Gabriel Tupinambá é doutorando em Filosofia e Psicanálise pela European Graduate School.
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Resenha do livro:
Kiraly, Cesar. Os Limites da Representação: um ensaio desde a filosofia de David Hume. São Paulo, Giz Editorial: 2010.
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Com a mesma elegância com que organiza e revela a coerência interna do pensamento de David Hume, cujo gume se mantêm afiado por sua indelével atualidade, Os Limites da Representação nos oferece sua própria contribuição à filosofia, na extensão rigorosa das teses que examina.
Nesta breve nota, focaremos especificamente na referência à Freud que domina a última seção do texto, e que norteia a passagem de uma exposição da filosofia de Hume para um exercício humeano de filosofia política.
De fato, a intromissão do contemporâneo na tessitura nocional humeana se dá através de uma questão fundamental, e fundamentalmente moderna: o que fazer do insuportável na política? Isso é, ali onde a ruptura causal e o esvaziamento das crenças ameaça a integridade da vida pública, quais são nossas ferramentas de investigação? Aqui, sugere o autor, uma “traumatologia” nos permitiria remanejar as relações entre crítica e arte, de modo a produzir, mais além de um discurso sobre a moralidade, um discurso que presentifica o sentimento moral ele mesmo (KIRALY, 2010, p.206-207).
Traçando um paralelo entre a representação e a figuração na arte, o autor defende que as estratégias da arte conceitual e abstrata nos permitem redescobrir, através de uma imagem que não representa, mas faz sentir, a contigüidade essencial entre crítica e moral (ibid: 184-189). Uma vez estabelecida essa função sensual da imagem artística, que respeita os entraves da representação ao mesmo tempo que presentifica algo da experiência moral circunscrita por esses limites, o palco está montado para a aproximação feliz entre a crítica humeana e a noção de trauma em Freud. A tese fundamental pode ser formulada assim: o que o trauma exclui da representação o discurso artístico presentifica como sensação. Nas palavras de Kiraly:
A narrativa sobre o campo de concentração sofre de uma mutilação originária; não somos capazes de dizer a experiência sem certa ordem de simplificação. Ora, e se em vez de dizer a experiência, fôssemos capazes de fazer sentir a experiência? O leitor deve, provavelmente, estar a duvidar da sanidade do argumento ao pensar que desejamos reproduzir campos de ‘mentira’ para fazer viver a experiência. Contudo, devemos indicar que a assertiva não é resultado de moléstia, mas de uma distinção entre o fazer sentir e o fazer viver. Compreendendo o fazer sentir como da ordem de alguns modos discursivos pouco explorados, dos suportes contemporâneos em arte e da narrativa da memória em estilhaços, e o fazer viver ou suporte, em função da natureza própria da experiência. (KIRALY, 2010: 207)
Como descrevemos acima, o autor primeiro promove o atravessamento de Hume por Freud para que possamos assim pensar o atravessamento da vida pública pelo furo do insuportável como a inscrição de um trauma. Em seguida, somos conduzidos de volta à Hume para que, através de uma conceitualização humeana da estética (ibid: 184-191), surja a possibilidade de aproximarmos o inexorável da experiência, violentamente desarticulado do dizível em casos como o Holocausto, daquilo que só “alguns modos discursivos pouco explorados” são capaz de presentificar. No entanto – no espírito do rigor e cuidado com que o próprio texto lida com suas asserções – é preciso por à prova as consequências dessa dupla articulação: de Hume à Freud, e de volta ao filósofo escocês.
