Fala Inicial de Gabriel Tupinambá
Gostaria primeiramente de agradecer pela oportunidade de escrever algumas linhas tendo como ponto de partida o último curta-metragem que dirigi, chamado Depois.
Trata-se, de fato, de um ponto de partida: as questões a que fui convidado a responder, mesmo estando firmemente ancoradas no filme, em muito ultrapassam-no. Inversamente, também encontro dentre elas algumas das interrogações de que me ocupava quando decidi escrever o roteiro – ou seja: há algo nessas perguntas que também as caracteriza como o ponta pé inicial de um projeto.
Bem, se essas questões estavam dentre as razões para a realização do curta-metragem, e se o Depois serve agora de ponto de partida para investigarmos alguns desses mesmos temas iniciais, então me parece que temos aqui a circunstância perfeita para que possamos averiguar se há de fato algum pensamento inerente ao filme – isso é, se o filme apresenta, ele mesmo, um trabalho.
Afinal, se não houver nada de novo a ser apreendido na trama do filme – nada que possamos formular com maior precisão agora do que antes – então as questões de que parti e as questões que agora retomamos são exatamente as mesmas e esse curta-metragem, como tantos outros, deveria ser entendido como um exercício estético cuja única justificativa é esconder sua entropia intelectual sob as profundezas do gosto individual. Por outro lado, se o filme nos permitir ao menos abordar diferentemente alguma dessas questões – isso é, se houver um pensamento no filme que se imponha a quem o interpreta, oferecendo-nos algo para além da sedução hermenêutica – então o filme realmente pode ser considerado um objeto de investigação e encontraria aí sua utilidade.
Há um ponto preciso em que o famoso verso de Alberto Caeiro – “ser uma coisa é não ser susceptível de interpretação” – e a arte didática do Brecht se encontram. Nesse lugar, em que o filme realmente esbarra em alguma coisa, não somos nós que interpretamos o filme, é o próprio filme que elabora. Agradeço novamente pelo convite de colocarmos a prova o modo como o Depois responde a essa tarefa essencial.
Aproveito também para fazer um breve comentário metodológico: partirei do princípio, que me parece razoável tratando-se do universo dos curta-metragens, de que a maioria dos leitores não viu o filme. Por isso, tentarei na medida do possível incluir em minhas respostas algumas descrições das cenas que evoco – e também convido a todos que assistam o filme no site http://vimeo.com/30552542 ou através do site da minha produtora www.nonada.tv. Ademais, já que os personagens do filme não tem nome próprio, me referirei a eles, como fiz no roteiro, pelas letras X, Y e Z.
Cesar Kiraly: A idéia de ter um projetista na posição de protagonista tem algum significado especial? Pois existe uma longa memória de exploração da figura do projetista em narrativas que mostram a passagem de um mundo para a outro. O projetista como uma figura presente, atenta, até mesmo desempenhadora de uma atividade arriscada, com a possibilidade das chamas dos rolos de filmes, e que preserva, um pouco em função da lida com o mecanismo, uma lida poética com o cinema. De alguma forma, não só o projetista era dependente do cinema, mas também o cinema da poética do projetista. E no seu filme? Ele não é propriamente cândido, é mais despertencido.
Gabriel Tupinambá: Em uma cena do filme, o personagem principal (“Z”) resolve contar para o homem (“X”) que o abrigou depois do fim do mundo sobre o trabalho de que se ocupava antes da catástrofe. Z diz que sobreviveu porque estava trabalhando na sala de projeção de um cinema, e as ferragens dos equipamentos o salvaram. Com muita imponência, ele usa o termo “projetista” para descrever seu cargo – mas, a rigor, projetista é quem faz um projeto, cria o design de alguma coisa, não quem opera o projetor e cuida para que a projeção de um filme corra bem. Nós usamos o termo correntemente, mas é por falta de intimidade com a terminologia correta, que é projecionista. Mas toda vez que Z comenta sobre seu trabalho – seja quando diz ser (ele diz no presente, isso é importante) “projetista”, como quando, flertando sem sucesso com a mulher (“Y”) que um dia encontra na praia, diz que “trabalha com cinema” – há sempre uma pequena distorção do que ele realmente fazia em sua fala.
A história do cinema é muito marcada pela auto-referência e por tomar a si mesma como um objeto enigmático. Sabemos que a relação entre a predominância da auto-referência na arte e as consequências da revolução industrial é um tema exaustivamente estudado, ainda que tudo isso tenha servido mais para consolidar essa conjunção do que para verdadeiramente entendê-la. Em todo caso, é insistente no cinema, uma arte moderna por excelência, essa tendência debruçar-se sobre si mesmo, não em termos de questionar sua substância, movimento essencialmente romântico, mas de redobrar sua forma, fazendo do estúdio de cinema uma cena e do ator um personagem do filme. No cinema dito independente, outras figuras do mundo cinematográfico também aparecem na frente das telas, dentre elas a do “projetista” – o exemplo mais conhecido, imagino, é o filme Cinema Paradiso, de Giuseppe Tornatore.
