Resenha da obra “Os limites da representação”, de Cesar Kiraly, por Paula Campos Pimenta Velloso

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Paula Campos Pimenta Velloso é doutoranda em Ciências Sociais pela PUC-Rio.

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Resenha do livro:

Kiraly, Cesar. Os Limites da Representação: um ensaio desde a filosofia de David Hume. São Paulo, Giz Editorial: 2010.

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Imaginemos, com Cesar Kiraly, que a espontaneidade equivale ao ato do ferreiro húngaro, que remove cataratas sem medo da consequência da cegueira, isto é, empreende sem conhecer princípios. E que busca-los – ou a atividade intelectual – implica o combate à espontaneidade, isto é, inibe a ação. Uma vez a par dos princípios da sua ação, as mãos do ferreiro hesitam em tocar os olhos. Está posto o lugar do cético como aquele que descreve e não empreende, mas também não combate a espontaneidade. De certa forma, podemos pensar que a atitude epistemológica de David Hume visa a preservar o destemor. Entretanto, seria falso dizer que, para Hume, simplesmente não convém esclarecer princípios. Sua postura face ao conhecimento parte do suposto de que é impossível esclarecer.

Mas, que fazer com o que é apenas aparente? Que fazer se o conhecimento não está disponível a quem o ignora na vida prática, nem aos que estão cegos – e imóveis – pelo controle de princípios essencializados? Que fazer desde a constatação de que princípios são invenções? Houvesse Hume parado por aí, pouca coisa mais no mundo causaria maior imobilidade. Em boa hora, e de forma (humeanamente) inventiva, “Os limites da representação”, de Cesar Kiraly, expõe de que forma a consequência da reflexão de Hume é grandiosa para o tema da ação. Esclarecer aquela impossibilidade é o que realmente falta ao ferreiro. Ciente dela, as mãos informadas pela reflexão cética já não tremem mais.

A saída para o limite do conhecimento tem sido o deslocamento da reflexão para o devir. A impossibilidade de conhecer os princípios primeiros se resolve pela elaboração dos últimos. Reitera-se a essencialização. Despreza-se o fato de que qualquer projeto traz consigo uma concepção do homem que o levará a cabo. Lança-se como verdadeiro algo que é pouco mais que uma opinião. E cria-se um sentido – imóvel – para a ação. Atualizações do mesmo erro. Em Hume, constatar o limite do conhecimento não leva a uma concepção temporalizada de ação, mas à busca incessante. Busca esta que se dá sempre a partir de princípios parciais, provisórios. O cético é um crente que duvida. E só por isto conhece.

Sendo impossível o conhecimento dos princípios primeiros, conhecer é descrever submetendo a apreciação ao fato de que o que foi produzido, e é apreendido, se dá sempre pelo filtro de uma concepção de natureza humana. A pureza de uma ciência posta nestes termos nasce do saber que seu solo é impuro. Saber disto é urgente: qualquer conhecimento positivo parte de uma determinada concepção de natureza humana, mas, mais do que isso, a direciona. Por estes motivos, a observação de Hume, seu empirismo filosófico, volta-se para a criação de uma ciência da natureza humana. Uma forma crítica de filosofia moral. Crítica porque contrária ao empreendimento de encontrar qualquer objetividade nos conceitos de vício e virtude.

À maneira dos dogmáticos, a ciência da natureza humana generaliza preceitos morais e fixa parâmetros de verdade ou falsidade para a ação. Mas um valor não tem essência! Entretanto, porque filtramos o que vemos pelo sentimento e pelo gosto, todos sentimos valores com o impacto de algo que é verdadeiro. Daí a importância de conhecer os limites. Em Hume o homem nasce para a ação, não para um valor específico, embora esteja agindo sob a influencia do sentimento e do gosto.  O filósofo é um homem e se move da mesma maneira. Não há, portanto, qualquer diferença entre ele e o plebeu nas respectivas capacidades de apreender os fenômenos, pois não há distinção possível entre as naturezas dos sentimentos. A consequência de conhecer isso é muito forte. Ignorar a realidade hipostasiada dos valores é bem responsável por muitos de nossos infernos. Só por isto o nosso pouco lido David Hume deveria ser distribuído nas escolas já no ensino fundamental.

