As crenças: entre as palavras, por Lilian Laranja

Este Artigo em PDF

Lilian Laranja é mestre em Ciência Política pelo PPGCP da UFF. Trabalha no Departamento de Comunicação da Petrobras.

_______________________________________________

Resumo

Em “Ceticismo e Política”, Cesar Kiraly (2013) estabelece um vínculo condicional entre a pregnância de uma crença e sua dimensão de silêncio. Por essa leitura, a crença não se faz instituir por alguma capacidade de eloquência, mas por um modo não discursivo de gerar significados. Resta algo de enigmático: de que natureza seria o silêncio constituitivo; e como este se relacionaria com a linguagem e a instituição sa crença? O presente texto procura contribuir com tais reflexões, desde o enunciado de Kiraly e contando, sobretudo, com o referencial da teoria da crença de David Hume. Num primeiro passo, constatamos o inefável na concepção de crença na filosofia do escocês e o relacionamos com o silêncio apontado por Kiraly. O silêncio da crença reside na dimensão tácita do associacionismo operado pela imaginação, que articula as repetições da experiência. Podemos pensar sua expressão como exterioridade de intensidades, que se manifestam pelas ações e pelos hábitos, meios pelos quais as crenças ganham pregnância no mundo social. Num segundo sentido, com contribuições de Merleau-Ponty, passamos a tratar da possibilidade de expressão da crença pela linguagem, e também da linguagem ser compreendida como uma crença, enquanto força significativa e social. Na medida em que a crença ganha pregnância e se fixa, fecunda o mundo de sentidos e se institui como enunciado. Por fim, o texto argumenta que a distinção entre os campos da crença e do acreditar, proposta por Kiraly, nos permite apontar relações potenciais entre os conceitos de crença, linguagem, experiência e agência, que, espera-se, sejam fecundas ao campo da política.

Palavras-Chave

David Hume; Crenças; Enunciação

Abstract

In “Ceticismo e Política” Kiraly (2013) establishes a conditional link between the fixation of a belief and its silent dimension. In this perspective, a belief is not constituted by some sort of eloquence, but by a non-discursive way of giving meanings. However, some questions may be raised: what would be the nature of such silence, and how would it relate to language and the institution of belief? Relying mostly on the theory of belief of David Hume, this paper seeks to contribute to such reflections. In a first step, the ineffable in Hume’s conception of belief is adressed and related to the silence pointed out by Kiraly. The paper argues that silence lies on tacit associations of repetition from experience articulated by the imagination, and advances the expression of beliefs as intensities exteriorized and shown by actions and habits, the way they find adherence in the social world. In a second sense, it brings contributions of Merleau-Ponty in order to address the possibility of beliefs finding expression in language, and the possibility of language itself be understood as belief, i.e. a social force that establishes meaning. As belief gains adherence and fixation, it would sustain the social world by setting itself as statements. Finally, it argues that the distinction between forms of belief as tacit reasoning and the act of believing as deliberative choice, proposed by Kiraly, allows us to point out fresh relations between the concepts of belief, language, experience and agency, with potentially fruitful implications to the field of politics.

Key Words

David Hume; Beliefs; Enunciation

_______________________________________________

A capacidade de pregnância da crença dá-se em doses quase insuportáveis de silêncio.

Cesar Kiraly

Em “Ceticismo e Política”, Cesar Kiraly estabelece um vínculo condicional entre a pregnância da crença – modo de colonização do mundo social – e sua dimensão de silêncio. Por essa leitura, a crença não se faz instituir por alguma capacidade de eloquência, mas antes por um modo não discursivo de linguagem e comunicação. Reside algo de enigmático: de que natureza seria este silêncio; constituinte ou constituído pela crença; e como se faz representar em linguagem.

Partiremos da afirmação sobre pregnância e silêncio para dobrar o tema em reflexões. Comecemos, a modo humeano, pelo elemento mínimo do enunciado, e este é a crença.