Cada uma dessas figuras poderia ser definida pelas relações que estabelece dentro da cena com o cinema enquanto “objeto enigmático”: por exemplo, o clássico caso da atriz estonteante que sofre em silêncio, pois as lentes da câmera e o olhar do público só enxergam a personagem que ela interpreta, e não quem ela acha que realmente é. Ou ainda, o diretor de cinema que se mete em uma confusão mais fantasiosa que seus filmes, na qual é um joguete nas mãos de um misterioso “arque-diretor”. Algumas das obras-primas do cinema investigam em profundidade esse universo, como é o caso do clássico de Dziga Vertov, O Homem com uma Camera, ou de diversos dos filmes de David Lynch. Mas a lista de modalidades dessa operação reflexiva no cinema é tão longa quanto a permutação de gêneros cinematográficos e o plano de cargos e salários de um estúdio de Hollywood.
No caso da figura do operador da projeção na sala de cinema, o traço que me parece mais visível, tanto no filme do Tornatore quanto em outros, é a relação que se estabelece entre o que é projetado na tela de cinema diegética e o olhar do projecionista. Tanto nos filmes em que o personagem é um amante do cinema (Tornatore) quanto nos casos em que tem o gosto perverso pela manipulação das imagens (vemos isso, por exemplo, em Clube da Luta, de David Fincher), a posição diferenciada do projecionista envolve o suposto conhecimento de algo como a origem da projeção, suposição que se apresenta tanto na figura do amante do cinema, que conhece muitos filmes, que sabe tratar o negativo, etc, quanto daquele que não liga para os filmes, pois conhece de onde eles vêm, e que pode a qualquer momento interromper ou distorcer a projeção de alguma maneira. O projecionista costuma ser aquele que tem uma suposta relação com o surgimento da “mágica” cinematográfica de dentro da máquina de projeção. Acredito que essas duas posições respondem diretamente ao que foi articulado na questão acima como “o cinema da poética do projetista”.
No entanto, Z apresenta uma relação um tanto diferente com o mundo do cinema. As informações que temos sobre seu trabalho são poucas, mas essenciais. Primeiramente, ele foi salvo pelo maquinário da sala de projeção, e não pela mágica dos filmes. Além disso, o jeito que ele fala de seu trabalho para os outros, dando a entender que ocupava um cargo mais importante do que era o caso, mesmo quando tenta apenas relatar os fatos (ele poderia ter simplesmente mentido para X, mas preferiu intitular-se “projetista”), deixa claro que não é ele quem tem ilusões sobre o quão besta e repetitivo era o seu trabalho.
Nesse sentido, talvez pudéssemos até entender o lado cômico da expressão “projetista” justamente como uma resposta que erra o que foi perguntado – qual o seu trabalho? – mas que acerta a fantasia que sustenta a pergunta – isso é, que reconhece que, para o espectador que se pergunta sobre a origem do espetáculo, o pobre do projecionista é um dos principais candidatos ao posto de “sábio misterioso”, aquele para quem a palavra “projetar” resolveria a contradição de seus sentidos – desenhar e reproduzir, simultaneamente.
Isso nos traz ao outro ponto da questão, a atitude de Z, que não é “propriamente cândido, é mais despertencido”.
É interessante definir um personagem que investe tanto em “inflar” a pequenez de seus feitos e de sua antiga profissão como um despertencido. Trata-se de um termo de uso restrito, que circula mais pelas experimentações poéticas do que pela boca do povo ou as páginas do dicionário, mas que toca num ponto bastante preciso, me parece, do jeito de Z: ele não tem exatamente apego ao que ele era, por assim dizer, às classes de propriedades às quais pertencia (“homem”, “funcionário de um cinema”, “pobre”, etc), mas sim àquilo que ele poderia usar desses traços para construir uma outra identidade. Ou seja, não é a pertença per se, mas a possibilidade de fazer outra coisa com essas representações (uma des-pertença) que define o seu jeito. A importância desse “mais-além” da identidade para a maneira como Z se apresenta nos permite especular porque seria que ele, ao mesmo tempo, se gaba e não se preocupa em ser agradável com quem cruza seu caminho: talvez o verdadeiro interlocutor desse “despertencimento” não seja tanto assim a pessoa com quem ele conversa.
