Representação: um ensaio desde a filosofia de David Hume. São Paulo, Giz Editorial: 2010.
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A política é a ciência que estuda as crenças que formam as instituições e o modo de ação das instituições com relação à determinadas crenças. (…) A ciência da política é uma atividade cética, pois, ainda que navegue sobre o mar dos princípios, percebe que a navegação é uma crença cuja previsibilidade é sempre precária. (Kiraly, C. 2010, p.146)
Apesar do debate em torno de uma cisão entre a ciência política e a filosofia política ainda persistir no universo acadêmico, os não filósofos têm poucos ou nenhum motivo para se furtar aos textos filosóficos. Essa assertiva é mais facilmente aceita quando se constata o quanto é difícil, senão impossível, encontrar uma área do pensamento humano que não esteja colonizada por alguma sistematização filosófica e que não seja por ela enriquecida e problematizada. Além disso, novas gerações de amantes da sabedoria, conscientes de sua própria ignorância, não cessam de tornar públicas suas indagações sobre a natureza humana e sua relação com o mundo (ou os mundos) que experienciamos e, assim, oxigenam não apenas o campo da teoria, mas toda a prática que em sua extensão incide.
Diante da dissertação Os Limites da Representação de Kiraly, o leitor, como a espiar outros mundos possíveis pelo buraco de uma fechadura, poderá sempre, a depender do seu ímpeto, deixar-se levar pelo vislumbre da curiosidade a minar lentamente suas certezas adquiridas ou escancarar de vez as portas para outros mundos em um rearranjo radical de todo seu regime de crenças. A partir da filosofia de David Hume os conceitos de entendimento, moral e crítica articulam nesse livro uma postura cética construtivista que se propõe a estabelecer um modo discursivo para uma ciência da política. Assim, ele propõe ferramentas para iluminar os diferentes fenômenos que compõe a esfera pública na contemporaneidade a partir de princípios imanentes à própria experiência humana. Será a partir de uma correlação necessária entre compreensão e ação que a postura teórica sustentada pelo texto tornará indissociável a experiência da teoria política.
Uma chave que pode abrir caminhos para o entendimento nessa empreitada está na parábola introdutória do texto, onde a posição cética é aproximada da posição do narrador que relata aquilo que acontece no mundo e que, para demonstrar que seu relato é crível, não abdica de encontrar no mundo e na natureza humana seus princípios que o organizam e permitem relacioná-los. Essa chave amplia a discussão filosófica para não filósofos e permite a aproximação de uma fundamentação cética para outras áreas da produção de conhecimento nas ciências humanas.
A diferenciação da posição do narrador para aquela dos personagens de seus relatos, presos que estão, por assim dizer, em seu próprio dogmatismo, está nos princípios perseguidos, que para o narrador serão sempre princípios parciais, nunca definitivos. Essa busca pela natureza humana e seus princípios parciais pode ser compreendida ainda por outra chave que, por sua vez, abre outros caminhos que levarão a outras barreiras para as quais novas chaves deverão ser encontradas, em um exercício que não encontra fim em nenhuma teleologia, mas sempre na materialidade das crenças que estabelece e no funcionamento das formas de vida do homem comum. Tal teoria de base empirista, ao contrário do que possa sugerir um ceticismo hiperbólico ou um empirismo dogmático, leva a uma teoria da imaginação que por sua vez estará na base de uma política como teoria da instituição. Eis mais um dos méritos do trabalho, um empirismo que permite uma ciência da política a partir de uma teoria da imaginação.
