O campo da ciência política no Brasil: uma aproximação construtivista, por Renato Lessa

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Renato Lessa é professor Titular do Departamento de Ciência Política da UFF.

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Resumo

A descrição de um campo de conhecimento – de sua gênese e de sua morfologia – pressupõe que nos situemos, ainda que forma imaginária, em algum ponto localizado no seu exterior. É essa mesma uma condição para observá-lo, ainda que vulnerável aos limites estabelecidos pelo lugar no qual nos fixamos, nesse suposto exterior. Poder-se-ia, por certo, proceder como um visitante estranho ao ambiente, como a imiscuir-se nos espaços de um museu não muito ordenado e assimétrico, a procura do que seu acervo, a um só tempo, guarda e revela. Tal imagem de intrusão, contudo, traz consigo a idéia de que um campo cognitivo pode ser representado como uma espécie de coleção de objetos. Uma coleção que resultaria de um acervo intertemporal, aberto a procedimentos diversos de datação e associação, de autoria variada, mas sempre passível de exibição a olhos interessados. Nesse caso, bastaria atenção aos fragmentos dispostos e exibidos e, do ponto de vista do exercício de nossa faculdade de julgar, a manifestação de modalidades distintas de satisfação e preenchimento.

Palavras-chave:

Ciência Política no Brasil, Construtivismo

Abstract

The description of a field of knowledge – of its genesis and morphology – requires that we stand, even if in imaginary form, at some point located on the outside. This is a condition for observing it, though vulnerable to limits established by the place where we dwell, in this supposed outside. It would be possible, of course, to proceed as a foreign visitor to the environment, something like to meddle in the spaces of a not very ordered and not symmetrical museum, in the search for what its collection, at the same time, guards and reveals. This image of intrusion, however, comes with the idea that a cognitive field can be represented as a sort of collection of objects. A collection that would result from an intertemporal collection, open to different procedures of dating and association, of varied  authorship, but always available to the view of interested eyes. In this case, it would be enough to pay attention to the fragments arranged and displayed, and, from the point of view of the exercise of our faculty of judging, the manifestation of different forms of satisfaction and fulfillment would be sufficient.

Key words

Political Science in Brazil, Constructivism

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Introdução

A descrição de um campo de conhecimento – de sua gênese e de sua morfologia – pressupõe que nos situemos, ainda que forma imaginária, em algum ponto localizado no seu exterior. É essa mesma uma condição para observá-lo, ainda que vulnerável aos limites estabelecidos pelo lugar no qual nos fixamos, nesse suposto exterior. Poder-se-ia, por certo, proceder como um visitante estranho ao ambiente, como a imiscuir-se nos espaços de um museu não muito ordenado e assimétrico, a procura do que seu acervo, a um só tempo, guarda e revela. Tal imagem de intrusão, contudo, traz consigo a idéia de que um campo cognitivo pode ser representado como uma espécie de coleção de objetos. Uma coleção que resultaria de um acervo intertemporal, aberto a procedimentos diversos de datação e associação, de autoria variada, mas sempre passível de exibição a olhos interessados. Nesse caso, bastaria atenção aos fragmentos dispostos e exibidos e, do ponto de vista do exercício de nossa faculdade de julgar, a manifestação de modalidades distintas de satisfação e preenchimento.

Uma aproximação construtivista, tal como a que aqui sugiro, exige a ultrapassagem de uma perspectiva puramente pictórica[1].  Afinal, o espaço dos acervos é pouco inocente e constitui-se por esforços de definição do que lhe é próprio e de seu oposto, daquilo que não pode e não deve nele ter abrigo. O filósofo da arte Arthur Danto, em outro domínio, utilizou o termo transfiguração para designar o processo pelo qual objetos da nossa experiência ordinária – lugares comuns, tais como latas de sopa, urinóis e aros de bicicleta – são percebidos e compreendidos como inscritos no campo da arte[2].  Assim, entre a arte de Marcel Duchamp ou Andy Warhol, por um lado, e aros de bicicleta e latas de sopa, por outro, mesmo em se tratando de domínios primariamente indistinguíveis, operaria uma forma de distinção que procede por meio de uma transfiguração dos lugares comuns.

Ainda que algumas formas da arte contemporânea – em particular as inúmeras versões da arte ready made – procurem eliminar a distinção entre objetos de arte e, digamos, objetos da vida, distinções permanecem e estabelecem de modo claro aquilo sobre o qual nosso juízo estético deve ou não incidir. Em outros termos, a experiência estética que temos com as latas de Andy Warhol ou a roda de bicicleta ou o urinol de Marcel Duchamp resulta da operação de uma transfiguração de lugares comuns. Claro está que o circuito da transfiguração exige nossa adesão como expectadores. Uma adesão que só se torna possível porque, de nossa parte, fomos constituídos como sujeitos habituados a certas formas de transfiguração. Em outros termos, aprendemos, desde muito cedo, a lidar com objetos e a distingui-los.

Uma abordagem construtivista a respeito da constituição de um campo cognitivo exige, portanto, a simulação de localizar-se em um ponto de vista externo ao campo sob consideração. É esta a condição para que tal campo seja percebido não como coleção de objetos, mas como espaço no qual diversas transfigurações têm lugar. Da mesma forma que lugares comuns podem transfigurar-se em objetos de arte, fenômenos ordinários da vida social transformam-se em marcadores conceituais, com a pretensão de representar a própria dinâmica das sociedades.

Tal como no domínio da arte, os campos cognitivos no assim chamado domínio da ciência operam por meio de transfigurações[3]. Se por um lado é fundamental – e mesmo incontornável – considerar os objetos sob inspeção por cada um desses campos, é igualmente imperativa a reflexão sobre os processos de transfiguração que fazem desses objetos problemas de investigação e de curiosidade intelectual.

Mais que pelo reconhecimento imediato e pela visibilidade dos objetos sobre os quais pretende fazer incidir efeitos de conhecimento, a configuração de um campo cognitivo resulta da presença de – e da tensão entre – diversas tentativas de defini-lo. A circularidade, aqui, é intencional. Os objetos sob inspeção de cada campo disciplinar não se apresentam como matérias dóceis e pré-existentes, a espera de descrição e explicação. Claro está que é isto que, de forma declarada, cada campo cognitivo julga fazer e crê que assim o faz. Afinal, não se tem notícia de esforço cognitivo algum que comece por declarar que não possui qualquer objeto. Mesmo se fosse este o caso, a negativa valeria como forma de objetivação, com os não-objetos a fazer às vezes de objetos.

Mas é outro aspecto o que aqui está a ser ressaltado: uma coleção de objetos não configura um campo de conhecimento. Para que o faça, é necessário considerar a presença de esforços de sistematização – presentes em atos normativos e vinculantes que dizem do que o campo se constitui -, nos quais desenhos de mundo factual são apresentados como dotados de sentido e passíveis de descrição e explicação.

O filósofo Willard Quine, de certa feita, declarou: somos todos propensos a falar de objetos[4]. Antes que uma interpretação naturalista, que enfatize na sentença de Quine o termo objetos, se imponha, talvez valha à pena introduzir um qualificativo: somos todos propensos a incluir algo que designamos por “fatos”, ou “objetos”, em nossas práticas lingüísticas ou, se quisermos, jogos de linguagem. Com efeito, somos todos propensos a falar, e, na verdade, só podemos falar de objetos, não nos sendo dada outra alternativa existencial e ordinariamente consistente. Mesmo linguagens privadas e não naturais são obrigadas a falar de seus objetos. O modo da referencialidade – inscrito na suposição de que ao falarmos referimo-nos a algo – impõe-se, portanto, a todas as formas de falar.

Para retomar o argumento de Quine: a depender do termo a enfatizar – “falar” ou “objetos” -, o sentido da proposição “somos propensos a falar de objetos”  dará passagem a narrativas distintas a respeito de nossos esforços cognitivos. Campos disciplinares, por exemplo, poderão ser apresentados tanto como circunscrições de objetos – com ênfase no termo “objeto” – quanto como formas de falar a respeito de objetos – com ênfase no termo “falar”.

A orientação presente nesta observação a respeito do campo da ciência política no Brasil, de um modo claro, inclina-se pela segunda alternativa.  Com efeito, são nossos modos de falar de objetos que acabam por constituir os próprios objetos como temas dignos de nossa atenção. Há aqui um eco da sensibilidade de Friedrich Nietzsche, ao falar das primeiras formas filosóficas entre os antigos gregos e ao dizer que, em seu nascimento, a filosofia começa por “legislar a respeito da grandeza”. Em outros termos, a filosofia começa por dizer o que efetivamente existe e o que é importante.

De um modo mais secularizado e mundano, é algo semelhante ao que se apresenta na operação ordinária dos campos de conhecimento. Eles estabelecem condições de existência de objetos – i.e., suas características distintivas e os padrões de causalidade que os envolvem – e seus marcadores de relevância, além dos procedimentos adequados de investigação e de validação. A inteligibilidade desse complexo cognitivo não pode nos ser dada por algo assemelhado a uma inspeção direta dos objetos sobre os quais tais campos exercem seu domínio disciplinar. A razão é simples: não há objetos a investigar, fora de campos disciplinares que os definem enquanto tais.

A formulação filosófica direta e rigorosa do problema, no quadro da filosofia contemporânea, foi estabelecida por Nelson Goodman: descrições de mundo fazem sentido no quadro de referência no qual a descrição está fundada[5]. Tal inscrição, mais do que um protocolo de nomeação de objetos, instaura regimes cognitivos, crenças causais e formas de correspondência e adequação – ou não – entre linguagem e mundo. Este é o sentido da orientação construtivista da abordagem de Goodman, presente em sua idéia seminal de que somos praticantes de maneiras de criar mundos.

Não há aqui qualquer dualismo entre pensamento e extensão, já que não se trata de opor um mundo mental – abstrato e desenraizado – a um mundo fenomênico e material. Ambas as dimensões – a , digamos, mental e a que corresponde à extensão – encontram-se na linguagem, o modo humano de inscrição da referencialidade. Nesse sentido, nosso encontro com os objetos é um experimento que nos constitui enquanto sujeitos e que se realiza na linguagem que empregamos para falar deles e dos nossos protocolos disciplinares de classificação e interpretação. Uma sensibilidade – mais do que uma abordagem – construtivista a respeito do processo de formação de campos disciplinares inclina-se, portanto, para a apreensão dos quadros de referência em que tal experiência se faz possível.

Uma primeira aproximação com o campo da ciência política no Brasil

Não dispomos, ainda, de uma história da Ciência Política brasileira. Sua datação, embora recente, poderia já em boa hora ensejar algum esforço sistemático em tal direção, coisa que aqui não será feita. Mas é compreensível a lacuna, pois quando pensamos nos cientistas políticos em ação no país, como um corpo profissional e intelectual cujos padrões disciplinares foram fixados e consolidados nos anos setenta e oitenta, estamos a falar em um espaço de tempo não maior do que o de três ou, no máximo, quatro gerações. Os mais jovens entre nós, por exemplo, ainda convivem – ou puderam conviver – com fundadores, e estes, com freqüência, tiveram como referências intelectuais inspiradoras autores e mestres fincados em outros campos cognitivos, já que marcados por formação iniciada antes da consolidação do campo no qual acabaram por se consagrar. Tal proximidade entre os extremos temporais faz com que qualquer tentativa de construir uma narrativa genética seja, ainda, marcada por certa confusão entre exercício histórico e recolha de memórias pessoais.