Tomemos como ponto de partida a curiosa evocação do leitor na citação acima, pois gostaria de colocar a seguinte questão: que leitor é esse que consideraria a tese de “fazer sentir a experiência” a mesma coisa que “reproduzir campos [de concentração] de ‘mentira’ para fazer viver a experiência”? A resposta é simples: ninguém! Na verdade, a premissa básica da tese apresentada por Kiraly é bastante difundida, e compartilha o essencial do “elogio da presença” heideggeriano que fundamenta não só grandes correntes filosóficas contemporâneas (desde os analíticos mais wittgensteinianos aos derridianos e os pós-heideggerianos em geral) como também boa parte do que o senso comum aceita quanto a relação entre o dizível e o inefável. Isso é: o leitor “médio” seria justamente aquele que aceitaria sem grande resistência a tese de que há uma relação privilegiada da arte com o indizível. Qual a utilidade, então, de fazer referência a esse leitor que duvidaria da “sanidade do argumento”?
Nossa hipótese: o que essa referência a um leitor extraordinário permite desconsiderar é justamente por que o senso comum parece compartilhar as premissas em jogo. O que teria promovido, nos últimos cinquenta ou sessenta anos, a elevação de certos discursos avant-garde à dignidade de práticas artísticas reconhecidas? Afinal, Anselm Kiefer e Primo Levi não são, exatamente, artistas controversos. Não seria difícil de argumentar que a resposta é, justamente, o trauma da segunda grande guerra mundial – e a importância dada no pós-guerra à investigação dos limites da representação não se restringe ao campo da arte: acima de tudo, trata-se de uma investigação motivada pela política e pela tentativa de subverter a relação entre representação e seu referente de modo a dissolver os possíveis caminhos do totalitarismo (BADIOU, 2005). Há, então, extrema proximidade entre o foco nos limites da representação e a questão dos limites da representatividade política – ambos podem ser considerados respostas ao horror ligado ao homem “pós-Auschwitz”. Encontramos, assim, uma certa circularidade: o trauma tem um papel fundamental na promoção de certos modos de expressão, formas discursivas que o autor argumenta, em seguida, serem capazes de contornar ou subverter a ruptura causal que os “fundou”.
Essa paradoxal circularidade é, na verdade, um ponto crucial da noção de trauma em Freud, uma dimensão que o tema da memória – tomado pelo autor como aquele “mais afim à questão do trauma” (KIRALY, 2010: 191) – não é necessariamente o mais adequado para tratar. Retornemos, por um segundo, ao famoso caso “Emma”, apresentado no Projeto de uma Psicologia Científica, escrito em 1895 (mas só publicado após a morte de Freud). Trata-se de um caso paradigmático, em que a relação entre trauma, memória e sintoma é particularmente bem exemplificada.
Emma apresenta um sintoma: não pode ir sozinha a uma loja. Em análise, ela se recorda de uma cena de quando tinha doze anos (Cena I): estava em uma loja quando percebeu que dois balconistas, um dos quais a interessara sexualmente, riam de seu vestido – isso despertou-lhe um afeto de terror, que a levou a fugir dali. Tempos depois, Emma revela a Freud uma segunda memória, mais antiga (Cena II): quando criança, foi duas vezes sozinha na loja de um merceeiro para comprar doces – na primeira ida, esse a beliscou nos genitais por sobre o vestido, o que não a impediu de retornar à loja pouco tempo depois, como se nada tivesse acontecido (FREUD, 1969: 65-66).
