Paula Campos Pimenta Velloso é doutoranda em ciência política pelo IESP-UERJ.
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Resenha do livro:
HEINICH, Nathalie. Estados da mulher: a identidade feminina na ficção ocidental. Lisboa: Estampa, 1998. 403 p. ISBN 9723313774
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Um interessante resultado da reflexão elaborada por Natalie Heinich, em Estados da Mulher, é a percepção daquilo que é possível caracterizar pelo binômio escolha vs. determinação nas trajetórias de vida abertas à mulher representada na literatura romanesca produzida em fins do século XVIII, até o início do século XX[1]. A mulher da representação romanesca se vê inserida, desde o abrupto termo da infância, no que autora identifica como uma crise, mas que bem pode ser percebido como um impasse: um teste em que a escolha versa por possibilidades igualmente indesejáveis. O impasse é a falta da alternativa propriamente dita, caso se compreenda por alternativa algo distinto da oferta de coisas desproporcionalmente ruins. Este impasse será abordado pela autora como o labor do enquadramento entre os momentos de si, em que a moça, ou mulher, deve orquestrar a percepção que tem de si mesma, a representação que faz dos outros e a designação de uma imagem própria refletida a partir dos outros. Desse enquadramento, isto é, de lograr uma coerência mínima entre estes fatores sobre os quais não exerce – mas somente é forçada a tentar exercer – controle, depende a construção de um sentimento de ser mulher capaz de atribuir-lhe uma identidade. Uma tarefa árdua, pois, e da qual a mulher não pode simplesmente abrir mão.
A evidência de que a eleição de uma entre várias possibilidades ruins não caracteriza alternativa dá sinais iniciais no fato de que o primeiro contato de qualquer moça com a referida crise, ou impasse, ocorre em ocasião absolutamente privada de escolha: na violência invasiva do olhar do homem sobre o corpo recém mudado da adolescente, imprimindo nela uma mudança ainda não sentida internamente. E, por dar-se sob a forma lasciva – e desrespeitosa, na medida em que a virtude socialmente reconhecida está na inocência – o olhar de desejo implica o contato com três inaugurações violentas: a moça se depara com o fato de que já não é o que era; o fato de que esta ruptura se deu apesar de sua vontade indica que o que virá a ser dependerá de fatores que lhe são absolutamente exteriores; e que, a despeito do desconhecido implicado em sua identidade ainda a construir, a humilhação inerente à condição feminina já dá sinais de será uma das poucas constantes a que terá acesso.
A oposição entre a autonomia das escolhas e a determinação do que é estabelecido socialmente na trajetória de vida de uma mulher não é o objeto do trabalho de Natalie Heinich. Pelo menos não é o centro de sua reflexão. Nela, é central a caracterização da dramaticidade e das particularidades dos processos de perda e construção da identidade feminina. Mas toda ela, porque mobiliza os momentos de inflexão nas vidas das personagens dos romances de formação, se vale de exemplos em que escolhas nada triviais são tomadas a partir de um universo restritíssimo de possibilidades. Isto é, sua clarividente construção de um sistema de estados sociais pelos quais pode passar a moça, a partir da perda da identidade infantil, no processo de construção de uma identidade de mulher, guarda entre seus efeitos mais brilhantes um falar em voz alta sobre a dificuldade contida nas escolhas femininas.
A autora escolhe mesmo abrir o livro com um exemplo. Com o que não só parte à ilustração exemplificada daquilo de que vai tratar como já começa pela explicitação e defesa de suas opções metodológicas. A partir dos exemplos, as razões da eleição do universo literário como terreno para a elaboração de um sistema tornar-se-ão claras. Para construí-lo, a autora se vale dos exemplos contidos nos best sellers do gênero romances de formação, novelas cujo sucesso indica que contêm um imaginário que continua vivo. Elas portam narrativas que descrevem sistematicamente o espaço de possibilidades que autorizam as diferentes maneiras de ser mulher. A moça casadoira, a esposa, a segunda esposa, a amante, a solteirona ou a viúva, são estados que a moça ou visa, ou assume, ou recusa, ou evita. Isto porque os romances de formação têm a função de tornar explícitos os estados da mulher e de transmitir como moral o caminho adequado de acordo com as circunstâncias em que se inserem as moças, indicando como virtuosas as atitudes que se orientam pelo refreamento dos impulsos, pela resignação realista, pela estratégia e pela prudência.
Assim, o terreno sobre o qual Heinich desenvolve a investigação é o espaço de possibilidades oferecido ao que se refere como a carreira feminina. A partir dele, desenvolve o objetivo de atribuir inteligibilidade e compreensão aos estados da mulher, com os quais, supõe, não sem razão, seus leitores estão familiarizados. Mas apenas familiarizados. Somente o distanciamento epistemológico possibilitará explicitar os componentes do sistema cultural representado nos romances e a sua lógica interna. É pela ciência, portanto, que os estados da mulher serão sabidos e compreendidos. De sua análise, Heinich procurou extrair o porquê – através da compreensão de como se estrutura o espaço de possibilidades da mulher, como se articulam suas diferentes configurações e que deslocamentos se podem produzir de uma posição à outra – e o como – pela observação do trabalho operado pela ficção em relação à realidade. Para a autora, é a apreensão da lógica de conjunto do sistema a única via de substituição do conhecimento íntimo, ou a familiaridade, pelo inteligir das razões.