É importante relacionar esse traço aos personagens das peças O Auto-falante e Os Ignorantes – dois dos melhores textos do teatro brasileiro contemporâneo, escritos por Pedro Cardoso – nos quais me baseei para construir o estilo de Z. Há algo na comédia do Pedro Cardoso que é extremamente brasileiro e que, acredito, caso tudo o mais viesse ao chão, provavelmente permaneceria de pé na constituição da nossa identidade. Se essa relação entre os personagens que Pedro Cardoso interpreta e o Z está visível no filme, seria o caso, em seguida, de tentarmos entender a relação entre o brasileiro e o “despertencimento” – especialmente considerando esse terceiro a quem a fala de Z se dirige diagonalmente.
Cesar Kiraly: Existe uma profunda inconveniência no lugar em que filma Depois, que chega a fazê-lo belo em desolação. Trata-se de um aterro? Ele parece ser repleto de situações imprevistas. Isso é verdade? A desolação dos objetos esquecidos “armou” contra ti e os atores?
Gabriel Tupinambá: Utilizamos duas locações principais no filme: o aterro de Jardim Gramacho, onde filmamos a parte da estória que gira em torno da relação de Z e X, e a s praias de Atafona, no norte do estado do Rio de Janeiro, perto de São João da Barra, onde se passa a estória de Z e Y.
O aterro de Gramacho é, na verdade, uma das razões pelas quais decidi fazer o filme. O desejo de escrever esse roteiro surgiu em parte após ter visto o documentário Estamira, de Marcos Prado, que também foi filmado nessa mesma locação, e que conta a vida de uma catadora de lixo.
Alain Badiou cunhou o termo “paixão do real” em seu livro O Século para descrever um dos principais imperativos do século XX, que se apresenta na arte, assim como em outros campos, como a filosofia e a política, como a insistência em desmascarar o real para além de toda representação, purificando as formas escondidas pela figuração na pintura, revelando os enquadres que destacam a obra de arte da vida, principalmente no teatro etc. A paixão do real seria, portanto, o pivô que opera a passagem da arte clássica, calcada nos mecanismos da sublimação, para a arte cujo principal imperativo é revelar a impostura da sublimação, a potência alienante das representações. Adicionalmente, encontramos no trabalho de Slavoj Zizek a idéia de que esse imperativo dessublimatório diagnosticado por Badiou não deve ser nem respondido em seus próprios termos, nem deve guiar-nos de volta para a crítica da arte no sentido estritamente clássico: mesmo que saibamos separar a sublimação do sublime, ainda assim precisamos de um quadro conceitual mais rigoroso para dar conta das causas e consequências da paixão do real. A tese zizekiana, a que busco ser fiel, é a de que hoje é necessário suplementar a metafísica do objeto na teoria da sublimação – isso é, a referência à Coisa como horizonte da obra de arte – com a crítica da economia política – isso é, com o estudo de como a arte, campo que se ocupa daquilo que, estritamente, não tem valor de uso, é hoje essencialmente determinado por sua relação com a produção de mais-valia.
Essa tese nos obriga a investigar de que modo a produção cinematográfica que busca revelar o real para além da representação não se organiza, mais fundamentalmente, na possibilidade de extrair valor dessa dimensão do irrepresentável. No caso de Estamira, a nítida impressão que tive foi de que, no filme, é por vezes indistinguível o valor que existe em revelar a realidade dos catadores de lixo e a mais-valia que é extraída dessa própria revelação. Há algo de paradoxal em apontarmos a câmera para aqueles que, como escreve Jacques Rancière, são “parte de nenhuma parte”, cujo trabalho consiste em retirar do lixo as últimas migalhas de valor, e produzimos um filme cujo valor é diretamente proporcional ao tamanho da miséria de seu objeto. O imperativo de “mostrar a vida como ela é” não nos leva aqui a repetir na relação do filme com o catador de lixo o próprio gesto do catador com o lixo? O problema acaba sendo não mais a falta de representação, mas seu obsceno retorno, pois, por melhor que sejam as nossas intenções, a tentativa de nos aproximar da miséria só nos determina mais e mais como aqueles que produzem e exploram o real da pobreza.
Para mim essa é a verdadeira inconveniência do aterro. Não o lixo – até porque nós vivemos cercados de lixo o tempo todo, tenho que admitir que senti uma profunda familiaridade vendo aquelas montanhas inúteis – mas a impossibilidade de simplesmente nos excluírmos da cena que filmamos, pois o preço a pagar por essa literal obs-cenidade é tornar indistinguível no negativo os trabalhadores do objeto de seu trabalho. Como realizar um filme que, tendo o aterro sanitário como “campo de batalha”, consentisse a essa impossibilidade? Foi meditando sobre essa questão que encontrei o desejo de escrever e produzir o Depois.