1. O ato da crença

David Hume elabora a noção de crença como um modo específico que tem a natureza humana de conferir sentido e ordenação ao mundo, emblemática do ceticismo filosófico do autor. As impressões são os primeiros elementos da percepção, modo humano de acessar o mundo, e de o mundo se vincular ao humano. A partir das impressões, as ideias são elaboradas na mente, mas restam menos vívidas e plásticas do que as impressões originárias. A definição da crença se inscreve entre esses dois elementos – impressões e ideias. Trata-se de uma ideia alterada em seu grau de força e vividez, em sua intensidade como nos diz Kiraly, uma “ideia vívida produzida por uma relação com uma impressão presente”, mecanismo que o autor classifica como inventor da vida social. A operação da crença vincula as concepções do entendimento à experiência do mundo, que tem sua origem e força nas impressões.

Desse modo, a epistemologia humeana concebe uma certa ontologia do ser no mundo como imanência da experiência. Ao empirismo, no entanto, devemos acrescentar a centralidade que Hume confere à faculdade da imaginação. A crença, como operação mental, é também um hábito da imaginação, manifesta no ato de estabelecer relações não aparentes entre objetos, como as de causa e efeito, e de derivação. O ato de implicar, da experiência de um objeto dado ou observável, um outro objeto – que não nos é apresentado na experiência -, não é uma faculdade da razão. Trata-se de uma operação realizada pelo hábito e por um princípio de associação, promovido pela imaginação (Deleuze, 2006). Deleuze interpreta o pensamento de Hume em duplo registro: um atomismo, que mostra como as ideias ou impressões sensíveis remetem a minima punctuais que produzem o espaço e o tempo; e um associacionismo, que mostra como se estabelecem relações entre esses termos, sempre exteriores a eles.

2. O desencontro entre Hume e as palavras

Tomar as impressões como modo primário de conhecimento humano do mundo pode nos conduzir à subjetividade das operações mentais. Por esta leitura encontramos um subjetivismo na filosofia de Hume que pode levar a um certo solipsismo do sujeito de conhecimento. Flew (1997) sintetiza o conflito no artigo Private Images and Public Language, que em seu título resume a tensão entre impressão, como processo mental no interior do sujeito, e a dificuldade de acesso à imagem mental pela via da linguagem, instituição da vida pública. A tensão se assemelha ao que Kiraly denomina a visualidade – propriedade do que não é visível porque não se mostra ao olho, mas é visualizável – e a visibilidade. À crença incorre a ambivalência entre um lugar e outro; visualizável, mas nem sempre visível. Porém Kiraly nos lembra que “aquilo que está encoberto não deixa de estar no mundo, não deixa de possuir visualidade”[1], portanto não deixa de produzir efeitos ou derivações de si.

A operação de gerar crença em um fato ou ideia, de conferir-lhe intensidade, Hume classifica como um dos maiores mistérios da filosofia, ainda que possa ser tomado como um problema insuspeito. O filósofo admite não encontrar palavras para expressar sua compreensão a esse respeito. Sua aposta dá conta de que a crença é uma ideia que difere de uma ficção na maneira como é concebida. “Mas quando pretendo explicar o que é essa maneira, não consigo encontrar nenhuma palavra plenamente satisfatória, sendo por isso obrigado a apelar para aquilo que cada um sente, a fim de lhe dar uma noção perfeita dessa operação da mente.”[2]