Mas trata-se, sobretudo, de uma história marcada pela curta duração. Tal sensação pode, contudo, ser mitigada se considerarmos que a história da ciência política brasileira é também a da ciência política no Brasil. O que pode resultar dessa superposição, mais do que um jogo de palavras, é a necessidade de uma dupla atenção: aos (i) processos de constituição de uma “ciência política brasileira” e o da (ii) presença no país de uma tradição intelectual de duração mais larga. Ou seja, a história curta – e local – inscreve-se, de um modo que lhe é próprio, em uma história mais larga – e mais cosmopolita -, já que a ciência política brasileira deve ser pensada, sob pena de paroquialismo e triunfalismo patológicos, como um conjunto de práticas e efeitos de conhecimento propiciados por uma disciplina construída em outros domínios e outras temporalidades.

O tempo próprio da ciência política brasileira pode, portanto, inscrever-se em uma temporalidade mais ampla, que a antecede e excede. Não quer isto dizer que limitamo-nos a reencenar nesse campo uma espécie de efeito idéias fora de lugar, para retomar a expressão célebre de Roberto Schwarz[6]. Efeito segundo o qual tradições intelectuais exógenas – e por isso mesmo exóticas -, por atos de imitação ilegítima, instituem modos “artificiais” de representação da vida política nacional. Se a história da disciplina excede os limites de uma história intelectual nacional, as condições de recepção locais serão decisivas para o desenvolvimento de estilos próprios. No entanto, a coisa pode não ser tão simples assim, pois o que designamos por “condições de recepção” nada tem de fixo e de incontaminado, pois bem pode, além de exercer efeitos inumeráveis de refração sobre o que está a ser recebido, resultar de recepções anteriores que acabaram por configurar condições de recepção futuras.

Seja como for, a mais importante avaliação até hoje feita da ciência política no Brasil foi elaborada, há cerca de 30 anos, por Bolivar Lamounier, como uma espécie de síntese do memorável seminário “A Ciência Política nos anos 80”, ocorrido em novembro de 1981, no então recém fundado IDESP, em São Paulo. Os textos ali apresentados foram reunidos em excelente livro, com idêntico título, no ano seguinte[7]. As pistas para uma reflexão a respeito do campo ainda lá estão, na conclusão elaborada por Bolivar Lamounier, a espera de algum aggiornamento, por certo, mas ainda vivas e capazes de exercer orientação.  Trata-se, nesse sentido, de um contributo inestimável. Qualquer avaliação que façamos do campo da ciência política no Brasil deve tomar esse texto como ponto de partida. É o que farei no decorrer desta sessão, com o acréscimo de alguns comentários e ponderações. Tentarei temperar os inevitáveis parasitismo e mimetismo com alguma observação pessoal, seja ela convergente ou, temo, discrepante.

Um dos muitos méritos da reflexão de Bolivar Lamounier foi o do reconhecimento de uma tradição de pensamento e reflexão política no país, prévios à fixação e à institucionalização da ciência política como campo científico. Sem exagero, é possível dizer que o próprio Lamounier, em seu texto, fixou a datação que acabou por se tornar uma referência identitária para a maioria dos cientistas políticos brasileiros, a saber, a que estabelece um espaço de tempo de 15 a 20 anos – entre meados da década de sessenta e o início da de oitenta -, como o período no qual a forma e a substância atual da ciência política no Brasil se consolidam[8]. A despeito disso, Lamounier não desconhece, em uma perspectiva de largo prazo, a concomitância entre nós havida entre o próprio processo de fundação e constituição do Estado Nacional, a partir do século XIX, e a emergência de uma reflexão atenta à importância dos fatores de ordem política e institucional.

Seu texto não desce aos pormenores dessa associação originária, mas nem por isso ela deve ser desconsiderada. Com efeito, nos primórdios do processo de configuração do Estado Nacional brasileiro é possível detectar os ecos de um intenso debate a respeito do experimento social e institucional a ser desenvolvido no país. Trata-se, por certo de uma reflexão – que no campo liberal radical pode ser encontrada em gente como Cipriano Barata, Frei Caneca, João Soares Lisboa e Gonçalves Ledo e no campo mais conservador em Cairú e, mesmo, José Bonifácio – voltada para a intervenção direta na conjuntura imediata dos conturbados anos do processo de independência.

Nenhuma dessas intervenções preencheria, com certeza, os protocolos mais tarde fixados para configurar uma ciência supostamente rigorosa da política.  No entanto, o propósito de intervenção imediata de modo algum apareceu, nos primeiros pensadores políticos do país, como impedimento à incorporação fertilizadora de tendências então contemporâneas no campo da filosofia política, no plano internacional. Atesta-o bem o Visconde de Cairú que, ao demarcar-se do campo liberal radical, nos idos dos anos vinte do século XIX, declarava que “Rousseau e Mably não são os meus homens”. Em termos mais diretos, são as linguagens do liberalismo – em chave radical e democratizante ou em outra mais inclinada para os temas da liberdade de comércio – que comparecem ao primeiro grande debate público brasileiro, que culminou no processo de elaboração da primeira Constituição, outorgada em 1824[9].

Não é o caso, aqui, de seguir os pormenores do debate acima aludido. Mas, mesmo nos limites de uma alusão rápida e superficial como a que aqui faço, é possível sustentar a presença de um pensamento político ativo, motivado não apenas por influências “estrangeiras” – francesas, inglesas e norte-americanas, sobretudo –, mas também pela oportunidade de intervir em um processo de criação de uma nova unidade política. Tal oportunidade foi de extrema valia para a fixação de uma tradição de pensamento político, a um só tempo voltada para o entendimento e a interpretação de problemas postos pela dinâmica política e social do país e para o desenho normativo de imagens de configurações alternativas possíveis[10]. Em grande medida, o que hoje designamos como o “campo da ciência política brasileira” tem nessa tradição seu ponto de partida e um lastro incancelável. A precedência de um pensamento político, a um só tempo atento ao debate internacional e voltado para a intervenção prática, deve deflacionar nossas sensações de que o campo estabelecido a partir da consolidação da moderna pós-graduação no país é contemporâneo de sua própria história[11].

De todo modo, a avaliação feita por Bolivar Lamounier, há cerca de 30 anos atrás, estabeleceu os marcos de uma narrativa genética a respeito da constituição do campo da ciência política no Brasil: trata-se, a seu juízo, de um trajeto que tem como ponto de partida “pensadores isolados” do começo do século XX, e que tem como desaguadouro a “recente modernização do sistema universitário”, a partir dos anos sessenta. Tais marcadores permanecem úteis para representar uma história que, não obstante as três décadas que nos separam do texto mencionado, ainda inscreve-se no âmbito de uma curta duração. A avaliação de Lamounier é marcada por algum otimismo a respeito do “relativo avanço” da Ciência Política no Brasil. Para retomar seu argumento, tal “avanço” estaria associado a dois fatores mais gerais, um de natureza histórica e outro de extração institucional, a saber:

(i)                 a já mencionada “existência de uma importante tradição de pensamento político, anterior aos surtos de crescimento econômico e urbanização” do século XX e “mesmo ao estabelecimento das primeiras universidades”[12];

(ii)               a “expansão quantitativa da pós-graduação e a concomitante diversificação de formas institucionais que se operaram a partir meados dos anos sessenta”[13].

Se esses são os fatores que, de modo combinado, propiciaram “avanço”, os marcadores mais precisos seriam de duas ordens:

(i)                 Presença de uma “autonomia bastante acentuada no que diz respeito à construção de seu objeto”: tanto nos debates dos anos 20 e 30 do século passado, sobre a “organização política nacional”, como nas teses e pesquisas contemporâneas teria se configurado uma ciência política não subsumida em outros domínios analíticos, das humanidades e das ciências sociais[14];

(ii)              Presença de um processo de distinção entre a ciência política e as demais disciplinas que compõem o campo das ciências sociais, por meio de uma progressiva “profissionalização”: trata-se da “diferenciação de um papel profissional e de instituições específicas, em relação às demais ciências sociais”[15]; uma diferenciação de disciplinas, portanto, que se estabelece no interior das ciências sociais.

O primeiro dos marcadores – a presença de uma acentuada “autonomia” a respeito da constituição do objeto – diz respeito à presença continuada de uma atenção a dimensões políticas e institucionais, como base de um exercício intelectual que toma a política como sua referência central. É interessante, aqui, o contraste com outras experiências nacionais, também marcadas longamente pelo selo do autoritarismo político.

O cientista social português Manuel Villaverde Cabral, participante do seminário acima aludido, em ensaio iluminado a respeito da constituição da ciência política em Portugal, dá a medida desse contraste e chama a atenção para o fato de que em seu país uma reflexão sistemática que tome a dimensão política como aspecto central só será praticada de modo continuado após a revolução democrática do 25 de abril de 1974[16]. Antes do magnífico marco histórico, a reflexão política portuguesa, quando não asfixiada e dirigida pelo experimento do salazarismo, aparecia imersa no que Villaverde Cabral designou como um “ciclo de embeddment”, pelo qual a narrativa política sempre acabava encerrada – embebida ou envolvida – em “casulos” estabelecidos pela narrativa histórica mítica e remota.

É a idéia de embeddness, originalmente aplicada por Karl Polanyi para descrever a relação entre circuitos de troca econômica e vida social, em um mundo ainda intocado pelo “credo de mercado, que emerge aqui como marcador da posição ocupada pela reflexão política diante de outras modalidades narrativas a respeito da experiência social[17]. O trecho, a seguir, retirado da análise de Villaverde Cabral diz bem do sentido que atribuiu ao problema do embeddment, em seu iluminado ensaio, escrito em 1981:

…a historiografia (portuguesa) oficial aboliu praticamente o período contemporâneo (…) e refugiou-se na erudição medievalesca, no encantamento das Descobertas e no desencanto da Decadência; até hoje, que saibamos, não foi defendida nas universidades portuguesas uma única tese de doutoramento sobre o século XIX, para não falar do século XX…[18]

O que Bolivar Lamounier procurou acentuar através do termo “autonomia” é o fenômeno da relativa ausência dos efeitos de embeddedness, pelos quais uma dissolução da sensibilidade analítica com vistas a fenômenos políticos seria estabelecida. Os assim chamados fenômenos estritamente políticos apareceriam – ou teriam sido constituídos, para utilizar terminologia filosoficamente menos ingênua – de modo não encerrado ou embebido em narrativas de outras ordens.  Ao contrário, a visibilidade e a relevância descontaminadas de temas de natureza política teria, desde o início, sido marcante na reflexão brasileira.

No entanto, no que diz respeito a Portugal é necessário distinguir dois padrões distintos de embeddedness, ambos ressaltados pela análise original de Villaverde Cabral. Uma coisa é dizer de uma dissolução – ou apagamento – da sensibilidade analítica para fenômenos políticos por força das artes de um regime hiper-autoritário, que impõe e fixa como narrativa compulsória a respeito da experiência nacional uma forma retórica mítica e hagiográfica. Outra, e muito distinta, diz respeito à presença de uma atenção analítica efetiva a temas políticos, porém atada a hábitos intelectuais segundo os quais as narrativas que disso decorrem não exigem o desvincular-se de outras modalidades de expressão. Nesse último caso, encontramos exemplares notáveis na obra de Oliveira Martins, no século XIX, e, contemporaneamente, nos ensaios do filósofo José Gil, a respeito da cultura política e cívica portuguesa[19]. O próprio trabalho de Villaverde Cabral, de modo continuado, assim o demonstra, pela recusa de abandonar dimensões de natureza sociológica como componentes obrigatórios para a interpretação dos fenômenos políticos. Em todos esses registros, questões de natureza política são consideradas, porém em associação com aspectos históricos, sociológicos, culturais e valorativos.