A escolha pela ficção na hora de escrever o roteiro foi fácil: sou lacaniano, e acredito que a verdade não coincide com o real, e, portanto, que aquilo que da verdade se articula tem uma estreita afinidade com a nomeação, com a ficção. Tinha também em mente a famosa anedota sobre como Kieslowski passou dos documentários para os filmes de ficção justamente para que pudesse continuar a retratar a realidade sem que sua interferência com a câmera tornasse o filme obsceno, e portanto inútil.
O difícil mesmo foi organizar uma equipe de produtores, atores e técnicos que fosse capaz de trabalhar cientes das consequências de filmarmos sob aquelas condições. Aprendi com isso que é realmente preciso desenvolver uma escola de cinema que não veja tanto uma dicotomia quanto uma dialética entre a dimensão diegética e a produção de um filme. É uma questão fundamental quando pensamos, por exemplo, nas consequências de realizar um filme sobre o tema da corrupção no Brasil quando nossa indústria cinematográfica opera de forma tão informal e é tão dependente dos “favorzinhos”. Gostaria de investigar com maior cuidado essa problemática no futuro.
Cesar Kiraly: O personagem negro tem uma gramática toda interrompida, lembra um pouco o modo como alguns doentes mentais institucionalizados se expressavam no Brasil na década de 80 e 90. Existe uma lógica ou um preceito para a construção de suas inibições de fala? O homem branco, por outro lado, chega a ser teatral em sua loquacidade, lembra um pouco um homem inseguro que não consegue parar de falar, e que, nisso, se não for interrompido, tenta se persuadir que está na verdade, em função do silêncio dos outros.
Gabriel Tupinambá: A construção do personagem X é, por assim dizer, o “x” da questão. E o ponto realmente crucial, através do qual podem ser entendidos os outros traços que o compõem, incluindo a maneira como ele fala, aparece numa cena perto do final do filme.
Quando Z resolve ir embora com Y e retorna ao casebre atrás de provisões para a viagem, X reage de forma violenta e o ameaça de morte caso realmente decida partir. Violentamente, ele joga Z no chão e aponta uma arma para sua cabeça, enquanto tenta articular com sua fala truncada o quanto Z deve a ele: Z tem abrigo e comida, mas não trabalha o suficiente para compensar pelo que gasta. Nesse momento, X se aproxima do ouvido de Z – num plano que foi desenhado para ecoar um pouco aquele famoso momento no Alien, de Ridley Scott, em que o monstro quase resvala no rosto de Signorey Weaver – e sua reclamação, articulada principalmente como “come-se, bebe-se, mas…cata nada” transforma-se num imperativo: de “mas cata nada!” para “cata mais!”. O “x” da questão mencionado acima é justamente a passagem da dívida para o imperativo.
Numa cena anterior, em que Z e X conversavam sobre o que faziam antes do fim do mundo – a mesma cena em que Z revela ser “projetista” – a resposta de X quando a pergunta lhe é direcionada não é nem mesmo de afirmar uma continuidade entre o antes e o depois, mas de total desconhecimento quanto ao que a pergunta se refere. Se Z parece tentar organizar sua vida no fim de mundo de acordo com os mesmos princípios de antes (ele ainda se apresenta como projecionista, mesmo não havendo mais cinemas), X simplesmente não reconhece ruptura alguma.
Que X seja aquele que opera a passagem de uma economia baseada na homeostase entre dívida e trabalho para o imperativo da acumulação sem limite, e que seja para esse mesmo homem que a vida após o fim do mundo não seja descontínua da vida que levava antes dessa hecatombe – não podemos deduzir desses traços uma possível causa para a sua fala truncada e estranhamente fechada em si?
Durante os ensaios, desenvolvi junto com o Fabrício Boliveira, que interpreta o X no filme, a idéia de que, para esse personagem, sua fala escorreria de sua boca com dificuldade, caindo no seu colo, onde ficaria rodeando a si mesma – de modo que, após falar, X seria como um urubu que se debruça sobre a carniça daquilo que disse. Esse efeito foi realizado de maneira interessante, pois a fala de X é realmente circular, mas não se remete de volta a quem a enunciou e sim ao próprio enunciado: “se come-se”, “se usa-se”…
Essa impossibilidade de inscrever a posição de enunciação no enunciado, isso é, de que a fala acolha uma certa falta de sentido que demarca de onde falamos, não é justamente o que falta a X? Incapaz de que sua fala venha a representar a posição de onde ele fala – digamos, a posição de estar “depois” de alguma coisa – X é totalmente falado, é a própria encarnação do fim das coisas.
Acho que a comparação dos personagens X e Z pode ser muito frutífera, e principalmente sob o ângulo da fala de cada um, mas para que pudéssemos afirmar alguma coisa mais categórica, seria preciso uma análise mais cuidadosa e extensa do filme. Considero importante, no entanto, fazer uma breve referência ao ponto levantado na questão quanto à loucura.