O inefável na concepção da crença nos tem a dizer sobre o vínculo anunciado por Kiraly entre silêncio e pregnância. O silêncio de Hume, provocado por um certo subjetivismo, espelha uma ausência de vocabulário discursivo preciso, que permitisse ao filósofo a elaboração e comunicação plena de suas concepções. O silêncio se instala como impossibilidade. Como define Merleau-Ponty (2012), a ausência do signo da linguagem está no campo do indistinto . Hume não pode elaborar uma explicação para a pregnância da crença – somente senti-la – não apenas porque não encontra palavras para descrevê-la, mas pela ausência de um princípio de distinção que permitisse a ele circunscrevê-la.
Mas o sentir prescinde do falar. Em Hume a crença se enforma e se revela como uma maneira de sensação que faz com que a ideia na qual se confere credulidade exerça um peso maior no pensamento. Não se trata de racionalidade ou logicidade própria de um conceito, mas de uma sensação de estabilidade. Uma ideia que recebe o assentimento é sentida de maneira diferente de uma ideia fictícia, apresentada apenas pela fantasia, nos diz o filósofo. Vemos que a crença, para assentar, está invariavelmente vinculada a uma experiencia que se revela como realidade presente, por meio da memória ou do sentimento. A crença se exprime menos pelas palavras – significantes que não trazem em si a qualidade de verdadeiro ou falso – do que na sensação de encontrar uma correlação entre os significados e a experiência.

Hume também nos diz que os hábitos, como repetições, operam antes de haver tempo para reflexão, de forma que a experiência pode produzir uma crença e um julgamento de causas e efeitos por uma operação “secreta”[4], inconsciente, sobre a qual não houve ato de pensar. “Quando estamos acostumados a ver duas impressões conjugadas, a aparência ou ideia de uma imediatamente nos leva à ideia da outra”[5], a constatação descreve a operação da associação de ideias e nos abre caminho para relacionar suas teses com as noções de inconsciente depois desenvolvidas por Freud. A operação “secreta” da mente se classifica como uma dimensão opaca e tácita, que é constitutiva da crença, na filosofia humeana.

Podemos pensar que o que Hume cala sobre a operação de gerar crença tem algo que ver com o silêncio apontado por Kiraly, como constituinte da própria instituição da crença. Parece-nos que o silêncio como condição para pregnância se sustenta na concepção de crença como operação cognitiva involuntária ao sujeito. A dimensão que Hume não consegue descrever, essa dimensão silenciosa porque não enunciável, não teria portanto uma abertura à explicação, seria parcela não objetivável que reside na crença.
Nesse sentido, as noções humeanas se beneficiam das desenvolvidas por Freud: ambos tratam da linguagem pictórica do pensamento – em Hume, pela força das impressões associada à imaginação; em Freud, explicitadas em sua teoria sobre os sonhos (Kiraly, 2013). A involuntariedade e a inconsciência aproximam os autores. Na conjugação Freud-Hume, proposta por Kiraly, as ações são sempre significativas porque relacionam dor e prazer às crenças.

3. Experiência e expressão

Mas as crenças não subsistem na subjetividade dos sujeitos se estes forem vistos como individualizados. Não estamos a falar sobre imagens privadas, mas sobre imagens públicas. Para dotar a experiência de sentido, as crenças precisam se sistematizar no mundo social. Kiraly enfatiza que não há crença de um homem só, e que não somos senhores de nossas crenças.

A crença tornada individual perde a circunscrição de crença. Para o regime individual guardamos da crença o nome opinião ou disposição para acreditar. A convergência entre opinião e crença não é necessária.[6]

A crença é mediadora entre nós e o mundo, e por isso incontornável. Pensá-la como subjetivismo ou psicologismo talvez só se sustente se aderirmos a uma concepção de natureza humana individualizada, encapsulada. O ser no mundo de Hume não só é feixe de sensações, mas se inventa como Eu em relação ao Outro. Sistemas de crenças dependem do mecanismo cognitivo de adesão, e este não está no campo da voluntariedade, mas no da necessidade. Uma crença é “uma estrutura cognitiva e social da natureza humana, cuja expressão é a adesão necessária à experiência ”, nos diz Kiraly. Assim, a escolha entre as crenças a que vamos aderir não se abre para nós, é uma opção que não se coloca. Resta buscar compreender os processos de propagação e adesão das crenças públicas, sua comunicabilidade, que permite a constituição de mundos sociais.

Numa primeira aposta, enfatizamos o vínculo que se estabelece entre experiência e impressões pela teoria humeana. Se há algum solipsismo (como o do cogito de Descartes) no ato de crer fundado nas impressões, este se desfaz na medida em que há uma comunalidade na experiência – dotada de visualidades. Kiraly já ressalva que a estrutura cognitiva da crença depende diretamente da sociabilidade.