Faço a ressalva menos por atenção ao caso português e mais pelo fato de que tal distinção parece-me crucial para entender o próprio processo brasileiro de afirmação de um pensamento político. Se for verdade que, desde os primórdios do pensamento político brasileiro, uma atenção ao caráter distintivo da política se fez presente, por outro é importante considerar que o tratamento intelectual de temas políticos não implicou na constituição de um saber específico e autárquico da política.

Ao contrário, a tradição do ensaísmo brasileiro, fortíssima até os anos sessenta, e ainda não de todo extinta, ao considerar temas de natureza política, o fez de um modo tal que narrativas históricas, literárias, filosóficas, sociológicas, econômicas e de outras extrações comparecessem à análise. “Autonomia”, nesse caso, implicava apenas o reconhecimento de um domínio de objetos a considerar, mas não a adesão a um saber distinto e independente das demais narrativas sobre a experiência histórica, cultural e social. Se a primeira forma de autonomia é uma condição necessária para que falemos de política, a segunda é mais discutível. As implicações dessa distinção serão consideradas adiante.

É essa segunda forma de “autonomia” que se apresenta no marcador “profissionalização”, destacado por Bolivar Lamounier. Sua narrativa a respeito da história da ciência política brasileira pode ser pensada como o trânsito entre as duas formas mencionadas de autonomia: do reconhecimento originário de um domínio propriamente político de objetos à afirmação moderna de uma profissão específica – uma “comunidade epistêmica” particular, para adotar os termos de P. M. Haas[20] -, dotada de identidade, de recursos cognitivos, hábitos institucionais e linguagens próprias e compartilhadas.

Esta é, com certeza, uma forma engenhosa e legítima de se contar a história da constituição de um campo cognitivo. O risco que contém é o de tomar certa imagem da forma presente como o resultado virtuoso de um processo. Nessa chave, o passado – tanto o mais remoto e como o mais imediato – vale como passado deste presente, e não como estoque de diferentes futuros possíveis. Há, pois, uma teleologia implícita, quando não claramente posta, que toma a forma atual – desenvolvida a partir dos anos setenta do século passado – como a ponta de um processo bem sucedido de diferenciação e de modernização. Diferenciação temática, por referência a outras disciplinas – a dar passagem a convergências no interior de seu próprio campo – e modernização metodológica aparecem como cláusulas pétreas para tal exercício historiográfico.

Narrativas a respeito do campo são formas de constituição desse mesmo campo. Neste sentido, o texto seminal de Bolivar Lamounier é um momento preciso e particular de constituição do próprio campo. Os movimentos fundamentais da narrativa opõem a detecção de um período longo – que vai dos primórdios do pensamento político brasileiro até os anos sessenta – a outro, mais recente e configurado por alterações de corte institucional.

No primeiro caso, encontramos intelectuais isolados, a praticar um ensaísmo histórico-sociológico aberto, sem sinais de adensamento e apuro disciplinar. Na outra ponta, a indicar desdobramentos recentes, uma expansão forte de programas de pós-graduação e uma diversificação de formas institucionais de trabalho: departamentos universitários e centros de pesquisa, públicos e privados. Nessa segunda fase, o exercício de reflexão a respeito da política teria ganhado contornos de maior continuidade e sistematicidade, em um processo concomitante ao da progressiva profissionalização dos produtores de conhecimento político.

Mais do que uma distinção de fases, a narrativa histórica, assim configurada, apresenta uma distinção de ênfases. De algum modo, a dimensão institucional ganha enorme relevo – quando não pela sua presença inegável – na interpretação do campo, a partir da segunda metade dos anos sessenta. A reflexão que se faz a respeito da ciência política no país passa a tomar como referência forte os espaços e as formas institucionais nas quais ela é exercida e menos os conteúdos específicos dessa produção.

Até 1964

O marco de março de 1964 é crucial para a história das ciências sociais no Brasil. Em uma chave negativa, a referência é óbvia e trivial, mas não por isso facultativa. A razia liberticida exercida pelo regime imposto em 1964 atingiu núcleos intelectuais importantes no país, em praticamente todos os campos científicos. As ciências sociais e as humanidades, por sua tradição normativa e militante, foram duramente afetadas, por aposentadorias compulsórias e cassações – e por coisas ainda piores – que incidiram sobre alguns de seus praticantes destacados.

Se o ato inaugural do regime pode ser percebido como eminentemente destrutivo, sua duração e fixação no tempo acabaram por constituir alterações e referências que marcaram de modo fundo as ciências sociais no país. Para além, portanto, da negatividade e do caráter regressivo que sempre estiveram presentes em suas práticas e orientações, o regime produziu efeitos de positivação, quer pela reestruturação e nacionalização de um sistema universitário público, quer pela organização de agências de fomento e regulação, que serviram de lastro para a própria institucionalização das ciências sociais no país. Vítimas privilegiadas do golpe que deu origem ao regime, as ciências sociais vieram a desenvolver durante os anos autoritários muito de sua forma e substância atuais.

A medida dessas alterações exige alguma consideração a respeito do campo ocupado pela reflexão política sistemática, antes dos idos de abril de 1964. Aqui, mais uma vez, as pistas estabelecidas pelo texto de Lamounier são incontornáveis. O longo período que antecedeu à moderna institucionalização da ciência política – e das ciências sociais em geral – começa por ser abordado a partir de certa negatividade. Como já assinalei, ele teria sido povoado por pensadores que trabalharam, por vezes, de modo isolado, sem o lastro institucional das universidades e centros de pesquisa. Esforços mais recentes, e outros nem tanto, no campo da história do pensamento político brasileiro têm procurado demonstrar a consistência dessas tradições e suas formas próprias de fixação[21].

É importante fixar algumas características desse mundo anterior a 1964. Por vezes, somos tomados pela sensação de que se trata de um mundo estranho, de um passado desconectado dos tempos que lhe vieram a suceder. Nesse sentido, o experimento iniciado em 1964 teria sido capaz de fundar uma história contemporânea de si mesma, tornando irrelevante para fins de entendimento de sua própria dinâmica a observação sistemática do que lhe antecedeu. Abrigada por alguma análise acadêmica, tal percepção inibe a perspectiva do longo prazo e fixa-se de modo privilegiado na curta – ou já média – duração. De qualquer modo, no plano da reflexão política, alguns traços devem ser aqui realçados.

O tema da formação do Estado e da nação teria sido, ainda de acordo com o enquadramento proposto por Lamounier, o marco de referência inicial para um pensamento sistemático sobre a política entre nós. Com efeito, é possível encontrar os termos de uma rica agenda política e intelectual, já na reflexão do século XIX, em torno de temas nada triviais ou amadorísticos: centralização ou descentralização política, prerrogativas do Poder Moderador, reforma eleitoral, abolição, propriedade fundiária, papel das forças armadas e forma de governo, entre outros.

O mínimo que se pode dizer de tal agenda é que ela reunia aspectos cruciais para o enquadramento do processo de constituição do Estado brasileiro. É possível detectar no tratamento dessa agenda a presença de diversos estilos intelectuais: o Visconde de Uruguai – em seu clássico Ensaio sobre o Direito Administrativo­ -, por exemplo, exibe uma forma narrativa fortemente institucionalista e fincada do Direito Público e Administrativo; Joaquim Nabuco – tanto no Estadista do Império como em O Abolicionismo – envolve suas observações sobre os dilemas políticos do país em uma narrativa histórica e de inspiração sociológica. Não havia, portanto, cânone a dirigir as narrativas a respeito do mundo político.

Tal agenda e tal variedade de enquadramento viriam a ser recepcionadas durante a Primeira República. Bolivar Lamounier resume bem essa variedade ao indicar a presença de uma “forma narrativa específica (…), o ensaio histórico, a grande reflexão sobre a história nacional”[22]. Tal forma reuniu nas primeiras décadas do regime republicano, intelectuais tais como Euclides da Cunha, Sylvio Romero, Ruy Barbosa, Alberto Torres e Oliveira Vianna. Este último, ativo já no início dos anos 20, do século passado, continuaria a sê-lo até a década de 50. A esse grupo somar-se iam, ainda, Azevedo Amaral, Francisco Campos e Nestor Duarte. Não seria exagero acrescentar a esse conjunto a figura do gaúcho Joaquim Francisco de Assis Brasil, o pioneiro entre nós de uma vocação intelectual policy oriented, já que suas prescrições a respeito do sistema representativo, escritas ao longo de toda a Primeira República, foram cruciais para a definição do Código Eleitoral de 1932[23]. Do mesmo modo, a linhagem intelectual que conectou gente como Alberto Torres, Oliveira Vianna, Francisco Campos e Azevedo Amaral produziu forte impacto na agenda política e institucional do país, a partir dos anos 1930.

Tal conjunto heteróclito compartilhou de algumas características comuns, ressaltadas na análise de Lamounier, a saber:

  1. A prática de “um trabalho essencialmente individual, sem apoio universitário e sem crítica acadêmica sistemática” (413);
  2. Uma inserção imediata da “luta ideológica”, em um padrão distinto do da cultura acadêmica, marcada pela “análise diferenciada das premissas e/ou da investigação empírica, vistos como contribuições a uma literatura profissional cumulativa” (413).
  3. A produção de um diagnóstico convergente, segundo o qual o país era dotado de elites com caráter clânico e fortemente associadas à propriedade da terra, a impedir uma “diferenciação da esfera pública” e a constituir-se em grave óbice para a consolidação do Estado[24].
  4. Com relação às massas, elas tendem a ser percebidas como imersas na pobreza, na dispersão e na inorganicidade, vitimadas por uma “massificação pré-capitalista”.
  5. Uma percepção de que a viabilidade do Estado não poderá depender das vias históricas “normais”, de fundo societário, já que ele deve se constituir como antídoto à fatalidade sociológica do atraso, fundado na estrutura clânica e em complexos culturais arcaicos (Oliveira Vianna).

O conjunto, assim configurado, apresenta uma forte aproximação entre disposição analítica e projeção normativa. Trata-se, afinal, de entender os aspectos básicos do travamento da afirmação do estado nacional e de, ao mesmo, tempo indicar alternativas de intervenção e de fabricação institucional. Tal associação entre análise e normatividade, presente nos autores fundamentais nas primeiras décadas do século XX, não se dissiparia nos anos posteriores, de constituição e de fixação de uma ciência política disciplinar. A esfera política – quando não a da própria ação política – é apresentada como referência estratégica para a modernização do país, a despeito do caráter regressivo e inercial das instituições sociais.  Em termos mais diretos, tem-se aqui uma perspectiva segundo a qual as alterações sociais podem ser pensadas como efeitos do redesenho institucional e estatal.