Como comentei acima, o filme Estamira foi muito presente na formulação das questões iniciais desse curta-metragem, principalmente em relação à articulação entre a “paixão do real” e a produção da mais-valia. Um outro traço importante do documentário, evidentemente, é a psicose da protagonista, a Estamira. É muito comum a neurose se seduzir pelo espetáculo da psicose: posso confirmar isso por experiência própria, pois lembro bem de como, quando adolescente, supunha uma poesia e uma liberdade na loucura justamente por reconhecer ali um “mais além” de mim. É claro, no entanto, que é só quando temos o pé bem fincado na neurose que podemos reconhecer na angústia do psicótico um mecanismo sublimatório que, na verdade, é justamente o que lhe falta. Essa sedução me parece muito presente em Estamira, que flerta constantemente com a “sabedoria” de uma psicótica que não tem o acesso ao que diz da maneira que nós temos.
Foi por ter reconhecido nesse mecanismo que sublima a psicose em nome da “beleza” e da “sabedoria” uma outra face do diagnóstico de Badiou e Zizek que decidi construir X da maneira que está no filme: um corpo determinado pela foraclusão – termo de Lacan – do descontínuo, no qual somos convidados a supor a sabedoria sertaneja do “preto véio” até o momento em que sua fala truncada e dobrada em si mesma se transforma no mais puro veículo de uma injunção cega, reduzindo seu corpo a não mais do que o lixo que ele recolhia diariamente.
Dessa maneira, o filme não deixa de esboçar uma crítica ao Anti-Édipo de Deleuze e Guattari.
Cesar Kiraly: Fico pensando em relações de superioridade. Haveria alguma naquele que busca o último homem com relação aquele que vaga com o cadáver do último homem nas costas? Seria a mesma que pontuaria uma beleza errada no Sísifo, contraposta a uma feiura verdadeira do enauseado? Porque isso que o personagem negro tem, de agrupar infinitamente os objetos buscados, parece ter que ver com isso que a mulher realiza ao prosseguir, ainda que despojada de seus pertences.
Gabriel Tupinambá: Comentei acima a importância da ruptura entre o “antes” e o “depois” na diferenciação de X e Z, mas trata-se, de fato, de um traço fundamental na constituição subjetiva de cada personagem. Avancemos de forma esquemática:
– X não reconhece ruptura alguma.
– Z sabe que houve uma ruptura, mas tenta significar o depois com os termos de antes
– Y sabe que houve uma ruptura e tenta significar o depois com seus próprios termos.
Se substituirmos o termo “ruptura” por “evento”, temos uma simplificação funcional das tipologias subjetivas articuladas por Badiou em Lógica dos Mundos. No livro, Badiou propõe diferentes modos de subjetivação em relação ao Evento – categoria fundamental de sua filosofia. Essa tipologia é quaternária: há o sujeito produzido pela fidelidade à verdade de um evento; há o sujeito produzido pela negação de que tenha havido qualquer evento; há ainda o sujeito produzido pelo obscurecimento da relação entre o evento e suas consequências, de modo que o evento é reconhecido, mas suas consequências são negadas; e há, por fim, o sujeito que é produzido pela ressurreição (esse é o termo de Badiou) das consequências de um evento anteriormente negado ou obscurecido.
Mas quando comparamos nosso esquema simplificado e as categorias de Badiou, vemos que a correlação pode até ser possível – Y, fiel, X, negação, Z, obscurantismo – mas é incompleta: e quanto ao quarto caso, do sujeito produzido pela ressurreição de uma verdade? Tornar visível a passagem do sujeito que obscurece as relações entre o evento e a verdade para o sujeito que reativa essa verdade esquecida foi justamente o que guiou a construção do personagem de Z. O quanto o final da narrativa do Depois parece não sustentar essa trajetória só testemunha para o que considero ser o grande fracasso do filme.
Mas se o personagem de Z ensaia uma divisão subjetiva entre essas duas posições, podemos, por outro lado, delinear uma certa semelhança entre as posições de X e Y. Aqui, a referência ao “trabalho infindável”, feita na questão acima, é extremamente pertinente, pois revela que há uma afinidade estrutural entre o sujeito fiel e o sujeito que desconhece o evento totalmente. De certo modo, articular essa afinidade equivale a uma certa crítica de Badiou, posto que essa relação não é explorada em seu sistema filosófico.
Y nos apresenta seu engajamento com o novo na forma de um dito quase galileano – “se o mundo parou é a gente que tem que se mexer” – enquanto que X só tem seu mastigar bovino para responder à pergunta do que ele fazia “antes”. No entanto, ambas as posições dependem de uma constante purificação na relação entre o que cada sujeito é e o que cada sujeito diz. Comentamos acima sobre a total disjunção entre a fala e a posição de X – ora, no caso de Y, é a total conjunção, igualmente impossível, que a define: isso é, a idéia de que evocar um evento é o suficiente para garantir que haja ali uma fidelidade e não uma satisfação patológica perfeitamente definida nos termos do “antes”.