Para compreender o modo da crença de ganhar pregnância na experiencia coletiva é preciso novamente recorrer a Hume. A filosofia da crença explicita a inclinação da natureza humana a buscar regularidade na experiência e por isso deve ser compreendida pelo princípio do hábito (Kiraly, 2013). A crença é operadora das relações que a mente estabelece entre os objetos na forma de hábitos de crer e de associar ideias – as operações mentais naturais ao humano. Confere importância às ideias, as fixa na mente e as torna os princípios reguladores de nossas ações, tal que os humanos agem no mundo conduzidos por suas crenças (Lessa, 2011).

Em circularidade, a dinâmica do sistema de Hume poderia ser explicitada mais ou menos do seguinte modo: o ato de crer se estabelece como um hábito, que, pela experiência, conduz a imaginação a associar ideias e a estabelecer crenças, de forma a sustentar regularidades nas ações humanas. Por meio da instituição de regras, se confere previsibilidade e probabilidade ao mundo; mecanismo que parece oferecer alguma estabilidade e tornar viável a agência humana sobre o estado de coisas.
Se o ato de crer é análogo ao de respirar, como nos diz Hume, restará à natureza humana repeti-lo, como hábito involuntário e necessário. “Não existe voluntariedade da crença porque são provenientes da experiência com todos os seus hábitos. A adesão a uma crença não é uma liberdade, mas uma necessidade. Assim, a vontade é apenas um dos elementos compositivos do mundo, mas não o mais importante, o que significa dizer que não é condição suficiente”[8].

O silencio de que nos fala Kiraly parece residir no processo inconsciente de concepção da crença, em algo que a torna incognoscível em si mesma. Essa dimensão será advinda da força da impressão que se abate sobre os sentidos dos sujeitos. A marca da impressão confere materialidade às ideias, corporifica-as ao sujeito de modo a suscitar uma duração no tempo. Assim, o caráter habitual e tácito da crença é aquilo que a torna irrefletida, mas que conduz os sujeitos à ação.

Recorrendo ao entendimento de Aristóteles, a expressão da crença se dá pela realização de sua potência como ato – ação. Comunica em sua dimensão tácita pela repetição a que conduz. “Cremos, e por isso criamos os objetos e suas realidades, e aderimos ao mundo que criamos. O hábito impede a voluntariedade, como mecanismo inconsciente.”[9] A crença se exprime pelas ações e regularidades, e se cristaliza em instituições. Pela propriedade de visualidade, fecunda imagens visíveis, em uma “demiurgia inconsciente do mundo”, nas palavras de Kiraly. Os hábitos conferem a intensidade necessária para as modalidades da instituição. Nesse modo, podemos pensar a expressão das crenças como duplo da impressão: uma exterioridade de intensidades, que se mostra pelas ações e pelos hábitos e dessa forma ganha pregnância no mundo social.

4. Um modo eloquente

É plausível dizer que as regularidades operam como significantes de crenças, ou como índices na concepção de Kiraly. Enunciam tanto, ou mais, pelas repetições na materialidade, como pelo discurso. Hume pouco nos diz sobre a linguagem. Mas talvez seja a língua a crença mais naturalizada, mais instituída, e o primeiro índice da comunalidade na experiência. Merleau-Ponty nos mostra a comunicação da linguagem como a cristalização de uma intenção significativa e o renascimento dela no Outro, que a recebe. O que sustenta a invenção de um novo sistema de expressão é o ímpeto dos sujeitos falantes para se compreenderem. Pelo vocabulário humeano, a operação da linguagem, para se fazer significativa, deve mobilizar impressões e imagens, e esta é nossa segunda aposta.