O clássico livro de Vitor Nunes Leal, Coronelismo, Enxada e Voto, publicado em 1948, representou uma inflexão importante, com relação à tradição acima indicada[25]. Nunes Leal, por certo, herdou de seus predecessores a preocupação com os fatores de atraso social do país e com suas implicações para a configuração de um espaço público. De modo mais preciso, procurou enfrentar um dilema central para o regime constitucional inaugurado em 1946, o primeiro experimento brasileiro de política mais aberta e competitiva e no qual o voto passa a cumprir papel relevante. A análise de Nunes Leal, embora focada em aspectos de organização política e administrativa não se apresentava como centrada exclusivamente em fatores políticos. Para ele, a modernização social do país traria consigo a redução do peso específico dos complexos arcaicos de Oliveira Vianna. Não se trata mais de pensar a constituição de uma esfera pública como contraponto à inércia social, mas de buscar uma associação entre mudança social e democratização política. Os aspectos de natureza política e institucional aparecem, pois, no livro de Nunes Leal como imersos – para trazer de volta o tema da embeddness – em um conjunto de injunções históricas e sociológicas. Será essa a marca das principais obras de reflexão política produzidas no país, até os idos de 1964.

Com efeito, algumas das principais obras produzidas entre fins dos anos 1940 e o início da década de 1960 a respeito dos dilemas e das perspectivas do país, ainda que apresentem forte preocupação com questões de natureza política, podem melhor ser percebidas como “interpretações do Brasil”. Uma seleção, não exaustiva, além do livro de Nunes Leal, poderia indicar como representativos os seguintes autores e obras: Oliveira Vianna, Instituições Políticas Brasileiras (1949), Guerreiro Ramos, A Crise de Poder no Brasil (1961), Alvaro Vieira Pinto, Ideologia e Desenvolvimento Nacional (1956) e Consciência e Realidade Nacional (1960) e Raymundo Faoro, Os Donos do Poder (1958). Não é o caso aqui de esmiuçar suas teses, mas de indicar que, a despeito da enorme diversidade de suas abordagens e orientações, as obras e os autores mencionados configuram um campo de reflexão no qual o tema específico da política encontra-se vinculado a um vasto conjunto de questões e referências mais amplas.

É este mesmo o cenário ao qual se referiu Bolivar Lamounier, quando mencionou a presença de uma reflexão política “vigorosa”, anterior ao estabelecimento formal de universidades. Há ali uma espécie de estoque anterior de pensamento político. Tal estoque teria uma “importância decisiva para se compreender as características da ciência política, que vai aos poucos se institucionalizando”[26]. Ainda que possa ser pensado como um “estoque” dotado de “importância decisiva”, tal conjunto difere em muita de suas características daquilo que viria a ser considerado, a partir dos anos setenta como um produto típico da ciência política. Não apenas os marcadores da profissionalização far-se-ão mais salientes, acompanhados da recusa progressiva de envolvimento com narrativas históricas, sociológicas e culturalistas. Todo um padrão de associação entre análise e prescrição que será, a partir de 1964, progressivamente abandonado. Em outros termos, se algo há em comum entre os autores acima mencionados, como representativos da reflexão política brasileira entre os anos 1940 e 1960, é seu caráter indisfarçavelmente normativo.

Consulte-se, por exemplo, o belo ensaio de Vieira Pinto, a respeito da ideologia do desenvolvimento nacional, publicado em 1956, no qual somos convidados a adotar a “perspectiva do infinito” e a perceber o desenvolvimento como um imperativo para a democratização fundamental do país[27]. Em chave mais depressiva, a análise de Faoro, publicada em 1958, projeta sobre a história do país a sombra de um legado patrimonialista, cujos contornos mais do que resultar de um esforço descrição derivam de uma concepção fortemente normativa a respeito do processo histórico brasileiro[28]. Os dois exemplos, creio, são suficientes para indicar a presença de uma forte perspectiva de envolvimento da observação política com outras tradições reflexivas – filosofia e história -, assim como a força de uma motivação normativa. É como se o esclarecimento do que se apresenta como sendo o caso exigisse como complemento a indicação de como as coisas devem ser.

1964, e depois

Não deve constituir surpresa constatar o quanto da reflexão política é afetado pelas circunstâncias. Se a imaginação é, em boa medida, co-autora da vida política, ela, por vezes, vê suas alternativas de desenvolvimento e invenção atravessadas por reorientações ocorridas na própria dinâmica do mundo público. As transformações ocorridas na dinâmica política e social brasileira no pós-64, por exemplo, afetaram profundamente a substância e as formas de organização das ciências sociais no país[29]. Para além dos impactos regressivos e repressivos, o novo “regime” reestruturou progressivamente ambiente institucional da ciência brasileira. O próprio sistema nacional de pós-graduação, implantado pela reforma universitária de 1968, como notou Spina Forjaz, em sua avaliação sobre a ciência política brasileira,

ampliou enormemente o mercado de docentes universitários, pesquisadores, bolsas de estudo, bibliotecas, laboratórios e todos os outros aparatos necessários ao desenvolvimento científico num leque bastante diversificado de áreas de conhecimento, expansão com a qual as ciências sociais em geral, e a Ciência Política em particular, também foram beneficiadas[30].

A disposição de constituir um ambiente institucional favorável à atividade científica, em contexto autoritário, aparece à primeira vista como paradoxal, dada a associação habitual entre ânimo repressivo e obscurantismo científico e cultural. È à natureza modernizadora do regime de 1964 que deve ser debitada tal configuração aparentemente esdrúxula, e não a seus traços autoritários. Em outros termos, a correlação hipotética defensável é a que associa “progresso científico” a “modernização” e não à natureza intrinsecamente autoritária do regime. É de se crer, portanto, que qualquer regime, desde que composto por uma perspectiva “modernizadora”, teria como atributo necessário uma agenda positiva de política científica.

De modo mais preciso, e como notado também por Lamounier, aquilo que viria a ser designado como a “institucionalização da ciência política” esteve fortemente vinculado ao desenho e a montagem desse sistema de pós graduação. As primeiras iniciativas constituir-se-iam já na década de 1960, no Departamento de Ciência Política da UFMG (1967) e no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (1969), com a criação de programas de mestrado em Ciência Política.

Além de alterações institucionais imediatas, no campo da vida universitária e da ciência, os novos tempos caracterizar-se-iam pela afirmação progressiva do papel do Estado na configuração da sociedade brasileira. Se os temas do desenvolvimento, da questão nacional e das reformas de base, na primeira metade dos anos sessenta, constituíram-se como atratores quase compulsórios para a reflexão política, o quadro a partir dos idos de março de 1964 será um tanto distinto. Com efeito, a partir da segunda metade da década de 1960, o macro tema que se impõe, a interpelar a capacidade analítica dos cientistas sociais, é o da crescente presença e preeminência do Estado em praticamente todos os processos sociais. É como se um efeito de politização resultasse da presença ativa do Estado. Uma politização, por certo, sem política, isto é, sem os marcadores clássicos que indicam a relevância da atividade política, tais como “participação política”, “eleições”, “partidos”, entre outros.

Não é que o tema “Estado” estivesse ausente na reflexão anterior a 1964. Ao contrário, a história da reflexão política brasileira testemunha o quanto o tema da formação do Estado Nacional constituiu seu objeto por excelência. A diferença no pós-64 é a de que ele passa a ser considerado menos como um domínio fixado na dinâmica social mais ampla, e resultante de processos de longo prazo, e passa a ser percebido como arena na qual múltiplos processos decisórios têm lugar. O deslocamento teve, por certo, precedentes na ciência política norte-americana, na qual a idéia de Estado, por metafísica e sociologicamente contaminada segundo seus detratores, cede lugar a figuras como o “governo” ou, de modo mais singelo, a “administração” ou “sistema político”. Falar-se-á, por essa via, cada vez menos em “Estado” e cada vez mais em “processos decisórios” e em “políticas públicas”, expressões acrescentadas nos anos 70 ao vocabulário político brasileiro. Hoje ambos os termos registram presença ubíqua no vocabulário dos agentes políticos e sociais fora do âmbito acadêmico e configuram uma sub-área da ciência política, não apenas em termos de agenda de pesquisa e de especialização pós-graduada, mas no próprio ensino de graduação, como cursos específicos.

Simon Schwartzman, com acuidade, assim reagiu, ao desuso do termo e do tema do “Estado”:

A força do conceito de Estado (i.e em contraposição ao de sistema político) é que ele se refere a um aspecto muito concreto e generalizado das sociedades modernas – o desenvolvimento de grandes e complexas estruturas organizacionais que concentram o poder, tendem a manter o monopólio do uso da força, organizam-se em linhas burocráticas, tem um limite territorial definido, e assim por diante. Além disso, o Estado não é uma simples função dentro de um sistema político, uma vez que, de acordo com suas diferentes histórias, cada sociedade tem seu tipo peculiar e, como diz Nettl, seu grau específico de estaticidade (stateness)[31].

Alterações na agenda de política científica e na própria configuração do espaço público tiveram, portanto, um efeito estruturante na reorientação das maneiras de produzir conhecimento político sistemático entre nós. Há que acrescentar, contudo, um fenômeno crucial: o da socialização de uma importante geração de cientistas sociais – a variante política aí incluída – nos temas e nos padrões disciplinares da ciência política norte-americana. Trata-se de dimensão relevante, sem cuja consideração alguns dos aspectos acima mencionados não podem ser adequadamente compreendidos. Vários dos aspectos ressaltados por Lamounier como constitutivos da identidade da disciplina a partir da década de 1970 estão associados a esse nexo, em particular o da profissionalização e o da postulação ontológica de um âmbito da política autônomo com relação a outras dinâmicas sociais.

Tal socialização teve como agentes facilitadores a presença e a ação da Fundação Ford no Brasil, já ao fim da década de 1960. Com clara tintura crítica, Spina Forjaz notou que a fundação foi “fator fundamental na implantação de uma Ciência Política de orientação norte-americana”[32]. Se essa foi a intenção clara, os efeitos, como veremos, são menos óbvios. Dessa socialização inequívoca não resultará necessariamente uma simples clonagem do modelo original, ainda que uma cultura disciplinar fortemente afetada por uma inclinação positivista e por forte apego ao “rigor metodológico” tenha permanecido como legado perene e constitutivo da nova identidade. Seja como for, o investimento da Ford em programas de ensino e pesquisa em ciências sociais foi considerável. Em um quadro reproduzido por Sergio Miceli, com base em dados da própria Fundação, esta instituição teria despendido em grandes dotações cerca de 14 milhões de dólares, entre fins dos anos sessenta e 1988[33].  Ainda no âmbito de fins da década de 1960, as instituições mais beneficiadas foram o Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), o Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro), o Departamento de Ciência Política da UFMG e a UFRGS. Ainda que as dotações não tenham incidido de forma exclusiva sobre a ciência política, é inegável que a área foi fortemente beneficiada[34].

A experiência americana

O contato com a ciência política norte-americana – para a ciência política brasileira tomado, por vezes, como sinônimo de “internacionalização” – encontrou naquele país uma disciplina dotada de uma história própria, e não apenas um paradigma congelado, perene e imune à ação do tempo. O passado então recente da disciplina – a partir de meados dos anos quarenta – foi atravessado por uma mutação intelectual que, na verdade, afetou o conjunto das ciências sociais e das humanidades nos Estados Unidos. É importante ter, ainda que de forma muito breve, uma idéia da densidade histórica da disciplina em seu contexto norte-americano, já que ela está fixada como influência estruturante na trajetória originária daquilo que viria a ser a ciência política brasileira, a partir dos anos setenta. Para tal, valer-me-ei de alguns resultados de um importante projeto, desenvolvido nos Estados Unidos em meados da década de 1990, a respeito do estado das ciências sociais e humanas tal como praticadas naquele país, nos cinqüenta anos que a antecederam.

