Eloá Carvalho

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Ivair Reinaldim é Doutor em Artes Visuais pela Escola de Belas-Artes da UFRJ e Professor da Escola de Belas-Artes da UFRJ.

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O termo que dá título à exposição individual de Eloá Carvalho na Galeria de Arte Ibeu, localizada em Copacabana, Rio de Janeiro, se traduzido de modo literal, significa “colocado em cena”, e seu uso, ao migrar do teatro para o cinema, marca a crescente valorização da figura do diretor como aquele que organiza e controla a construção dramatúrgica do filme em todos os seus detalhes. Não que a artista tenha desenvolvido aqui um diálogo direto com o cinema – mesmo que alguns de seus trabalhos anteriores apresentem tais referências. O que fez foi assumir uma operatividade que em si pode ser aproximada da prática do “metteur en scène”.

Assim, o termo torna-se indício de como o olhar autoral da artista reconfigura e contextualiza personagens de diferentes características, feições e procedências históricas num espaço cênico comum, seja ele o da superfície do papel ou pintura ou mesmo o da Galeria de Arte do Ibeu. Sinaliza o arranjamento dos corpos e das coisas através de tais espaços, como também a dimensão mais ampla da encenação presente nesses elementos. Suas personagens encenam seus papéis: aqueles que acreditam desempenhar e aqueles que a artista as põe a representar.

 O projeto teve início com uma extensa pesquisa no acervo iconográfico do Ibeu. Nesse arquivo, a artista selecionou suas personagens entre os registros fotográficos das diversas aberturas de exposição promovidas pelo Instituto, dos anos 1950 aos nossos dias. Em seguida, tais figuras foram desenhadas e recombinadas em novos conjuntos, encontrando-se parte desses desenhos acessíveis na mostra. Alguns deles, no entanto, continuaram a ser trabalhados por meio da pintura e, dispostos em novos contextos, ganharam maior densidade e corporeidade.

Vistas em conjunto, as imagens contidas nesses desenhos e pinturas representam um evento construído por camadas de tempo superpostas. Por um instante, todas essas personagens coexistem, mantêm-se presentes nesse espaço que habitaram em algum momento no passado. Instalados na Galeria do Ibeu, os trabalhos de Eloá Carvalho prolongam suas dimensões e nos convidam, como espectadores, a compartilhar do estado imersivo de suas figuras. Mas é preciso não nos deixar inebriar pela aparente naturalidade das poses. Na cena, nada é espontâneo.

4 apontamentos sobre Mise en Scène

1. Em L’année dernière à Marienbad (1961), Alain Resnais e Alain Robbe-Grillet reforçam a construção da narrativa fílmica através da sobreposição de diferentes camadas de tempo, apresentando-nos um presente mediado por aquilo que se constituía a memória possível de um encontro passado. Desse modo, o presente em Marienbad era percebido não apenas como um algo em si, mas por meio da inflexão entre um fato, que poderia ou não ter ocorrido, e a expectativa futura, o desejo de algo que pudesse ou não vir a acontecer, tornar-se real. A intenção não é confundir o espectador na sua busca por uma evidência ou comprovação incondicional daquele encontro, mas reforçar o quanto o tempo narrativo é construído mediante o cruzamento de diferentes subjetividades. Robbe-Grillet diria: “Não existe ano passado, e Marienbad não se encontra mais em nenhum mapa. Esse passado tampouco tem qualquer realidade fora do instante em que é evocado com tanta força; e quando enfim triunfa, torna-se simplesmente o presente, como se jamais tivesse deixado de ser.” Essa estrutura, de algum modo, encontra-se também em Mise en Scène: na aproximação das imagens selecionadas e trabalhadas por Eloá Carvalho e na ênfase sobre sua presentificação em um mesmo espaço. Assim, presente e passado passam a se confundir na ficção criada pela artista. Marienbad é a história de uma persuasão; Mise en Scène é a exposição enquanto cena. A Galeria de Arte do Ibeu, preenchida por suas personagens, guarda algo da imobilidade de Frederiskbad.