Na antropologia cética, as ideias, assim como impressões, são imagens que podem se fazer discursivas porque inscrevem objetos pictóricos. Se as ideias se concebessem como imagens apenas quando vinculadas às impressões originárias, parece que o mundo fabulado por Hume atrofiaria em seu indutivismo. Mas temos a imaginação como condutora do entendimento. A imaginação inventa ideias sobre ideias (ou imagens sobre imagens, em outros termos), permite a formação de abstrações e de ideias sobre o que não é visível. Podemos pensar que estas ideias de ideias também podem se constituir como experiencia; experiência pelo discurso a motivar novas impressões. Pela mobilização de novas imagens, na experiência da persuasão, alguma opacidade pode se fazer enunciado. Não se trata de recorrer à filosofia da linguagem para buscar visualizar a crença no suporte da língua, mas pensar em crenças como constituidoras de formas de vida que são mobilizadas e significadas também pela linguagem.

Não podemos afirmar categoricamente que a linguagem pode se constituir experiência a ponto de criar ou instituir novas crenças. Pelo caminho do ceticismo clássico, podemos afirmar que as imagens que a linguagem discursiva oferece podem causar perturbação às crenças. Não criam mundos, mas podem alterá-los, afirma Kiraly. Se a linguagem é capaz de mobilizar a imaginação a fabular imagens, as impressões se darão na medida em que as imagens forem capazes de dotar o mundo de significado, e portanto de crença.

Assim como os sistemas de crenças, a linguagem se mostra como um horizonte do qual não podemos nos desprender ou abster. Mas ao aderirmos ao sistema de crenças de Hume, não podemos afirmar que a linguagem discursiva é capaz de abarcar tudo o que nos oferece a experiência. A linguagem é afetada e subsiste pela tensão entre o que é signo instituído e a energia e intensidade que animam a significação, que a tornam expressiva porque pode ser reinventada, possibilidade que se oferece pela conservação de algum silêncio, conforme a passagem de Merleau-Ponty:

A fala por um lado retoma e supera, mas por outro conserva e continua a certeza sensível, jamais penetra inteiramente o silêncio eterno da subjetividade privada. Este prossegue por baixo das palavras, não cessa de envolvê-las. A linguagem exprime tanto pelo que está entre as palavras quanto pelas próprias palavras, tanto pelo que diz quanto pelo que não diz[10].

A linguagem não pode apreender de todo o sentido da crença, tampouco a crença pode se fazer inteiramente discursiva. É como se um enigma residisse no ato de crer, uma intensidade que é necessária à própria linguagem. Dessa forma, a crença não se faz translúcida ao enunciado. Kiraly nos diz que alguma opacidade deve ser concedida aos sistemas de crenças, a cognição completa não é desejável.

Nesse ponto voltamos ao silêncio de Hume sobre a operação de gerar crença, esta que o filósofo sintetiza como um “sentir”. Kiraly encontra as palavras que faltaram a Hume ao tratar do conceito de evidência. A noção de evidência elaborada por Fernando Gil nos oferece vocabulário para a conferência de credulidade: uma certa intuição que se apresenta como certeza, a transmissão de intensidade de impressão à ideia. A evidência é silenciosa e opera como ligadura entre crença e experiência. Como já nos diz Hume, as palavras não carregam o predicado de verdadeiras ou falsas por si só, portanto não podem sozinhas conferir crença. O predicado de verdadeiro e falso está relacionado à referência mobilizada pelas palavras ao mundo comum, portanto, à experiência, e a seu rebatimento no sujeito pela significação e pela evidência. A enunciação será quanto mais verdadeira conforme a quantidade de evidência que será capaz de suportar (Kiraly, 2013).

5. O sistema em movimento

Do exposto, podemos inferir que a crença se insere mais no espectro do significado do que no do significante, adotando terminologia de Ferdinand de Saussure. Contém uma dimensão de silêncio, porque oculta e tácita, e outro de enunciação, porque conduz às regras – de ação ou de linguagem. Os elementos de silêncio e de enunciado constituem uma fonte de ambivalência da crença. A inscrição de significado percebido como realidade – aquele que dota o mundo de sentido – sedimenta a crença. O significado sobreposto pela crença se institui no mundo público, como possibilidade de investigar a realidade das coisas e de denominá-las em um universo de referência comum, pelo meio da linguagem (Flew).