Em meados dos anos 1990, dois dos mais prestigiosos historiadores norte-americanos – Thomas Bender e Carl Schorske – foram responsáveis pela edição de um balanço crítico a respeito das ciências sociais e humanas em seu país. O projeto – designado como American Academic Culture in Transformation foi abrigado pela American Academy of Arts and Sciences e resultou, em primeiro lugar, em um número especial da revista Daedalus, da própria academia[35]. Foi em seguida transformado em livro publicado pela Universidade de Princeton[36]. Trata-se de um excelente e ainda vívido quadro histórico de parte das ciências sociais e das humanidades naquele país. Ali aparecem dilemas e contornos internos, assim como vinculações com o ambiente cultural, político e social mais amplo. Embora com foco exclusivo na história intelectual norte-americana, os temas e dilemas ali presentes são familiares a contextos acadêmicos fortemente marcados pela influência das ciências sociais e das humanidades que se desenvolveram e se desenvolvem naquele país, tal como é o nosso caso. Nesse sentido, poderá ser útil a menção, ainda que breve, a alguns aspectos revelados pelo projeto desenvolvido por Bender e Schorske para algum entendimento de dinâmicas presentes no campo da ciência política no Brasil.

O projeto de Bender e Schorske concentrou-se em quatro campos disciplinares: economia, filosofia, estudos de inglês e ciência política. Para cada um deles eminentes praticantes foram convocados para contribuir com textos que mesclaram memorialismo e análise. Na apresentação que fazem ao livro, Bender e Schorske mencionam a ocorrência de uma “virtual refundação” das quatro disciplinas, na virada das décadas de 1940 e 1950[37]. Tal refundação teria sido motivada pelo desejo de superar o que então se percebia como o legado ideológico da década de 1930, cujos ecos podem ser encontrados em dois documentos importantes para a história da educação superior norte-americana: “General Education in a Free Society”, elaborado em 1945 por uma comissão da Universidade Harvard – mais conhecido como o “Red Book” – e “Higher Education for Democracy”, vasto relatório publicado em 1947 pela Comissão de Educação Superior (Comission on Higher Education).  Ambos os documentos afirmam a importância do desenvolvimento da cultura científica e da tradição humanística européia e uma idéia de formação intelectual associada a responsabilidades de direção dos assuntos públicos[38].

A virada viria ao fim dos anos quarenta, aprofundando-se na década seguinte. Marcadores internalistas passam a ter primazia como aferidores de excelência, em detrimento de outros, de natureza externalista, que, em tempos anteriores, contemplavam o vínculo da academia com o espaço cívico e público. A nacionalização da educação superior, a partir dos anos quarenta, trouxe consigo a universalização de um padrão de excelência definido em termos cada vez mais endógenos. Richard Freeland, em importante livro, chamou a atenção para uma alteração no padrão de “constituency” da academia, nessa nova chave: não mais o âmbito público em geral, mas os próprios âmbitos disciplinares e as formas institucionais que os sustentam[39]. O mesmo processo foi percebido e analisado por David Riesman e Christopher Jencks, ao qual atribuíram o termo “revolução acadêmica”[40]. Dois valores podem ser apresentados como síntese dessas mutações: autonomia acadêmica e profissionalismo disciplinar. Bender indica as implicações desses valores para a organização das ciências sociais e humanas[41]:

(i)                 Devoção ao modelo das ciências duras;

(ii)              Compromisso com a objetividade;

(iii)            Confiança no poder da análise formal;

(iv)            Aversão à ideologia e a ameaças à “pureza disciplinar”.

O trabalho acadêmico adquire, portanto, uma perspectiva internalista – “inward- looking” – e devota-se primariamente ao desenvolvimento disciplinar e treinamento dos estudantes para a disciplina em questão. Dificilmente poderíamos encontrar uma evidência tão forte da presença dessa reorientação no campo das ciências sociais quanto a fornecida em discurso proferido por Talcott Parsons, em 1959, na reunião da American Sociological Association. Segundo Parsons, como disciplina científica, a sociologia dedica-se primaria e claramente ao avanço à transmissão de conhecimento empírico e apenas secundariamente à comunicação de tal conhecimento a não praticantes da disciplina[42]. Parsons opõe-se, assim, de modo aberto a concepções segundo as quais o avanço da disciplina tem como principal motivo a comunicação a não-praticantes e a usuários – governos, associações e o público em geral[43].

A virada, contida na idéia de uma “academic revolution”, apresentou-se de forma diferenciada, mas eloqüente, nas quatro disciplinas analisadas pelo empreendimento coordenado por Bender e Schorske. A economia, a partir, dos ano 40 vê-se tomada pelo progressivo abandono dos temas keynesianos clássicos – inscritos em uma perspectiva de economia política e, mesmo, social – e passa a afirmar-se como econometria e a adotar uma linguagem formalizada e não-natural[44]. Os estudos de Inglês, sob a égide no New Criticism, passam a ser atravessados por uma cultura intelectual formalista, que virá a ser contestada, nos anos sessenta, pela emergência dos Estudos Culturais – “Cultural Studies” – e pelo desenvolvimento de perspectivas fundadas em questões de gênero e pertencimento étnico[45].  No campo da Filosofia, a reorientação manifestar-se-ia pelo predomíno avassalador da filosofia analítica, em detrimento da ênfase clássica em temas de natureza ética e normativa, associados a investigações sobre a própria história do pensamento filosófico[46]. No domínio da ciência política, a virada tomou a forma do que foi designado como uma “revolução behaviorista”.

Um tanto triunfalista, a expressão “revolução behaviorista” designa uma reorientação ocorrida no campo do conhecimento político, a partir dos anos cinqüenta. A virada pretendia afirmar tal conhecimento como uma “ciência”, com protocolos distintos dos praticados pela filosofia política, percebida como contaminada por fortes componentes historicistas e normativos. A reorientação proposta pretendia executar uma virada empírica e positiva no campo do conhecimento da vida política, voltada para a explicação de como os fenômenos políticos ocorrem no assim chamado mundo real. Uma ciência da política, assim revolucionada, deveria sustentar-se em bases exclusivamente realistas e experimentais e dispensar referências de ordem normativa.

Os adeptos da revolução dirigiram pesadas críticas à tradição da filosofia política – ou da teoria política. Segundo eles, esse campo teria esgotado sua capacidade de inovação intelectual e, dessa forma, refluído para um mero esforço historiográfico a respeito de si mesma[47]. É como se, por falta de assunto, tivesse passado a passa a tratar de sua própria história como objeto privilegiado e perdido a capacidade de dizer coisas a respeito do mundo realmente existente. Poe essa via, a teoria política, para Easton, teria perdido sua vocação original de formular “idéias a respeito de questões públicas” e de estabelecer um “quadro moral de referência”[48]. Tal vocação teria desaparecido por força de um decline into historicism, por meio do qual a teoria política acaba por confundir-se com o campo da história das idéias políticas.

A defesa de uma ciência descontaminada das querelas ideológicas e apegada a procedimentos de descrição rigorosos mal podia camuflar seus pressupostos normativos. Os termos de Easton eram claros: trata-se de desenvolver uma ciência capaz de estebelecer um novo quadro de referência. Tal quadro, para os autores envolvidos no “movimento”, era constituído por valores e práticas afirmadas como democráticas e inscritas na tradição política e institucional norte-americana. Ciência e democracia, esta definida nos termos de um modelo civilizatório na altura ameaçado por alternativas então apresentadas como “totalitárias”, aparecem como termos de uma associação que se que necessária. Ciência, democracia e Guerra Fria: na verdade, trata-se de uma tríade sobre a qual o clima do Macartismo, na década de 50, teve papel constitutivo.  O próprio Easton dirá, em texto publicado em 1991, que o  Macartismo representou um estímulo para o desenvolvimento de uma ciência política mais objetiva e científica, na medida em que ao proporcionar uma “protective posture for scholars”, de não envolvimento político e ideológico, teria resultado em algum ganho para a disciplina, mesmo se “for the wrong reasons”[49].

Não se insinua, aqui, a presença de uma necessária adesão aos “valores” e à cultura paranóica do Macartismo, por parte dos cientistas políticos behavioristas. A correlação a ser feita é a que se estabelece entre a crença na necessidade de uma ciência descontaminada de seu passado ideológico e o desenvolvimento de uma cultura intelectual de insulamento, ainda que comprometida com o fato da democracia, como objeto e como âncora cívica. Charles Lindblom, em ensaio inspirado, chamou a atenção para o conflito constitutivo presente nessa versão cientificista do conhecimento político: ao mesmo tempo em que cultua valores epistemológicos assépticos, afirma seu compromisso com a democracia[50]. Não é de surpreender, portanto, que o tratamento da democracia venha a ser apresentado como subordinado a “teorias descritivas” e não a concepções “maximizadoras”, tal como posto em um dos textos mais importantes e inspirados da ciência política nos anos 50[51]. Ainda assim, o apego à democracia, como objeto e como ideal, ainda que deflacionado, opera como cláusula normativa evidente, já que qualquer seleção de objetos relevantes, no campo do conhecimento político, dependerá do desenho normativo de ordem com o qual se trabalha[52].

Para além de seus resíduos normativos, o behaviorismo não reinou de forma exclusiva e absoluta. Até certo ponto constitui uma caricatura supor que o “movimento” tenha sido capaz de organizar e subordinar todo o campo cognitivo devotado de modo sistemático a questões de natureza pública. O próprio Easton registrou em meados da década de 1980, os fatores que, a seu juízo, estiveram presentes em uma virada pós behaviorista, já nos anos sessenta: o movimento pelos direitos civis, pelos direitos da população negra e de outras “minorias”, protestos contra a guerra do Vietnã e, em termos mais amplos, o que designou como a “revolução da contracultura”[53]. Outro importante cientista político, também envolvido com movimento behaviorista – Charles Lindblom – destacou, além do desafio provocado pelos fatores mencionados por Easton, a presença na ciência política praticada nos anos quarenta e cinqüenta do que designou como um “Pollyannnaism”, caracterizado pela produção de “interpretações benignas” do sistema político norte-americano. Segundo Lindblom, tais interpretações prendiam-se a aspectos funcionais e internos dos “sistemas” – e o próprio termo sistema é o operador por excelência dessa perspectiva – ignorando questões tais como a exclusão racial e desigualdade social[54].

Uma “disciplina dividida” e “plural”

Os efeitos no Brasil da cultura científica estabelecida pela virada behaviorista, na ciência política, foram, por certo, muito fortes. Ao contrário de narrativas, típicas do universo mental anterior a 1964, nas quais a política era percebida como efeito de dinâmicas sociais e históricas mais amplas, a nova cultura científica tenderá a por em relevo a autonomia dos fenômenos políticos e institucionais. Vale dizer, a sua capacidade de constituírem-se em certo sentido como causas de si mesmas e a exigir aproximações analíticas de corte mais internalista. Algumas das teses de doutorado, produzidas por cientistas políticos e sociais brasileiros, já expostos ao clima intelectual acima mencionado, ilustram, por sua qualidade e importância, o ponto. Wanderley Guilherme dos Santos, por exemplo, em sua tese elaborada em Stanford – The calculus of conflict: impasse in Brazilian politics and crisis of 1964 (1979) – procurou demonstrar como o padrão de interações no Legislativo brasileiro – marcado pela presença de uma “paralisia decisória”, durante o governo de João Goulart, foi um fator decisivo na crise de 1964[55]. Olavo Brasil de Lima Jr, em tese elaborada em Michigan e defendida em 1980, construiu uma engenhosa interpretação do sistema partidário brasileiro, entre 1945 e 1964, com base em fatores estritamente internalistas: dimensões institucionais e legais, racionalidade política das alianças eleitorais, sistema de representação e o papel dos “subsistemas” partidários[56]. Tomo esses exemplos “iuperjianos”, dada a posição de liderança intelectual ocupada pela instituição naquela altura.