Na sala de jantar, n. 2

2. Seria igualmente possível aproximar o ato criador de Eloá Carvalho ao do argumento principal de A invenção de Morel (1940), livro de Adolfo Bioy Casares, centrado na criação de uma máquina capaz de criar reproduções humanas. Capturadas e transformadas em projeção de suas imagens, as personagens do livro foram desse modo eternizadas: viverão para sempre na ilha de Morel, repetindo os mesmos gestos, as mesmas falas, as mesmas poses. Passam a existir apenas naquele lugar e em função da estrutura que as mantêm “vivas”. Mediante o uso da reprodutibilidade, o dispositivo técnico possibilita a aproximação de pessoas temporal e espacialmente distantes umas das outras, fazendo com que passem a existir simultaneamente. Torna-se difícil distinguir realidade, imaginação, simulacro e alucinação. “Quando intelectos menos toscos se ocuparem de sua invenção, o homem escolherá um lugar apartado, agradável, reunirá as pessoas mais caras e perdurará num íntimo paraíso. Um mesmo jardim, caso as cenas a perdurar sejam gravadas em momentos distintos, alojará inumeráveis paraísos, cujas sociedades, ignorando-se entre si, funcionarão simultaneamente, sem colisões, quase nos mesmos lugares.” As personagens de Mise en Scène também foram transformadas em imagens, aprisionadas em seu próprio jogo cênico. Encenam suas histórias e aqui coexistem (ou aparentam coexistir), seja entre si ou mesmo com aqueles que com elas interagem, seus espectadores. A invenção de Eloá aprisiona suas imagens no lugar que um dia habitaram.

Na sala de jantar, n. 3

3. Contudo, não estamos diante apenas de imagens. Sua existência em Mise en Scène – após serem selecionadas de um arquivo fotográfico institucional – está condicionada pelas escolhas da artista, ora as reelaborando através do desenho, ora por meio da pintura. É preciso considerar então que “grafite” e “tinta óleo” fornecem novas propriedades a essas figuras. Inicialmente capturadas pelo aparelho fotográfico – a maior parte em preto e branco –, as imagens foram então “traduzidas” em desenho. Tanto a proximidade com o procedimento fotográfico (mediante apropriação de imagens de arquivo) quanto a opção pela escala de cinzas do grafite (diferente da escala química de cores da fotografia) aproximam a artista de algumas ideias de Vilém Flusser. Em Filosofia da caixa preta (1983), por exemplo, o autor argumenta: “Não pode haver, no mundo lá fora, cenas em preto e branco. Isto porque o preto e o branco são situações ‘ideais’, situações-limite. O branco é presença total de todas as vibrações luminosas; o preto é a ausência total. O preto e o branco são conceitos que fazem parte de uma determinada teoria da Ótica. De maneira que cenas em preto e branco não existem.” As figuras de Mise en Scène existem dentro dos limites do PB. Mas cabe ressaltar que Eloá Carvalho recorre, embasada também em conceituações, aos chamados “cinzas cromáticos”, resultantes de misturas e procedimentos caros às técnicas da pintura à óleo. A realidade expressa nesses trabalhos é fruto de uma visão conceitual do mundo, anterior a qualquer ato ou ação operativa.

Na sala de jantar, n. 4

4. Pela primeira vez as figuras pintadas por Eloá Carvalho viraram-se completamente em direção ao espectador, dando a ver sua tez acinzentada. Se antes suas imagens eram representadas quase sempre de costas, eventualmente de perfil, com essa decisão, não só a fisionomia, como também o encarnado passaram a ser aspectos a serem considerados de modo mais intenso pela artista. Em A pintura encarnada (1985) Georges Didi-Huberman desenvolve um pensamento da (en)carnação em arte, tratando a questão como espécie de limite da pintura, de transição entre o visível (imagem) e o tangível (pigmento), entre a dimensão óptica e o aspecto háptico. “O encarnado visa, pois, ser duplamente notável: pelo que sugere de uma subjacência (…) e pelo que impõe de uma superfície levada ao extremo, como o aço de um espelho polido, mas transparente (…). Esse colorido por excelência está, pois, sob o influxo de um imperativo categórico do entremeio: entre superfície e profundidade.” Assim, o encarnado é aquilo que é visto na superfície – a “pele” – mas que também evoca a profundidade – o “interior” do corpo, um meio pelo qual “a pintura pode se imaginar como corpo e como sujeito”. A cor é um elemento que se dá a perceber não apenas como pura qualidade da superfície, mas como índice de uma profundeza transparente. Certas figuras de Mise en Scène são personagens apenas se vistas enquanto imagens; são, em última instância, imagens “encarnadas”, isto é, corporificadas por e na pintura.

Projeto para cena ao longe