Na medida em que a crença ganha pregnância e se fixa, fecunda o mundo social de sentidos e se institui como enunciado. Instituição, assim, pode ser entendida como cristalização da crença como significado, processo movido pela crença e pelo princípio dos hábitos, mobilizados pelas relações entre desejo e medo, pelas matrizes de prazer e dor (Kiraly 2013). Porque vinculada à experiencia, a crença se inscreve no tempo e no espaço, não pode ser concebida fora dessas categorias, portanto precipita na historicidade – pode ser compreendida como narrativa, e não como axioma. A sobreposição de inscrições significativas sobre a disponibilidade precisa de alguma abertura à duração e à cognoscibilidade, diz Kiraly. A instituição estabiliza as ambivalências, fixa a crença e constrange a imaginação, pode assim reduzir a polifonia – o que não significa reduzir a pluralidade de mundos, tampouco dizer que isso seja desejável.

Talvez a dinâmica em que possamos pensar com a mobilização de imagens pela linguagem esteja mais no campo do acreditar do que no da crença. Aquilo em que acreditamos se refere ao que pode ser verbalizado e comunicado, à opinião, aquilo que é mais aberto à reflexividade e à volição, porque originário da imaginação consciente. Está no campo da liberdade. Menos vinculado à materialidade da experiência do que a crença. A preservação do mundo, nos termos de Kiraly, está em acreditar no que cremos.

A dissuasão entre o acreditar e o crer – entre sistemas de crenças e de vontade – consiste na reinvenção dos mundos e na modificação das instituições (Kiraly). “As crenças são inconscientes e o acreditar é consciente. O intervalo entre crença e acreditar fornece as projeções da arte da fabricação de mundos: pictóricos e políticos.”[11] Nesse intervalo, se abre o espaço e tempo à voluntariedade e ao agenciamento: “A natureza humana pode produzir pela vontade eventos críveis, cuja proporção de hecceidade marcará o apelo da conversão em crença.”[12]

Neste enunciado Kiraly chama atenção para a proporção de inintencionalidade e certa aleatoriedade dos processos de geração de crenças, na medida em que podem ser tratados como singularizações que não se fazem pelo agenciamento de sujeitos. O conceito de hecceidade recuperado de Deleuze e Guattari (1997) remete a um agenciamento que abriga ou libera o acontecimento naquilo que ele tem de não efetuável por pessoas, uma individuação que se forma pelas composições de potências ou de afetos não subjetivados. Poderia expressar o processo difuso pelo qual assentam significados e crenças pelo princípio dos hábitos.

Kiraly também nos diz que a tendência dos sistemas de crenças é se tornarem imperceptíveis. Nas formas das instituições políticas, o hábito apaga os contornos das crenças, olhamos para as instituições como entes naturalizados. A imaginação imagina menos, com relação a certos temas. Dá-se o lugar do mal-estar na antropologia cética, nos termos do autor. Na medida que as instituições se cristalizam, se naturalizam e constrangem a imaginação. O problema é similar ao apontado por Merlau-Ponty sobre o processo de esgotamento e renovação da linguagem:

Exprimir-se é um empreendimento paradoxal, uma vez que supõe um fundo de expressões aparentadas, já estabelecidas, e que sobre esse fundo a forma empregada se destaque, permaneça suficientemente nova para chamar atenção. Trata-se de uma operação que tende a sua própria destruição, uma vez que se suprime à medida que se propaga, e se anula se não se propaga. (…) As línguas só são tão sensíveis às intervenções da história e a seu próprio desgaste porque são secretamente ávidas de mudanças que lhes deem o meio de tornarem-se expressivas de novo.[13]

6. Algumas considerações

A imagem do mundo que construímos com Hume e Kiraly nos mostra a propagação de regularidades fundadas em sistemas de crenças capazes de gerar significados e se cristalizar como instituição. Como exemplificado por Merleau-Ponty no objeto da linguagem, as repetições, na medida em que se propagam, tendem a se alterar, pois de outro modo se esgotariam em sua própria reprodução e se desvinculariam das crenças que lhe ofereceram significados – como na descrição da miniaturização da natureza humana. São necessárias rupturas nas regularidades, estranhamento entre o crer e o acreditar, o deslocamento de crenças.