Mesmo que a virada behaviorista não tenha sido capaz de ocupar todo o espaço que pretendeu, algumas de suas marcas acabaram por se fixar como traços identitários que estiveram presentes na constituição da ciência política brasileira, no pós-1964. Entre os vários traços, há que destacar a presença de forte preocupação de ordem metodológica, com ênfase quantitativa, e um claro movimento de, para retomar o tema do embeddedness, autonomização da política, com relação a outros domínios cognitivos. O próprio vínculo com a economia é redefinido: não mais uma dimensão do contexto mais amplo que afeta a dinâmica da política e sem uma linguagem e uma suposição a respeito das motivações dos atores políticos. Como estudante de mestrado de Ciência Política, no Iuperj da década de 1970, pude testemunhar a centralidade conferida a autores e textos tais como Anthony Downs – An Economic Theory of Democracy -, William Riker – The Theory of Political Coalitions – e Mancur Olson Jr. – The Logic of Collective Action.

Profissionalização, rigor metodológico, autonomia dos fenômenos políticos: tais marcadores são familiares a quem observa a história da ciência política a partir dos anos cinqüenta. No entanto, seria caricatural e equivocado imaginar que a experiência norte-americana dos fundadores da disciplina entre nós tenha se limitado a replicar os termos da cultura behaviorista. Na verdade, o rebatimento da experiência americana trouxe bem mais do que isso. Isso se materializou no fato de que a difusão da literatura sistêmica e behaviorista, de modo não infreqüente, tenha sido acompanhada da introdução de alguns de seus antídotos. Isso talvez se deva ao fato de que a exposição aos temas do behaviorismo, por parte da geração que “fez a América”, tenha se dado nos quadros do que poderia ser designado como um “behaviorismo tardio”, em uma altura tardia, do ponto de vista da cultura científica norte americana, na qual pressupostos do movimento encontravam-se largamente atacados e visões alternativas emergiam em profusão[57].

O fato é que parte expressiva da geração de estudantes de pós-graduação em ciência política, no Brasil de fins da década de 1970, ao mesmo tempo em que era apresentada ao cânone, tinha acesso à crítica radical que o acusava como marcado por uma desatenção aos “mecanismos difusos e mais sutis que excluíam sistematicamente da agenda pública temas inconvenientes aos grupos dominantes” e aos processos de geração permanente de “não decisões”[58]. Incorporava-se certo ethos cientificista, mas ao mesmo tempo praticava-se a crítica de uma “política apolítica”[59], esvaziada de conteúdos normativos, ao defenderem a retomada – ou simplesmente a continuidade – de um programa de reflexão no qual os fundamentos normativos da ordem política sejam considerados[60]. Mais do que isso, temas fortes da tradição da filosofia política nunca desapareceram.

Se tomarmos o exemplo do Departamento de Ciência Política da UFMG, centro que possui forte tradição de pesquisa empírica, encontraremos na reflexão de um de seus fundadores – Fabio Wanderley Reis – presença clara de um diálogo com temas da filosofia política contemporânea. O Iuperj, nesse aspecto, caracterizou-se pela presença de cursos obrigatórios em teoria política – clássica, moderna e contemporânea -, ao par de cursos mais afinados com orientação,digamos, mais científica. Os cursos dirigidos por Wanderley Guilherme dos Santos, ao fim dos anos setenta no Iuperj, ao mesmo tempo em que introduzian textos tais como A Lógica da Ação Coletiva, de Mancur Olson Jr., contemplavam autores tais como Etiènne de La Boétie e sua reflexão, realizada no século XVI, sobre o tema da servidão voluntária. A ciência política desenvolvida na USP, na altura da década de setenta – e mesmo oitenta – manteve vínculos tradicionais com os campos da Filosofia, da História, da Sociologia e dos estudos sobre Pensamento Político Brasileiro. Um cultura científica com tinturas mais positivas afirmar-se-á a partir dos anos 90, com a incorporação de questões postas pelo neo-institucionalismo, em grande medida um desdobramento mais recente da virada implantanda pelos “pioneiros” do behaviorismo dos anos cinqüenta.

Um cultura científica curiosa parece ter emergido e se difundido – dada a centralidade dos três centros mencionados – para outras paragens. Ao mesmo tempo em que desenvolve e consolida um senso interno de identidade profissional e de trabalho acadêmico, com a afirmação da pesquisa no âmbito da universidade e em alguns centros isolados, a área diversifica-se do ponto de vista de suas linguagens e ênfases. Nesse sentido, a despeito de crenças idiossincráticas de exclusividade e de precedência, o campo que se constitui já a partir dos anos setenta é marcado por consistente pluralidade. Parte não desprezível dessa pluralidade, com freqüência, pode ser debitada a praticantes do campo a trabalhar em agendas intelectuais múltiplas e distintas.

Há que considerar, ainda, um aspecto que viria a ter forte impacto sobre op rebatimento no Brasil de uma cultura científica positiva e empiricamente orientada, no campo da ciência política. No modelo original norte-americano, a idéia de uma ciência política empírica para descrever a democracia pode ser marcada pela fusão entre dois horizontes, o factual e o normativo. Em outros termos, tratava-se de estudar – e promover – a democracia como objeto realmente existente, e não como fabulação. No rebatimento dessa tradição no Brasil, fomos beneficiados pelas vantagens da periferia. Em nosso caso, uma ciência política, configurada pelos valores de uma ciência positiva e empírica, tratou de investigar não a democracia, mas o “autoritarismo” e a vislumbrar as formas de sua superação. Nesse sentido, pode-se falar de um cientificismo a meias, posto que normativamente orientado pela desejabilidade da democracia.

Entre nós, uma teoria empírica da democracia exigia uma teoria empírica da ausência de democracia. É evidente que tal passagem exige operadores de ordem normativa, que valorizam de modo positivo a democracia, ainda que a descrevam mais como conjunto de procedimentos do que como materialização de valores e crenças. A importância adquirida pelo clássico livro de Robert Dahl, Polyarchy: participation and opposition (1971), dá bem a medida dessa tripla agenda: empírica, analítica e normativa[61]. Dahl pretendeu analisar as trajetórias percorridas por países que assim o fizeram, na direção da democracia – ou, nos seus termos, poliarquia. Para tal, observou trajetos históricos, fixou-os em alguns padrões analíticos e conceituais e indicou condições propícias e inibidoras para trajetos de liberalização política associados ao aumento da participação eleitoral. Em suma, um livro a respeito de como as democracias vieram a ser o que eram na altura e sobre o que pode ser feito para que não-democracias convertam-se em algo mais aberto. A própria concepção dahlsiana da democracia como associação entre institucionalização e participação crescentes, por não fixar um limite ou resultado pré-configurável, permite que se pense a democracia mais do que como um regime dotado de formas permanentes e mais como processo de experimentação contínuo.

Se o regime de 1964 introduziu na vida dos brasileiros o fato do autoritarismo, do ponto de vista dos observadores sistemáticos de fenômenos políticos, ele acabou por se constituir como uma oportunidade de consideração compulsória. Não se trata apenas de estudos monográficos a respeito daquela modalidade específica de autoritarismo, mas da incorporação mais ampla de um fenômeno pelo qual o Estado ganha primazia sobre a dinâmica social. Isso implicará tanto em pesquisa de caráter pontual e descritivo como em investigação comparada mais ambiciosa e em projetos de reelaboração teórica e conceitual. Nesse envolvimento, a perspectiva da recuperação – ou invenção – da democracia, para dizer o mínimo, nunca esteve ausente.

Na apresentação geral do livro que organizaram, Bender e Schorske, sugerem uma interessante distinção entre dois padrões disciplinares, que designaram respectivamente como “pluralized disciplines” e “tighly unified disciplines”. As primeiras seriam caracterizadas pela presença de uma cultura disciplinar fragmentada e eclética, enquanto que as seguintes seriam marcadas por um “strong ego” e por um alto grau de consenso interno. Distinguir-se-iam, ainda, com respeito ao público para o qual se dirigem: as disciplinas do primeiro grupo teriam por audiência prioritária o público em geral (“general public”), enquanto que para as do segundo suas audiências particulares aparecem como preferenciais.

A classificação sugerida por Bender e Schorske, pode ser resumida no seguinte quadro:

Tipo de disciplina Cultura disciplinar Audiência
“Pluralized” Fragmentada e eclética Público em geral
“Unified” “Strong ego”/Consenso Público especializado

Os dois padrões disciplinares, no pós-segunda guerra nos Estados Unidos, correspondem à seguinte distribuição: teria cabido à Filosofia e à Economia – a  primeira a partir dos anos 50 – a persona das disciplinas “unificadas”, com egos fortes e voltadas para iniciados. A ciência política e os estudos de inglês (English) teriam sido marcados, sobretudo os últimos, pela presença em suas respectivas culturas disciplinares de dinâmicas favoráveis à diversidade interna e à capacidade de absorção de novas agendas e isso a despeito de esforços internos contrários e já aqui mencionados. Por tais razões, tais campos disciplinares seriam, ainda, marcados por significativas tensões internas a respeito dos seus contornos e daquilo que seria apropriado considerar como seus objetos legítimos.

Podemos encontrar em um instigante texto de Almond uma percepção convergente. Com efeito, a sensação de fragmentação havia já sido registrada por Gabriel Almond, em artigo publicado na revista PS, uma das publicações da American Political Science Association, em 1988[62]. Para Almond a dispersão de “escolas e seitas” na ciência política norte-americana bem merece a aplicação da imagem das “mesas separadas”, advinda de uma peça do dramaturgo irlandês Terence Rattigan, intitulada Separate Tables, na qual a visão de pessoas a jantar sozinhas em um hotel de segunda sugeria a imagem de uma condição humana solitária. As “mesas” de Almond dizem respeito a um cenário que, a seu juízo, seria configurado por quatro orientações distintas e apartadas, no campo da ciência política. Para caracterizá-las, combina dois eixos distintos, um deles ideológico – esquerda x direita – e outro metodológico – “hard” x “soft”. Como pode ser depreendido com facilidade, há, portanto, quatro “mesas”, cada uma delas a abrigar sub-grupos : Esquerda hard e soft e Direita hard e soft. A conclusão de Almond nada tem de negativa, diante do que a seus olhos parece ser uma insanável dispersão: para ele os cientistas políticos norte-americanos possuem boas razões para sentirem-se orgulhosos com “o desenvolvimento da ciência política nas últimas décadas”[63].

Nota final

Ao tempo em que Bolivar Lamounier escreveu sua avaliação a respeito da ciência política brasileira, marcada por algum otimismo, o campo, por meio da métrica do sistema de pós-graduação, era composto por apenas cinco programas (dados da Capes, 1979). Os últimos dados, disponibilizados pelo sítio da Capes, com base em informações de 2009, indicam que há no país 27 programas na área de Ciência Política. Desse total há 12 programas de mestrado, 13 de mestrado e doutorado e 2 mestrados profissionalizantes. Cabe notar, nessa distribuição, o fato de que quase a metade desses programas opera na sub-área das Relações Internacionais (13 em seu total), a atestar uma dinâmica de expansão que poderá implicar a constituição de uma área específica. A própria área de Ciência Política, para fins de avaliação, aparece na classificação estabelecida pela CAPES, como área de “Ciência Política e Relações Internacionais”.