Identificada por Kiraly, a vinculação entre o empirismo filosófico de Hume e uma concepção de ação, leva-o a sublinhar a importância do filósofo para a reflexão sobre a política. Ao não aderir ao dogmatismo e ao não resolver o problema da impureza pelo instrumento histórico-filosófico, Hume faz muito pelo pensar a política. Não se trata de um projeto para a ação, o que seria necessariamente – como fará Kant – um projeto para a ação moral, impregnado de suas próprias crenças. A reflexão humeana faz um outro gesto intelectual.

Por um lado, o empirismo esteve vinculado, seja entre os antigos, seja entre os modernos, ao mesmo tempo à recusa do racionalismo e à refutação de compreensões teleológicas da realidade – operação que o despertar de Kant não completará. Da recusa humeana ao racionalismo deduz-se que a vivência pública deve fundar-se na experiência.  De sua rejeição à teleologia, que os rumos da sociedade não se nortearão por um dado a priori, mas pela observação das estratégias das instituições na fixação de rumos.

Vimos que sua compreensão de moral parte de uma teoria do conhecimento. Kiraly nos ensina que ela fundamenta uma teoria política que, embora não pretenda fazer predições sobre o fenômeno institucional, logra analisa-lo. E, ciente da impossibilidade de dizer o que as instituições são de verdade, privilegia a experiência e o faz do ponto de vista das crenças estruturantes. Significa dizer que o agir reflexivo deve obedecer o mesmo suposto do agir prático. Saber o limite do conhecimento é a dúvida necessária para seguir em frente. É assim com o ferreiro e é assim como o cientista. A teoria do conhecimento de Hume desvela que as instituições podem – ou só podem – ser observadas segundo as regras que apresentam. Nada além disto pode ser dito sobre instituições, nada senão generalizações de princípios particulares. Deste ponto, Kiraly extrai o brilhante capítulo sobre o trauma. A operação da quebra da causalidade realizada por Hume e a possibilidade de observar e descrever a política a partir da crença inspiram Kiraly a revisitar o trauma na apreciação da experiência política.  E o levam, a partir de uma argumentação simples e elegante, à alarmante conclusão de que o homem já não vive a política, mas apenas sobrevive.

A obra de Cesar Kiraly guarda muito mais do que eu sou capaz de dar conta nesta injusta resenha. Ainda assim, gostaria de chamar a atenção do leitor para a apreciação da metafísica e sua consequência para a demarcação do campo da ciência política. O fato de ser um filósofo empirista coloca Hume muito à vontade, ele não está tentando não ter metafísica. Talvez por isto não precise acreditar que existem juízos sintéticos a priori. Por se conhecer crente, Hume não se deixa capturar pela crença e, de olhos abertos, coloca uma metafísica que é da ordem da imaginação. Por este motivo, para Kiraly, extrai dela o que ela pode realizar de melhor. Pode fazê-la meio de ser inventivo, de pensar por conceitos e esclarecer a experiência a partir de um bom lugar da teoria.

É sempre triste ver o campo teórico ser utilizado como arena desportiva para a afirmação da erudição. Mais triste, entretanto, e mais frequente, é vê-lo desprezado. Parece estranho pensar que os homens pensam para nada. Ou que já pensaram tudo e que a teoria não é mais do que “suporte historiográfico para a formação de pesquisadores”. Hume escreveu no século XVIII e quem pensa assim tem pelo menos trezentos anos de atraso crente. Com Hume aprendemos o lugar da teoria como modo discursivo imprescindível para a compreensão dos fenômenos; com Kiraly, aprendemos seu lugar contemporâneo.