Temos aqui, portanto, duas cenas a princípio desconexas – I e II – que a análise permite que Emma articule, de modo que o curso que vai do momento traumático (II) ao sintoma (atual) parece se tornar finalmente claro. No entanto, Freud não para por aqui: o pai da psicanálise nota, ainda, que a cena II não adquiriu seu caráter traumático por causa da experiência do abuso. Emma foi beliscada num dia e retornou sem problemas à loja no dia seguinte, o que dá a entender que a experiência do beliscão não foi em si tão insuportável assim. O horror que relacionamos ao trauma só aparece quatro ou cinco anos depois, no tempo da cena I, quando, de maneira já desassociada da cena II, Emma foge, apavorada, ao perceber-se vista por dois homens que riem dela, num momento em que suas questões com a sexualidade já haviam aflorado. Em outras palavras, o que Freud percebe é que foi “reprimida uma recordação que apenas retroativamente se tornou um trauma” (ibid: 68). É o encontro com o impasse do sexual, já na puberdade, que necessita a elevação de uma experiência empírica anterior ao registro do traumático – uma experiência que, a rigor, não precisa nem mesmo ter realmente acontecido – mas que é necessária para demarcar, no registro da memória, um impasse cuja origem não é simplesmente recalcada, mas estruturante do recalque como tal. É por isso que a pequena representação gráfica feita por Freud para acompanhar a discussão do caso Emma – ligando o sintoma às cenas I e II – não termina em uma linha fechada com início na cena traumática aos 8 anos: ao invés, adiciona ainda um ponto vazio, que precede o trauma da cena II, e que aponta para esse ponto fundamental que o trauma estabiliza (ibid: 67). A substituição desse ponto vazio pela cena II, a cena traumática, insuportável, é o que Freud chama de “a proton pseudos histérica” (ibid: 65) – uma mentira fundante que associa o trauma à experiência, o furo lógico da sexualidade à presença de um corpo sexuado.
Esse, me parece, é o impasse principal que Kiraly precisaria ainda dar conta para garantir a consistência de sua tese quanto ao potencial político do registro estético: os “modos discursivos pouco explorados, dos suportes contemporâneos em arte e da narrativa da memória em estilhaços”, na medida em que respondem diretamente a tentativa de elaborar por outras vias a experiência do insuportável, seriam formas discursivas capazes de distinguir o núcleo enigmático do recalque do proton pseudos da política? Haveria uma demarcação sensível dessa diferença?
Em seu livro O Século, Alain Badiou sugere que um dos traços definidores do século XX foi a paixão do real – a insistente tentativa de desmascarar, para além das representações e os ideais alienantes, o cerne duro da experiência – a força motor tanto de movimentos políticos quanto artísticos:
Desejaram a arte pura, aquela na qual o papel do semblante é apenas indicar a crueza do real. Quiseram, pela axiomática e pelo formalismo, depurar o real matemático de todo imaginário, espacial ou numérico, das intuições. E assim por diante. A idéia de que a força se adquire pela depuração da forma não é de maneira alguma apanágio de Stalin. Ou de Pirandello. O que há em comum em todas essas tentativas, uma vez mais, é a paixão pelo real. (BADIOU, 2005: 89-90)
Isso é, para Badiou, a paixão do real seria algo em comum entre a depuração formal-abstrata na arte e na destruição impotente no fascismo e no stalinismo – um modo de tratar do impasse entre semblante e real, entre representação e experiência, que insiste tanto no que o século produziu de mais abominável quanto em suas consequências discursivas. Esse fundamento em comum esclarece um pouco por que a questão dos limites da representação parece ganhar tanto espaço no mundo pós-guerra e, também, por que seu privilégio é indissociável das referências à barbárie e aos crimes de guerra. Como no caso de Emma, a paixão que se antepõe ao horror traumático não é tanto um modo de trazer o insuportável à tona, mas uma maneira somática de repetí-lo, de fazê-lo consistir como causa. Freud soube distinguir no sintoma seu ponto de real – o impasse do sexo – daquilo que o sintoma presentifica ou torna sensível – a tentativa de elevar uma memória (cuja realidade é irrelevante) à categoria de experiência fundamental. A pergunta que deixamos ao autor de Os Limites da Representação é portanto a seguinte: como separar no campo dos discursos artísticos o que é uma máscara que esconde um trauma inominável do trauma que é ele mesmo uma máscara, por trás do qual se esconde não uma ruptura no tecido social, mas o impasse, o antagonismo, que o funda?
Bibliografia:
BADIOU, Alain (2005) Le Siècle. Éditions du Seuil
FREUD, Sigmund (1969) Projeto de uma Psicologia. Imago Editora
KIRALY, Cesar (2010) Os Limites da Representação: um ensaio desde David Hume. Giz Editorial