Se levarmos em conta que o campo das relações internacionais pode ser pensado como uma das especialidades possíveis da ciência política, trata-se de um processo de expansão disciplinar um tanto assimétrico. A considerar os programas de ciência polítiva tout court o salto não parece ser espetacular, entre os tempos analisados por Lamounier (5 programas) e o nosso (14 programas). Isso a despeito da presença de uma agenda intelectual que nas últimas décadas tornou-se mais larga e complexa. Nesse particular a expansão da pós-graduação nos demais âmbitos das ciências sociais – Sociologia e Antropologia – foi mais saliente. Não é o caso aqui de investigar as razões da assimetria, que nada tem a ver com supostas diversidades de relevância de assuntos e objetos. Mas, o conhecimento político parece padecer de uma armadilha nominalista. Por ter o nome de seu objeto, a Política – como disciplina e hábito de investigação – confunde-se com a política, enquanto domínio ontológico. A crença na existência em objetos natural e eminentemente políticos impõe aos praticantes do campo uma cultura um tanto mimética e desatenta ao que não aparece como tal. Antropólogos e sociólogos caracterizam-se mais por adotar uma perspectiva de análise das coisas do que da captura de fragmentos da ontologia do social, que  pertencer-lhes-ia segundo direitos consuetudinários disciplinares. Nesse sentido, puderam desenvolver culturas disciplinares mais ágeis e diversificadas, sem respeitar fronteiras rigidamente demarcadas de objetos permitidos e interditos.

Tal desvantagem do conhecimento político – a Política como nome de um campo que se ocupa de questões de natureza pública – pode ser compensada por fatores de outra ordem. Pode ser que sejamos cativos de determinadas questões e províncias da vida social. No entanto, as linguagens que empregamos para configurá-los como objetos de conhecimento possuem indisfarçável sabor normativo. O conhecimento político, afinal, é contemporâneo da “política” como atividade humana prática e reflexiva. Sua datação, nesse sentido, é quase imemorial. No tratamento de seus objetos, tal reflexão sempre foi obrigada a considerar questões de fato – organizadas em torno da questão “o que fazer?” – e questões normativas – “por que e para que fazer?”. Nesse sentido, sempre incorporou uma dimensão alucinatória em sua maneira de olhar o mundo. A própria idéia de decisão política implica a crença de que os seus efeitos acrescentarão ao mundo algo que naturalmente ele não contém.

Em registro mais anedótico, não conheço antropólogo envolvido na reforma de sistemas de parentesco ou mesmo sociólogo devotado a desenhar um sistema alternativo de estratificação social, como por exemplo adotar o modelo de castas. Os cientistas políticos, ao contrário, possuem modelos preferenciais de sistemas eleitorais, formas de governo e desenho das instituições. Talvez seja esse um traço constitutivo de uma tradição de reflexão sobre a vida pública, já anunciado por Aristóteles: a Política é um saber prático, e não uma ciência teórica, devotada à contemplação de um mundo imóvel e eterno. Está, nesse sentido, associada à ação e à presença dos humanos na vida social e a seus esforços de imaginação e e de entendimento.

A relativa fixidez de objetos é, portanto, compensada pela presença de esforços de prescrição. Todos prescrevem: prescrevem os que abertamente prescrevem e fazem-no os que se recusam a prescrever e aferram-se à forma presente das coisas.

Temos no Brasil uma larga tradição de pensamento e reflexão políticos, com estilos e ênfases distintas e com centros divergentes a partir dos quais desenhos múltiplos de campo podem ser configurados.  Um campo também é constituído por lacunas. Ele pode, mesmo, ser apresentado como um espaço lacunar, aqui e ali preenchido por manchas com maior nitidez, concentração de cores e maior sistematização.  Razões de primeira filosofia, aqui, podem ser convocadas para sustentar a hipótese lacunar: afinal, como asseverou Nelson Goodman, nossa capacidade de não perceber as coisas é infinita. Nesse sentido, o campo é uma experiência em aberto e dotada da capacidade de incluir mesmo aqueles que o desafiam.

O cientista político norte-americano, Rogers Smith, ao recordar seus primeiros passos como estudante de graduação, deu seu testemunho a respeito do efeito não encorajador sobre ele exercido pelas opiniões de Nelson Polsby e Fred Greenstein a respeito do campo da ciência política. Para ambos, líderes intelectuais da disciplina, tratar-se-ia de um domínio “mal definido, amorfo e heterogêneo”[64]. Em chave mais encorajadora para quem quer se aventurar nos meandros da reflexão política, e sem a pretensão de refutar Polsby e Greenstein, a formulação oferecida por Charles Lindblom parece ser mais amigával[65]. Para ele, “ciência política” é um nome aplicado não a um campo convencional de investigação científica, mas um debate contínuo, que a despeito de erráticas aversões e simpatias conecta uma comunidade dotada de grande diversidade.

Lisboa (Julho de 2010)/Rio de Janeiro (Agosto de 2010)


[1]. Como pretendo deixar claro no decorrer da análise, emprego aqui o termo construtivismo em um sentido diverso do consagrado por Friedrich von Hayek. Tal uso, com o qual estamos mais familiarizados, diz respeito a concepções de mundo sustentadas em reconstruções racionais da experiência humana. Nesse caso, construtivismo implica o deslocamento da idéia de experiência, de um plano histórico, variado e multidirecionado, para o da possibilidade de correção racional da própria história. Para o uso hayekiano do termo, ver os ensaios reunidos em Friedrich von Hayek, Studies in Philosophy, Politics and Economics, Chicago: The University of Chicago Press, 1967. O uso aqui adotado decorre do tratamento proposto pelo filósofo norte-americano Nelson Goodman, segundo o qual os humanos são praticantes de modos de fazer mundosways of world-making -, e assim procedem através dos mecanismos expressivos da linguagem. Trata-se, portanto, de um construtivismo ordinário que não implica a pretensão de reordenamento racional e completo do mundo, mas que se apresenta como condição necessária para a própria experiência com este mesmo mundo e com quem o habita. Para os temas cruciais do construtivismo e da expressão – a meu juízo fundamentais para a reflexão a respeito de qualquer esforço criativo e cognitivo –, ver Nelson Goodman, Ways of World Making, Indianapolis: Hackett Publishing Company, 1978; Ludwig Wittgenstein, Últimos Escritos sobre a Filosofia da Psicologia, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007 e António Marques, O Interior: Linguagem e Mente em Wittgensteisn, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003. Eu mesmo tratei dos temas da expressão e do construtivismo em dois ensaios recentes: “O que mantém um homem vivo II”, In: Adauto Novaes (org.), A Condição Humana, São Paulo: Agir/SESC, 2009 e “A Constituição de 1988 como exercício de filosofia pública”, In: Ruben Oliven, Marcelo Ridenti e Gildo Marçal Brandão (orgs.), A Constituição de 1988 na vida brasileira, São Paulo : Hucitec, 2008, pp. 363-395.

[2]. Cf. Arthur Danto, A Transfiguração do Lugar-Comum, São Paulo: Cosac & Naify, 2006.

[3]. A própria noção de paradigma, tal como a encontramos na obra de Thomas Khun, abriga a idéia de que objetos da experiência ordinária – derivados de modos tradicionais de observação e de interpretação da natureza – são como que reconfigurados quando inscritos em quadros conceituais que rompem com modelos anteriores e passam a ser submetidos a procedimentos de pesquisa adequados á inovação proposta. Para este ponto, ver o sempre oportuno e clássico Thomas Khun, A Estrutura das Revoluções Científicas, São Paulo: Perspectiva, 1974.

[4]. Cf. Willard van Orman Quine, Relatividade Ontológica e Outros Ensaios, In: Oswaldo Porchat Pereira (Sel.), Ryle, Austin, Quine, Strawson, Col. Os Pensadores, São Paulo: Editora Abril, 1975.

[5]. Cf. Nelson Goodman, op. cit. p. 3.

[6]. Cf. Roberto Schwarz, “As idéias fora de lugar”, In: Roberto Schwarz, Ao Vencedor as Batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro, São Paulo: Duas Cidades, 2000.

[7]. Cf. Bolivar Lamounier, “A Ciência Política no Brasil: Roteiro para um Balanço Crítico”, In: Bolivar Lamounier (Ed.), A Ciência Política nos Anos 80, Brasília: Editora da UnB, 1982. Trata-se de um livro incontornável para uma apreciação do estado da arte da ciência política na virada dos anos setenta-oitenta. Infelizmente nunca mais foi reeditado e, o que é tão lamentável quanto, atualizado.

[8]. Maria Cecilia Spina Forjaz adotará idêntica datação, em artigo publicado em 1997: “Irmã caçula das ciências sociais, a Ciência Política afirma sua identidade a partir de meados dos anos 60, quando já se constituíra no país um sistema de ensino superior ao qual esteve estreitamente vinculado o desenvolvimento intelectual e institucional dessas disciplinas, especialmente no eixo São Paulo-Rio de Janeiro”. Cf. Maria Cecilia Spina Forjaz, “A emergência da ciência política no Brasil: aspectos institucionais”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol 12. N. 35, Fev. 1997, p. 2 (versão eletrônica Scielo).

[9]. A propósito da intensidade do debate político e da presença de correntes liberais radicais e democratizantes, ver Renato Lopes Leite – “Republicanos e Libertários: Pensadores Radicais no Rio de Janeiro, 1822” (Civilização Brasileira, 2000) e, para um comentário, Renato Lessa, “A primeira esquerda brasileira”,  In: http: renatolessa-nonada.blogspot.com.

[10]. Três obras importantes, entre outras, podem dar ao leitor a medida da riqueza da reflexão política brasileira durante o Império: José Murilo de Carvalho, A Construção da Ordem, Rio de Janeiro: Campus, 198X e Teatro de Sombras, São Paulo: Vértice, 1987 e Paulo Mercadante, A Consciência Conservadora no Brasil, Rio de Janeiro: Saga, 1965.

[11]. É importante, aqui, mencionar o belo esforço intelectual, executado por Gildo Marçal Brandão, em seu incontornável livro Linhagens do Pensamento Político Brasileiro, São Paulo: HUCITEC, 2008, no sentido de fixar as linhas de longa duração e de continuidade no âmbito do pensamento político brasileiro.

[12]. Cf. Bolivar Lamounier, op. cit. p 408.

[13] . Idem, p. 408.

[14].  Idem, p. 408.

[15] . Idem, p. 408.

[16]. Cf. Manuel Villaverde Cabral, “História e Política ns Ciências Sociais Portuguesas, 1880-1980”, In: Bolivar Lamounier (Org.), A Ciência Política nos anos 80, op. cit. PP. 251-280. Ver também no mesmo volume o ensaio de Luís Salgado de Matos, “Generalidade e Drama: Pensamento Político Português, 1945-1980”, PP. 281-306.

[17]. Para a idéia de embeddness, ver Karl Polanyi, A Grande Transformação, Rio de Janeiro: Campus, 1978.

[18]. Cf. Manuel Villaverde Cabral, op. cit. p 265.