Para a descrição do sistema de representações dos estados contidos no espaço de possibilidades, expressão que ecoa o “campo das possibilidades estratégicas” de Fucault, recorre à aplicação aos romances da cultura ocidental e às representações da identidade feminina do método utilizado pelos antropólogos na análise dos mitos das sociedades primárias. Como todo sistema estrutural fechado e saturado, cujos estados são mutuamente excludentes, seu modelo possui uma matriz geradora que determina, a um só tempo, cada uma das figuras e a configuração do conjunto. Tal matriz se articula entre os dois critérios primordiais do estatuto da mulher, a saber, o modo de subsistência e a disponibilidade sexual – desvelando as presenças de Marx e Freud como matrizes teóricas – que será completado pelo grau de legitimidade da ligação sexuada vivenciada pela mulher. Assim, a autora pretendeu determinar os estados da mulher em suas duas dimensões: no plano psíquico e histórico da experiência real e no plano antropológico e psicanalítico da sua lógica simbólica[2].
Como se viu, para a sistematização dos estados da mulher a autora se valeu dos exemplos contidos na literatura romanesca. Neles estão as pistas para a identificação do estatuto da mulher como invariavelmente deslocado, na busca constante por um lugar, o qual, uma vez encontrado, será mantido sempre com precariedade, mediante séries de desafios. O único lugar permanente é o do flutuar identitário, em que inferioridade e suspeita são fantasmas constantes e que, embora solitário, depende de uma interação infernal com os mensageiros do enquadramento, a partir dos quais a mulher deve adequar, tanto quanto possível, aqueles fatores de auto-percepção, representação e designação.
O flutuar identitário, por sua vez, advém de um momento específico, no qual se inaugura também o fato de que, a partir de então, a moça, e depois a mulher, será tragada para um universo em que a obrigação de escolher se soma ao julgamento das escolhas e à exigüidade das alternativas. Assim, a miséria original bem pode ser localizada na perspectiva do binômio escolha vs. determinação que se propôs anteriormente. Pois é no momento da miséria original que se caracteriza a falta de autonomia somada à obrigação das escolhas fracas, pertinentes à trajetória de construção da identidade feminina. Tal momento é o da primeira invasão pelo olhar masculino, que contém, como nos mitos de origem, a elementaridade de todos os desafios a que a moça estará exposta a partir de então: o desrespeito – da forma invasiva e lasciva de olhar um corpo e não o seu conteúdo, a criança; e o risco – que traz a primeira escolha pobre da moça, ou fraca, no vocabulário da autora, que se depara com a necessidade de reagir a algo de cuja ocorrência e gravidade só ela tem notícia. O primeiro olhar é a miséria original, porque para ele não há alternativa. Nem mesmo uma alternativa ruim. Este olhar simplesmente virá.
Assim, o binômio escolha vs. determinação pode ajudar a percorrer o universo fartíssimo de argumentos e exemplos que Heinich aborda na identificação de muitos dos impasses e incertezas porque passavam e passam as moças ao longo da vida. Seu objetivo declarado foi o de pronunciar – atribuindo inteligibilidade e compreensão ao que, por vezes, só é sentido. Dar voz (ou nome) ao que (ou a quem) é impreciso. A violência de um olhar dificilmente pode ser reportada. Principalmente porque só sabe do seu impacto quem o sentiu. Mas há outros silêncios. Menores, provavelmente, mas igualmente infernais. E todos eles são efeitos das determinações exteriores a que está submetida a mulher. Ainda moça, ela pode ser acusada de superficialidade quando se envolve intensamente com sua aparência. Pode sofrer com a perseguição masculina se for bela. E pode parecer ardilosa quando se embeleza, como sereia que conduz homens hipossuficientes aos recifes. Mas, quando não é atenta à própria imagem, pode ser tida como desleixada, pode não interessar a ninguém, pode ser deixada, pode acabar solteirona.
É uma linha fina a que divide os estados da mulher. Uma linha que não é ela quem delimita e, não obstante, a que só ela está submetida. É claro que os estados não devem ser tomados como consubstanciais à experiência vivida. São construções da ficção. Uma leitura realista, ontológica, que procura nos estados a essência da feminilidade perderá de vista o fato de que se tratam antes de formas romanescas de construção da identidade feminina. No mesmo sentido, não coube à obra realizar um juízo da experiência ficcional contida nos romances. Ao contrário, seu objetivo, sempre reiterado, foi o de fornecer instrumentos de compreensão da experiência, elevando toda a reflexão através de uma neutralidade axiológica. É verdade que quis lançar luzes sobre uma dimensão do real, embora através de uma análise da ficção. E, apesar da pretensão de neutralidade, visou também a dar voz a um problema silenciado pela apreensão familiar, superficial e, muito freqüentemente, androcêntrica. Contentar-se-á o leitor, entretanto, com a porta deixada aberta pela autora, que autoriza uma apropriação da obra como esforço para melhorar a sorte dos oprimidos e, embora não a recomende abertamente, declara feliz a sua eventualidade. Por este motivo, a par da qualidade intelectual e da brilhante capacidade de sistematização, o efeito de dar voz ao silêncio, determina a pertinência e a exemplaridade da obra.
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[1] A partir de então, o campo dos romances de formação sofre eloqüente alteração, quando o sistema cultural sofre as transformações pertinentes à permeabilidade própria do simbólico face ao real. A historicidade imprime sobre a reflexão as marcas sentidas na ficção pelo advento da Primeira Guerra Mundial, em que é abalada a continuidade histórica que experimentara o estatuto econômico e o controle moral da vida sexual das mulheres até então. Emerge desse estado de crise a mulher não ligada.
[2] É ainda digno de nota, que a abordagem psicanalítica levou a autora a identificar um estado da mulher presente de forma mais eloqüente no imaginário romanesco do que nas representações comuns da experiência. Através da mobilização do mito de Édipo para a interpretação do que denominou de complexo de segunda, a autora ilustrou a experiência vivenciada pela segunda esposa.