Tal empirismo também pode ser caracterizado pelos sistemas e princípios epistemológicos com os quais dialoga por trás da cena, em especial daqueles contra os quais combate ou se afasta, como diferentes formas de racionalismo e teleologia. Tal recusa do racionalismo e das compreensões teleológicas da realidade levam à ideia de que a racionalidade não é uma dádiva que organiza a humanidade tal qual um projeto divino, mas um instrumento para construir relações coerentes, coerência essa que em qualquer esfera da atividade humana não se diferencia daquela que sedimenta os sentimentos morais e as crenças. O empirismo defendido por Kiraly em sua dissertação é, portanto, mais próximo do empirismo superior de Merleau Ponty (e do próprio Hume) e do empirismo transcendental de Deleuze. Assim, longe de a prioris racionalistas, a vida pública deve, nessa perspectiva, estar fundada na experiência e os caminhos da história não podem ser dados em nenhum outro ponto que não nas estratégias observáveis das instituições, cuja experiência pautada em crenças estabelecidas marca os rumos a serem seguidos.
O que se tem em mãos é uma filosofia para uma ciência do político. Em todos os seus aspectos o texto é filosófico e, portanto, deve ser lido como filosofia. Assim encontramos nele sua unidade tanto na forma como estrutura suas referências internas como naquela que lhe confere sentido a partir do sujeito que ora se coloca como enunciador, ora como objeto num processo de auto referência que parece realçar os princípios empiristas do autor e seu mestre. Se Hume escreve seus textos na primeira pessoa do singular, Kiraly opta pelo majestático “nós”, talvez para enfatizar que não está nunca sozinho e mesmo quando discorda de alguma proposição, como em suas considerações a respeito de uma filosofia da matemática de caráter empirista, o faz junto e a partir do filósofo escocês. Os conceitos fundamentais que embasam os princípios filosóficos céticos de Hume são pacientemente apresentados pelo autor, não sem uma dose de imagens e bom humor como que para lembrar que a construção dos conceitos filosóficos é um procedimento que busca constituir um intermediário entre a imagem e a forma, entre o vivido e o abstrato. Não se pode negar, assim, que a estratégia de exposição se alinha harmonicamente com seus propósitos formais.
O leitor encontrará os mecanismos pelos quais se estabelece uma comunicação entre um suposto mundo da teoria e outro da prática (da experiência) ao longo de todo o livro, mas em especial na sua exposição sobre os temas da Justiça e do Trauma.
O conceito de Justiça não é estranho nem à filosofia, que com ele se debate desde sua gênese, e nem à ciência política, que pesquisa incansavelmente as suas diferentes materializações institucionais. A Justiça é lida, a partir de Hume, como uma virtude artificial. Isso pode ser compreendido quando se questiona qual o princípio que conduziria à necessidade da justiça. Um exercício como esse encontraria na base do que vem a ser a justiça a manifestação dos sentimentos morais nos seres humanos, sentimentos esses que estão em sua própria natureza. Será na vida pública, na tendência a sociabilidade entre seres humanos que a justiça se fará necessária na medida em que os indivíduos sentem a necessidade de criar sanções para regular as condutas. Tais sanções serão sedimentadas em instituições, entre as quais a própria justiça terá destaque, por ser um dos principais artifícios que favorecem os anseios daqueles que vivem em sociedades por uma vida melhor e mais prazerosa. A natureza humana quando estimulada pelos eventos da vida pública faz emergir os sentimentos morais para os quais persegue, para cada contexto, um modo de decidir ser tal fenômeno justo ou injusto. Tal artifício delimita o lugar da justiça em separado da natureza e autoriza pensar que em uma sociedade de suposta abundância, onde ninguém esteja preocupado em salvaguardar seus ganhos através da, por exemplo, defesa da propriedade, a justiça não encontraria lugar entre as instituições necessárias para o bem viver. Por outro lado, um ambiente de escassez e miséria extremas não deixariam espaço para a sofisticada criação desse artifício que é a justiça, já que os que vivem nessa situação extinguem todos seus esforços em perseguir necessidades básicas para que a vida não encontre seu fim de forma violenta. Assim, em situações extremas nas quais não existe preocupação em manter os princípios que garantem a boa vida em sociedade, torna-se claro o caráter artificial, contextual da justiça, da mesma forma como a sua definição de valor é reduzida a um contexto pragmático inseparável da experiência concreta da existência dos indivíduos. Como nos revela Kiraly, a razão de existência de um conceito como o de justiça “justifica-se no anseio de promoção de felicidade e segurança para a vida pública” (p.130). Não são poucas as lições que daí se podem inferir tanto para a pesquisa acadêmica quanto para a prática militante na esfera da sociedade civil e da implementação de políticas públicas na esfera do Estado.