Nesse sentido, a questão talvez não seja tanto a de superioridade, mas a dos diferentes modos de responder a uma ruptura histórica e às contradições que emergem quando temos que nos posicionar frente as consequências de tal evento. Por isso, a questão principal na organização dos sujeitos não passa tanto pelo viés intersubjetivo, mas pela relação mais fundamental entre cada sujeito e a ruptura constitutiva de seu mundo. E foi precisamente essa questão que guiou a construção das relações entre os personagens: como podemos servir a um evento no forçamento de uma nova situação no mundo ao invés de nos servirmos da referência ao evento para manter as coisas essencialmente como são?
Com essa questão como referência, acredito que X e Y apresentam duas variações da mesma resposta. Cabe ainda investigar até que ponto há realmente uma mudança efetiva no caso de Z, ou se nada de sua trajetória do obscurantismo à ressurreição foi de fato apresentado pela trama do filme.
Cesar Kiraly: O que me parece mais genial no filme, e que justamente por isso é mais difícil de compreender é a estrutura do conflito que leva a morte do personagem negro, e, de alguma forma insinuada, também a morte da mulher. Porque na relação entre o negro e o branco, aquele realmente ajuda, mas no que acontece com a mulher, só existe o aceno de uma renúncia. Parece-me que dá a entender que o fim da história é um modo de traição à simpatia, mas também de frustração frente à exigência de renúncia. O que me leva a dizer que o fim é uma forma do mau destino destinado à solidariedade. Estou errado?
Gabriel Tupinambá: Uma demarcação importantíssima, já articulada na própria pergunta, é a que separa a relação de X e Z da relação de Z e Y – de fato, no filme X e Y nunca se encontram, e Y nem chega a saber que X existe. Essa mesma distinção nos permite separar dois tipos diferentes de escolha.
No eixo X-Z, há um problema bem específico, e que só se formula como tal após termos assistido à briga entre os dois homens: como se equilibra a dinâmica entre senhor e servo quando o mestre é ainda mais onipotente por ser essencialmente escravo de sua moral e o servo é ainda mais escravizado por não ter nem as ferramentas para compreender sua “malandragem” como sujeição? O assassinato de X, em linha com os mitos freudianos, vem sedimentar essa relação entre invisibilidade do mestre e semblante de liberdade do escravo.
No eixo Y-Z, a morte aparece de outra maneira. Aqui o problema pode ser resumido na expressão – famosa no ensino de Lacan – “a bolsa ou a vida”, que designa, de certa maneira, uma escolha forçada: por exemplo, se um ladrão pede que escolhamos entre as duas coisas, caso escolhamos a vida, perdemos a bolsa, mas caso escolhamos a bolsa, perdemos a vida, e portanto a bolsa também. A única saída é escolher a vida e perder a bolsa – mas, no fundo, essa escolha já estava feita.
Na penúltima cena antes do epílogo do filme, Z conta a Y que mudou de idéia e que não vai mais embora dali com ela. Y não fica muito feliz com a atitude de Z e decide partir sem ele. No entanto, quando Z diz então que ela tem de escolher – ou fica com ele, ou vai sem levar nenhum mantimento para sua viagem – a situação de Y é essencialmente a da escolha forçada acima: o desejo de seguir em frente ou a sobrevivência.
No entanto, que Y escolha o impossível – isso é, o desejo para além da vida – não me parece razão o suficiente para transformar esse gesto num exemplo do que é viver de uma nova maneira. Discutimos acima o uso que é feito da loucura na arte, e é preciso insistir que o feminino também pode funcionar a favor da sideração tanto dos homens quanto das mulheres naquilo que desconhecem. Se evitamos a leitura de que sua escolha heroicamente rompe com a lei do mundo de “antes”, a morte de Y me parece muito mais determinada pela incapacidade de suportar uma certa impureza constitutiva do desejo, a dimensão daquilo que queremos que não é tanto produto de nossa vontade – no caso de Y, sua vontade de viver a altura de uma idéia – mas que nos precede e determina, como uma escolha forçada. Em outros termos, mais hegelo-kantianos: o ético não é a pura renuncia, é a renuncia dessa pureza ela mesma, a capacidade de sustentar o desejo mesmo quando esse é repetidamente parasitado por determinações que não reconhecemos como de nossa vontade. No drama de Y, tentamos tornar visível essa contradição essencial, já articulada na Fenomenologia de Hegel, que faz com que a liberdade absoluta coincida com a morte. A fidelidade a um evento precisa ser pensada de outra maneira, mais ciente das armadilhas do heroísmo. Badiou mesmo nos alerta: “não há herói do evento”.