Uma interpretação que saliente em Hume apenas seu empirismo será enviesada por uma chave conservadora, que hiperboliza a projeção da experiencia passada no futuro e o papel da tradição no pensamento do autor. Não é prudente ignorar a predominância que ele confere à faculdade da imaginação, e que exerce papel preponderante na fabulação de mundos. No mundo da antropologia cética não estamos amarrados à experiencia a ponto de fazê-la perdurar como ideia de futuro, apoiados em puras repetições e na justificação de que algo “é porque sempre foi”. Tampouco aderimos à negação e destruição do que há pelo vocabulário da transformação. As crenças se fixam, mas conferem plasticidade ao mundo. A ruptura ou deslocamento de crenças se dará no sentido da transfiguração – a alteração da paisagem pela inscrição de objetos pictóricos. Será campo da imaginação a fabulação inventiva de mundos, a associação de imagens, o acréscimo de objetos na composição, a inscrição do preto na disponibilidade do branco, para usar o vocabulário proposto por Kiraly. Esses modos de voluntariedade, porém, apenas serão capazes de exercer alguma eficiência se atrelados à experiencia, compostos com a não voluntariedade dos sistemas de crenças, nos alerta o autor. Construímos o mundo, portanto, a partir do que a materialidade da experiência nos permite construir e imaginar. Os artefatos que imaginamos só ganham pregnância se causarem rebatimento nos sistemas de crenças que nos vinculam à experiência, dos quais não podemos nos depreender – de outro modo os saltos alucinatórios movidos pela imaginação se configurariam como delírios. No entanto, o processo de fabulação de imagens e de inscrição de objetos não se dá necessariamente de forma fluida ou unívoca. Tratamos um pouco dos modos de linguagem e pregnância das crenças para colonizar os mundos que criam. Mas também é importante dizer que esses processos tendem a seres marcados pela polifonia, movidos por desejos divergentes de futuros, e em nada imunes ao conflito, ao dissenso, e a mecanismos da dor e do medo.

___________________

[1] KIRALY (2013) p. 332

[2] HUME D. 1740 loc. 151

[3] MERLEAU- PONTY (2012). “Do mesmo modo que o campo visual, o campo linguístico de um indivíduo termina no indistinto.” p.70

[4] HUME D. 1740 loc 163

[5] Ibidem. loc 161

[6] KIRALY (2013) p. 213

[7] Ibidem. p. 315

[8] KIRALY (2013) p. 314

[9] KIRALY (2013) p. 314

[10] MERLEAU-PONTY (1997) p. 86

[11] KIRALY (2013) p.226

[12] KIRALY (2013) p 185

[13] MERLEAU-PONTY (1997) p.75

___________________

Bibliografia:

 DELEUZE, Gilles. A ilha deserta. São Paulo: Iluminuras, 2006.

DELEUZE, Gilles. e GUATTARI, Felix. Mil Platôs, Capitalismo e Esquizofrenia. Vol. 4 São Paulo: Editora 34, 1997

FLEW, Antony. Private Imagens and Public Language in: Hume’s Philosophy of Belief. Bristol:Thoemmes Press, 1997

HUME, David. Treatise of human nature, 1740. Ibooks Edition

KIRALY, Cesar Ceticismo e Política. São Paulo, Giz Editorial 2013.

LESSA, Renato. Crença, descrença de si, evidência. in: Adauto Novaes (org.) A invenção das crenças. São Paulo: Edições SESC SP, 2011. pp 343 – 376

MERLEAU-PONTY, Maurice. A Prosa do Mundo. São Paulo: Cosac Naif, 2012.