Ao transitar do surgimento dos sentimentos morais à institucionalização da justiça, o texto abre uma importante via de produção de pensamento sobre a vida pública e a política em particular. A essa via o autor chama de teoria das instituições. Será a partir daquilo que permite uma teoria sobre as instituições que o autor poderá passar do tema de caráter universal da Justiça para um tema que, a princípio, parece menos universal (apesar de não o ser), a saber, a questão do trauma. Esse elemento que serve de cimento às instituições e que, por esse motivo, revela a ossatura do trauma, é o que se dá o nome de crença. A instituição, ensina Kiraly, não é outra coisa senão a denominação genérica para se falar sobre a cristalização de crenças na esfera pública. A simplicidade desse argumento sustenta todos os pilares que conduzem aos mais complexos temas da vida dos seres humanos em sociedade. O governo, por exemplo, nessa chave surge como a consolidação de todas as instituições que estão articuladas ao uso do poder em relação ao Estado. A crença, portanto, torna-se o objeto filosófico declarado dessa ciência do político que se desdobra das páginas desse ensaio. Está na crença e nos regimes de crença materializados nas instituições que viabilizam a vida pública o meio de articulação entre qualquer investigação originária sobre a relação da natureza humana com as instituições, quanto da possibilidade de interpelação, militante ou institucional, sobre a utilidade do governo e sua dependência de regras de justiça e diferentes estruturas que a sustentam: “No regime público dos artifícios, e na atitude epistemológica cética, surge a ciência da política enquanto modo de conhecer que interpela as crenças e estabelece o regime de efetividade da justiça e extrai os princípios do governo da confrontação existente entre opinião e crença” (p.163). De que outra forma pode uma filosofia ser mais comprometida com uma práxis?
Se a justiça é uma ideia geral que se constitui na observação necessária do particular, o trauma, por sua vez, não está vinculado de forma habitual a qualquer ideia geral, ainda que, no contexto da sua relação com a política obedeça aos mesmos princípios genéticos que o conceito de justiça, isto é, ampara-se sobre a natureza humana e, portanto, lhe é sempre imanente. Trazer para o campo da política o conceito de trauma é, de fato, mais um dos méritos do trabalho de Kiraly.
Ao calcar a ideia de justiça nos fundamentos dos sentimentos morais, e não em qualquer essência universal, o autor realça a importância da moral e da política (tratados no segundo capítulo), como conceitos que necessariamente se articulam, em uma espécie de ponto de equilíbrio do trabalho, sobre o qual pendem tanto os fundamentos empíricos do entendimento (abordados no primeiro capítulo) quanto os efeitos mais reais da política, como o sofrimento e a dor, que sintomaticamente parecem ser a todo momento expulsos dos debates científicos sobre o tema, mas que é habilmente tratado pelo autor a partir da possibilidade de se emitir juízos, possibilidade essa ancorada no conceito de crítica (terceiro capítulo).