Por fim, é muito interessante pensar tanto o eixo X-Z quanto o eixo Y-Z em termos do “mau destino destinado à solidariedade” – isso é, se bem entendi a formulação, em termos daquilo que sustenta e dissolve o laço social.
Se me for permitida uma ousadia, gostaria de propor que definíssemos provisoriamente o eixo X-Z como aquele das bases materiais da produção, -pois é na relação deles que encontramos de forma mais explícita as questões da dominação e da exploração – e o eixo Y-Z como aquele das formações ideológicas – já que trata-se aqui da evocação dos ideais e das relações sociais que são convidados a justificar um determinado trajeto dos personagens.
Pois bem: não poderíamos então argumentar que a real questão do eixo X-Z, articulado primariamente pelas relações de poder, é justamente a intrusão da ideologia como fator determinante de relações que supostamente precedem e constituem o campo ideológico? Isso é, no momento em que X não mais se contenta com cobrar o que lhe é devido, passando a dar voz a um imperativo de acumulação sem fim, não ocorre ali uma mudança fundamental na própria definição do poder e da exploração, de modo que aquele que enuncia a autoridade (“come-se, bebe-se, mas cata nada!”) acaba por encontra-se ele também determinado pela autoridade da própria injunção? Afinal, “cata mais!” não diz respeito só ao explorado, mas também àquele que explora.
Por outro lado, não seria também uma intrusão do registro das forças de produção na dimensão ideológica do discurso que faz com que a renúncia e o dever venham a tomar um outro valor para Y, de modo que seus ideais – que a princípio organizam as decisões tomadas em outro registro – de repente produzam eles mesmos uma satisfação adicional? A mesma injunção que a libertava do jugo da antiga ordem do mundo é aquilo que justifica que ela venha a abrir mão de tudo aquilo que é novo.
Seria necessário explorar esses dois “curto-circuitos” de forma detalhada, mas, em todo caso, o filme certamente associa o “mau destino” das tentativas de formar laços sociais à incapacidade de suportar a irrupção inesperada de algo do saber de dentro das relações de poder, e vice-versa.
Cesar Kiraly: Reportando a um cenário mais geral, o fim é costumeiramente entendido como uma coisa boa, seja o fim que marca o estado pós-revolucionário, seja o que sucede a morte, ou o triunfo das democracias por representação e liberdade de mercado, mas o seu fim é ruim. Parece que o argumento do seu filme inverte o modo como entendemos a finalidade, pelo menos no plano da filosofia política. É isso, poderíamos entender o fim como algo a ser evitado, no sentido de que ele valoriza a história? Ou, como diz Benjamin, o fim como o espectro que nos faz interromper a locomotiva diante do abismo?
Gabriel Tupinambá: Participei recentemente de uma competição de curta-metragens de um minuto de duração, e resolvi que meu projeto seria recriar o Depois em uma versão mínima.
Acabei me decidindo por utilizar um pequeno fragmento do filme em que Z conta o que fazia antes do fim do mundo, e pergunta o mesmo para X, que não entende nem mesmo a questão. Além disso, entrecortei às imagens a seguinte formulação, me pareceu apropriada para resumir o argumento principal do filme: “Esse é o fim do história. Mas para aqueles que não tem nada, o fim da história teve lugar dentro da própria história.”
Esse slogan condensa uma das propostas centrais do filme, que é promover o encontro entre dois conceitos de finalidade: o famoso Fim da História, de Francis Fukuyama, e a dimensão apocalíptica própria do tempo messiânico, tal qual encontramos, por exemplo, no estudo sobre São Paulo realizado por Giorgio Agamben. De um lado, o campo político é reduzido à mera gerência do presente – do outro, cada instante é marcado pela violenta possibilidade da emergência do novo. O fim do mundo apresentado no Depois é justamente assim: o tempo não passa, o gelo não derrete, o sol permanece parado sempre ao meio-dia – mas, ao mesmo tempo, como atenta o Zaratustra de Nietzsche, o meio-dia é o momento mais propício para separar o corpo da sombra, isso é, o mundo como ele é de sua mínima diferença de si mesmo.
Nesse sentido, discordo que a idéia de finalidade do filme seja exatamente ruim: é certo que há uma tentativa de configurar uma outra relação com a finalidade que não a de uma resolução teleológica, mas trata-se não tanto de propor uma visão negativa do final quanto a introdução de uma divisão no próprio conceito de fim. É necessário reativar a morte como dimensão inerente da vida, e não somente como seu limite, se queremos conceitualizar como que é possível derivar as consequências para o mundo de uma ruptura que põe fim a alguma coisa do passado. Quando dissemos acima que o personagem de Z cumpre uma trajetória que vai do obscurantismo à ressurreição – no sentido dos termos na filosofia de Badiou – é precisamente à recuperação dessa dimensão da morte que nos referimos como a verdade de um evento desativado.