[19]. Refiro-me, pela ordem, a Oliveira Martins, Portugal Contemporâneo, Lisboa: Guimarães, 1953 (1ª Ed. 1881) e José Gil, Portugal Hoje: o medo de existir, Lisboa: Relógio d’Água, 2004 e Em Busca de Identidade: o Desnorte, Lisboa: Relógio d’Água, 2009.

[20]. Cf. P. M. Haas, “Knowledge, power, and international policy coordination: epistemic communities and international policy coordination”. International Organization, v. 46, n. 1, pp. 1-35, 1992.

[21]. É o caso do já mencionado livro de Gildo Marçal Brandão, Linhagens do Pensamento Político Brasileiro. Cabe a referência, ainda, a Wanderley Guilherme dos Santos, “A Imaginação Político-Social Brasileira”, Dados 2/3, 1967 e a Bolivar Lamounier, “Formação de um Pensamento Político Autoritário na Primeira República: uma interpretação”, In: Boris Fausto (Org.), O Brasil Republicano 2: Sociedade e Instituições, São Paulo: DIFEL, 1977.

[22]. Cf. Bolivar Lamounier, “A Ciência Política no Brasil…”, op. cit., p. 411.

[23]. O envolvimento de intelectuais da Primeira República com temas de natureza institucional, particularmente os ligados à questão da representação política, foi analisado no excelente livro de Cristina Buarque de Hollanda, Modos da Representação Política na Primeira República, Belo Horizonte: Editora da Universidade Federal de Minas Gerais, 2009.

[24]. Segundo Lamounier, tal diagnóstico convergente, fundado na percepção da “relativa inexistência de um Estado Nacional”, pode ser encontrado nos seguintes autores: Alberto Tores, Oliveira Vianna, Azevedo Amaral, Francisco Campos e Nestor Duarte. Cf. Bolivar Lamounier, op. cit., p. 413.

[25]. Cf. Vitor Nunes Leal, Coronelismo, Enxada e Voto, Rio de Janeiro: Forense, 1948.

[26]. Cf. Bolivar Lamounier, p. 413.

[27]. Cf. Alvaro Vieira Pinto, Ideologia e Desenvolvimento Nacional, Rio de Janeiro: ISEB, 1956.

[28]. Raymundo Faoro, Os Donos do Poder, Porto Alegre: Editora Globo, 1958. Este livro de Faoro viria a ter impacto tardio na reflexão brasileira, sobretudo a partir de sua reedição ampliada, no início dos anos 70. Para uma recepção importante e pioneira das teses de Faoro, ver Simon Schwartzman, São Paulo e o Estado Nacional, São Paulo: Difel, 1975.

[29]. Para uma compreensão mais apurada desse processo, ver Sergio Miceli (Org.), História das ciências sociais no Brasil, São Paulo: Idesp/Vértice, 1989.

[30]. Cf. Spina Forjaz, op. cit., p. 3.

[31]. Cf. Simon Schwartzman, “Comentário: quem tem medo do Estado?” In: Bolivar Lamounier (Org.), op. cit., p. 153. O texto de Schwartzman refuta a defesa, feita no mesmo livro por David Easton, da superioridade analítica do termo “sistema político”, por ser dotado de maior referencialidade empírica e, por essa via, por ser menos contaminado em termos ideológicos. O argumento de Easton, no mesmo livro citado, pode ser encontrado em seu texto “O sistema político sitiado pelo Estado” (PP. 129-149).

[32]. Cf. Maria Cecilia Spina Forjaz, op. cit. p. 4.

[33]. Cf. Sergio Miceli, A desilusão americana: relações acadêmicas entre Brasil e Estados Unidos, São Paulo: IDESP/Sumaré, 1990, p. 72.

[34]. O Cebrap, além do apoio para atividades na área de ciência política, obteve dotações da Ford para pesquisa nas áreas de Demografia, Economia e Sociologia. O Iuperj abrigava também pesquisa e ensino na área de Sociologia. Na área de Antropologia, o destaque, também a partir dos anos 60, coube ao Museu Nacional.

[35]. Ver Daedalus: Journal of the American Academy of Arts and Sciences, vol. 126, n. 1, Winter, 1997.

[36]. Cf. Thomas Bender e Carl Schorske (Eds.), American Academic Culture in Transformation: Fifty Years, Four Disciplines, Princeton: Princeton University Press, 1998.

[37]. Cf. Thomas Bender e Carl Schorske, “Introduction”, In: Bender e Schorske (Eds.), op. cit. p. 6.

[38]. Cf. Thomas Bender, “Politics, Intellect, and the American University, 1945-1995”, In: Bender e Schorske (Eds.), op. cit. p. 20. De acordo com o Red Book, toda prioridade deveria ser conferida a investigar e ensinar “o lugar das aspirações e ideais humanos no esquema geral de todas as coisas”. Todo o debate a respeito da direção a ser seguida pela “higher education” norte-americana, com ênfase nas humanidades, pode ser encontrado no excelente livro de Richard Hofstadter e Wilson Smith, American Higher Education: a documentary history, 2 vols., Chicago: University of Chicago Press, 1961.

[39]. É esse o sentido do comentário geral de Freeland a respeito da mutação ocorrida a partir dos anos 40, que aqui reproduzo: “the central constituencies of the academic culture were the scholarly disciplines and the learned societies they sponsored, for it was these groups that could confer a reputation for excellency”. Cf. Richard Freeland, Academia’s Golden Age: Universities in Massachusets, 1945-1970, New York: Oxford University Press, 1992, p. 168.

[40] . Cf. David Riesman e Christopher Jenkins, The Academic Revolution, New York: Doubleday, 1968.

[41]. Cf. Thomas Bender, “Politics, Intellect, and the American University, 1945-1995”, op. cit., p. 20.

[42]. Apud Thomas Bender, “Politics, Intellect, and the American University, 1945-1995”, In: Bender e Schorske (Eds.), op. cit. p. 22. Interessante notar, em chave contrastiva o que pensava Mario de Andrade: a sociologia é “arte de salvar rapidamente o Brasil”. Cf. Mario de Andrade, O Empalhador de Passarinho, São Paulo: Martins, 1972 (3ª Ed.), p. 41.

[43]. No debate contemporâneo no campo da Sociologia, essa última versão vem sendo defendida pelo sociólogo Michael Burawoy, em torno da ideia de uma “sociologia pública”. Ver Michael Burawoy, “For Public Sociology”. American Sociological Review. Vol. 70, No. 1, pp. 4-25, Feb 2005.  Ver, ainda, para uma reação no campo da Sociologia brasileira, Simon Schwartzman, “A sociologia como função pública no Brasil”.  Caderno CRH, Vol. 25, No. 56, pp. 271-279, Agosto de 2009, disponível também em http://burawoy.berkeley.edu/PS/Brazil.Caderno/Schwartzman.pdf.

[44]. Três excelentes ensaios são devotados a respeito das mutações na disciplina “Economia”, no livro de Bender e Schorske: Robert Solow, “How did economics get that way and what way did it get”; David Kreps, “Economics – the current position” e William Barber, “Reconfiguration in American academic economics: a general practicioner’s perspective”.

[45]. Ver, no livro organizado por Bender e Schorske, os ótimos ensaios de: Muray Abrams, “The transformation of English Studies” e Catherine Gallagher, “The history of literary criticism”.

[46] . Para o que ocorreu no campo da Filosofia, ver Hilary Putnam, “A half century of philosophy, viewed from within” e Alexander Nehamas, “Trends in recent American Philosophy”, no mesmo livro mencionado.

[47]. Ver David Easton, The Political System: An Inquiry in the State of Political Science, Chicago. The University of Chicago Press, 1953 e A Framework for Political Analysis, Englewood Cliffs: Prentice Hall, 1966. Os argumentos de Easton foram reunidos, ainda, em seu artigo clássico “The New Revolution in Political Science”, American Political Science Review, vol. LXIII, Dec. 1969, pp. 1051-1061.

[48]. Cf. David Easton, The Political System…, p. 234.

[49]. Cf. David Easton, “Political Science in the United States: Past and Present”, In: David Easton e Corrine Schelling (Eds.), Divided Knowledge: Across Disciplines. Across Cultures, Newbury Park: Sage, 1991, p. 44.

[50]. Cf. Charles Lindblom, “Political Science in the 1940s and 1960s”, In: Thomas Bender e Carl Schorske (eds.), op. cit., pp. 243-270.

[51]. Refiro-me ao incontornável livro de Robert Dahl, Preface to Democratic Theory, Chicago:  The University of Chicago Press, 1956.

[52]. Para uma consideração dos pressupostos normativos da ciência eastoniana ver Tracy Strong, “David Easton: Reflections on an American Scholar”, Political Theory, Vol. 26, # 3 (Jun., 1998), pp. 267-280. Os limites e as implicações da perspectiva behaviorista foram tratados no artigo seminal de Sheldon Wolin, “Political Theory as a Vocation”, American Political Science Review, vol. LXIII, Dec. 1969, pp 10xx-10xx. Igualmente importante é o ensaio de Gabriel Almond, “Clouds, Clocks, and the Study of Politics”, In: Gabriel Almond, A Discipline Divided: schools and sects in Political Science, Newbury Park: Sage, 1990, pp. 32-65.

[53] . Cf. David Easton, “Political Science in the United States. Past and present”. International Political Science Review, vol. 6, n. 1, 1985, pp. 133-152 (p. 141).

[54] . A referência foi feita por Thomas Bender, em seu ensaio “The new rigorism in the human sciences”, In: Thomas Bender e Carl Schorske (Eds), op. cit. p. 318.

[55]. Ver Wanderley Guilherme dos Santos,

[56]. Ver Olavo Brasil de Lima Jr., Partidos Políticos Brasileiros, de 45 a 64, Rio de Janeiro: Graal, 1983.

[57].  Em uma listagem não exaustiva não poderiam faltar temas e perspectivas tais como o feminismo, a renovação da teoria crítica, o neo-marxismo, a presença da tradição francesa contemporânea (Foucault, por exemplo), o tema do racismo, a questão ambiental, entre outros.

[58]. Ver o artigo clássico de Peter Bachrach e Morton Baratz, “Two faces of power”. The American Political Science Review, vol. 56, n. 4 (Dec. 1962), pp. 947-952. Na mesma chave inscreve-se o livro de Peter Bachrach, The theory of democratic elitism, Boston: Little Brown & Co., 1966.

[59]. A expressão aparece em Charles McCoy e John Playford, Apolitical politics: a critique of behavioralism, New York: Thomas Y. Crowell Co., 1967.

[60]. Ver a esse respeito, Sheldon Wolin, Politics and Vision:  continuity and innovation in Western political thought, Boston: LittleBrown & Co., 1960.

[61]. Cf. Robert Dahl, Polyarchy: participation and opposition, New Haven: Yale University Press, 1971.

[62]. Cf. Gabriel Almond, “Separate Tables: Schools and Sects in Political Science”. PS, Vol. 21, No. 4, 1988. O texto foi republicado em Gabriel Almond, A Discipline Divided: schools and sects in political science, London: Sage Publications, 1990.

[63]. Cf. Gabriel Almond, “Separate tables…”, op. cit., p.29.

[64]. Cf. Rogers Smith, “Still Blowing in the Wind: the American Quest for a Democratic, Scientific Political Science”, In: Thomas Bender e Carl Schorske (eds), op. cit., p. 271.

[65]. Cf. Charles Lindblom, op. cit., p. 260.