Será no tratar do conceito de crítica que a argumentação levará a uma “traumatologia” dentro dos contornos da estética. Aqui, a divisão triádica do trabalho ganha mais um campo de sentido dentro das pretensões modernas do pensamento filosófico, já que, ao tratar do conceito do entendimento o autor revela uma epistemologia e, pelo mesmo caminho de reflexão, ao tratar da moral e da política, o faz na esfera da ética. Episteme, ética e estética; a verdade, a justiça e a beleza. Ao procurar os critérios capazes de determinar esses princípios fundamentais da vida humana, o autor posiciona seu ceticismo contra todos os dogmatismos e eleva a experiência da natureza humana como único fiel da balança capaz de decidir os critérios para formulação de juízos válidos em um mundo realmente existente. Assim, no campo de produção de juízos, a produção de juízos morais a partir das sensações permite uma inovadora percepção de que é possível encontrar na estética princípios que acabam por institucionalizar a justiça. A partir da crítica se pode chegar na justiça. As sensações organizam o navegar humano em uma difícil dinâmica de transformar a imprevisibilidade constitutiva da realidade em uma previsibilidade institucional da vida social.
Quando traz o conceito de trauma para a política, então, Kiraly o localiza em uma estreita relação com os modos de sentir que estão presentes na moral e na crítica. O trauma, no entanto, não pode negar sua referência a outro princípio que está tacitamente excluído do debate mainstream da ciência política, o inconsciente tal como foi posto em causa pela psicanálise. O que daí se descola é um conceito que, na medida em que não busca reconhecimento público ou identificação com o Belo, está no avesso da moral e da crítica, é um conceito que se coloca para a política enquanto determinação do insuportável. Ao traçar rapidamente uma genealogia do trauma na psicanálise, e ao especificar a relação que articula política e psicanálise em um registro distinto do que foi produzido pela teoria crítica da Escola de Frankfurt, o autor chega a uma fórmula concisa para uma ciência do político direcionada para a esfera pública e suas instituições: “o estudo do trauma é o estudo do falar sobre si” (p.193). Assim, a partir de uma ideia de sujeito devedora da psicanálise, um sujeito que não é, em lugar nenhum, uma percepção lógica acerca de si, o texto leva o leitor a pensar a política a partir de um regime de sensações calcados na experiência, na justa medida em que as questões que dizem respeito a ela advém de “campos que inscrevem no psiquismo as dores da vida pública” e, assim, descreve muito bem o autor, “a melhor forma vislumbrada, para o tratamento das dores públicas, é o necessário falar de si. A teoria política deve incorporar um locus institucional para o falar de si” (p.197-8). Bravo!
Enfim, a própria experiência de leitura do texto se oferece ao desenvolvimento do raciocínio sem nenhum ardil ou ambiguidade. Desde o início os propósitos da argumentação são claramente enunciados. O subtítulo, um ensaio desde a filosofia de David Hume, já nomeia o mestre com quem o autor dialoga para a produção de sua linha de pensamento. Nesse caminho ele parte dos princípios céticos de sua epistemologia para em seguida dissertar sobre os fundamentos éticos e estéticos inescapáveis ao pensamento político, esse por sua vez inseparável de um sentir político que encontra nos conceitos de moral e crítica o elo empírico entre o sentir e o pensar, como no encadeamento humeano fundamental entre impressão e ideia. Assim, em todos os seus aspectos, formal e substancial, Os limites da representação é aquilo que anuncia, um criativo ensaio de teoria política realizado desde a filosofia de David Hume. Isso significa que o autor garante a liberdade concedida pelo estilo escolhido de exposição, o ensaio, ao mesmo tempo em que evoca limites claros para sua digressão filosófica sob a autoridade do campo humeano. De alguma forma essa tensão entre limite e liberdade marca a análise conceitual proposta que, desde o título, joga com uma reconfiguração da imagem comum da infinita criatividade da representação.
O poder imagético da escrita de Kiraly facilita o leitor a acompanhá-lo em sua caminhada argumentativa que ora expõe suas bases conceituais apreendidas da investigação sobre a natureza humana do filósofo escocês, ora as usa como método de sustentação para uma prática filosófica original e imaginativa capaz de levar a uma ciência da política comprometida não com a formação de pesquisadores restritos a academia, mas com um modo discursivo a ser instaurado na esfera pública para uma relevante compreensão dos fenômenos contemporâneos.