Poderíamos oferecer ainda a seguinte citação de Lacan como uma variação no tema das duas finalidades: “não é suficiente decidir a questão na base de seu efeito: a morte. É preciso saber qual morte, aquela que a vida traz ou aquela que traz a vida”. Com o Depois, tentei encenar os traços cruciais dessa decisão e apontar algumas de suas consequências.
O final do filme mostra Z tentando colocar uma cruz improvisada sobre o túmulo de X, até que, depois de diversas tentativas mal sucedidas de deixar a cruz de pé, Z enxerga sua própria mão produzindo uma densa sombra e decide substituir a cruz que não serve mais no túmulo por uma estranha régua em “T” que encontrara duas vezes antes, largada na praia. Tendo sobrevivido a morte de X e Y, resta a Z aprender a reativar a dimensão da morte como uma potência da vida: hoje a cruz pode não ser mais o nome de uma tal ruptura com o mundo, mas existem outros elementos que podemos usar para construir nossos emblemas.
Cesar Kiraly: Por fim, poderia falar um pouco de si? É brasileiro, morou em Paris, estuda filosofia e imagem numa escola de vanguarda. Como orienta a sua trajetória? Como foi parar tão longe? Faz filmes em português. O cinema contemporâneo no Brasil, poderia comentá-lo, a sua presença política, ela existe?
Gabriel Tupinambá: Acho que já falei até mais do que devia sobre mim mesmo e minha formação nas entrelinhas das questões anteriores, portanto gostaria de focar um pouco na relação entre o cinema e a política no Brasil.
E para falar do Brasil, o melhor lugar para começar costuma ser o Haiti. Tenho grande entusiasmo por um famoso caso que aparece em diversos relatos da história da independência do Haiti. Trata-se de uma batalha travada em torno de 1800, entre os haitianos, liderados por Toussaint de L’Ouverture e o movimento abolicionista, e os franceses, que lutavam para manter o Haiti sua colônia e os haitianos seus escravos. É relatado que no momento do combate, os soldados franceses ouviram um canto estranho: era a Marselhesa, hino da Revolução Francesa, entoada à pleno pulmões pelos haitianos. Desorientados, os franceses foram derrotados pelo levante de L’Ouverture. O mais importante aqui é que cantar o hino do adversário não foi uma estratégia irônica ou simplesmente destabilizadora: esse gesto, na verdade, reconhece que a dimensão verdadeiramente importante da Revolução Francesa é universal, e que, portanto, não diz respeito somente a um povo ou a outro. Lutando em nome dos mesmos ideais que seus colonizadores, os haitianos foram por um momento mais franceses que os próprios franceses!
Tenho que admitir que ando bastante desligado do dia-a-dia do cinema no Brasil – pretendo, inclusive, que o Depois tenha sido meu último curta-metragem e não sei se me engajarei em produções de maior porte no futuro. No entanto, há um certo obstáculo que reencontrei a cada nova tentativa de produzir meus filmes e cuja repetição é fez dele um objeto de estudo: a insistente demarcação – aparente no discurso de atores, diretores, produtores e cia – que opõe disciplina à criação artística, o trabalho à inspiração, e mais imaginariamente, o entretenimento à arte. Se, por um lado, essa divisão parece nomear também uma oposição entre o cinema brasileiro e Hollywood, por outro também nos exclui de todo um aparato importantíssimo, que identificamos daí pra frente com o cinema americano. Para garantir que não sejamos como eles, inventamos o valor da desorganização, da falta de ambição, da preocupação com o inútil e do particular.
Fora algumas exceções marcantes, o cinema brasileiro me parece bastante satisfeito com essa identificação. Nos ajustamos muito bem ao horizonte proposto por Fukuyama – melhor até que os americanos, eu diria – pois seguimos a risca a idéia de que nada deve ter prevalência sobre a liberdade individual, nenhuma grande ambição ou projeto prevalecendo sobre a estética do pequeno e do momentâneo, que são os ídolos que nos sobraram.
Para falarmos de uma retomada da política no cinema brasileiro teríamos que retornar a esse exemplo histórico do Haiti: temos uma nação de 190 milhões de pessoas precisando de educação e de um novo senso de identidade – não seria o caso de reconhecer em Hollywood aquilo que não é americano, mas universal – em suma, a capacidade do cinema de elevar o homem da impureza do vulgar à pureza de uma idéia – e de atravessar essa injunção à marginalidade rumo a um cinema que seja capaz de se utilizar das armas de seus oponentes e ainda assim definir seu próprio campo de batalha?