Crítica sobre a exposição Simetrias na Galeria d’art Estrany . de la Mota em Barcelona.
Pois que me derrama, láctea: Sara Ramo
: – Algumas crueldades vítreas, é como entendo essa última exposição de Sara Ramo. Na contraposição entre grandes maldades e maldade nenhuma, própria ao nosso mundo bipolar, esquecemos que a ambivalência nos governa muito mais do que a brincadeira de mau gosto dos inimigos. Somos amigos de nossos inimigos e odiamos os nossos amores e ninguém tem nada com isso. Disso, surgem dois conjuntos de questões: i; mas o que são essas pequenas maldades tão exploradas por Ramo? ii; Em se perceber a crueldade, por que denominá-la vítrea?
– : Em algum lugar do início século XX, mas ainda com ares de século XIX, um homem muito importante chamado Schreber, outrora presidente da Corte de Apelação da Saxônia, escreveu suas memórias. Nos relatos dele encontramos um mau delírio. Mas são muito sábias as suas memórias. Ele descreve como seu pai era rigoroso. Sabemos, por outras fontes, que os rigores paternos eram extremos, que escrevera, inclusive, um livro sobre ginástica doméstica, com vendagem muito boa, e por isso era muito famoso. O aumento de trabalho na Corte – honra quanta honra – fez com que Schreber ficasse um pouco mais agressivo, até mesmo arredio, mas tratado que foi pelo doutor Flechsig, tudo restou bem. Sua esposa, por muito agradecida, tinha até mesmo uma fotografia do médico em sua penteadeira. Schreber, depois de um tempo, adoeceu de novo, e fez de seu delírio coisa ainda maior, imaginava vários Flechsigs, alguns perseguidores outros salvadores. Um pequeno, um médio e um grande. E vários pais. Um pequeno, um médio e um grande. E vários Deus. Um pequeno, um médio e um grande. Deus, Pais e Flechsigs não eram bons e maus, mas bons ou maus. Num instante um ser pleno de onipotência e bondade, no outro, ser pleno de onipotência e maldade.
p. 27 “Não raro, os raios divinos, aludindo à emasculação supostamente iminente, acreditavam poder zombar de mim como ‘Miss Schreber’ – Isso, quer ser um presidente da Corte de Apelação e se deixa f… […] Não se envergonha diante de sua esposa? […] Eu não veria razão para mostrar tanto pudor em assunto tão sério”.
Ou um completo domínio sobre as coisas vivas, ou completo sobre as coisas mortas. “[…] Deus, habituado ao trato com os mortos, não compreende os vivos”. E por essa razão Schreber não podia ser homem e mulher ao mesmo, ele precisa ser apenas mulher, para receber a beatitude de restaurar a ordem do mundo. “[…] Deus, de acordo com a Ordem do Mundo, não conhecia verdadeiramente o homem vivo , nem precisava conhecer, mas sim, de acordo com a Ordem do Mundo, só tinha relações com cadáveres”. Há musicalidade em Schreber? Sim, mas atenta. Há imagem em Schreber? Sim, mas presa. Qual o destino de Schreber? Cindir o mundo em dois, aquele dos sistemas abertos e outro dos sistemas fechados.
: – Sim, ela gira em torno de si. Na insignificância comparada. – Ela é insignificância comparada, mas que se percebe em ângulos abertos, em parede desbotada, e se respinga por sobre os tacos da sala, em cor vítrea, bagunçada, ela é maior nos pequenos respingos que se afastam do que no centro transparente. Ainda assim, na falta de rodapé, ela é tudo o que temos e nada. Nada é tudo! Nada é tudo? Pois são delimitados por horizontes de eventos, sim, eles mesmos, os buracos negros, onde antes havia láctea, não é negro sobre o branco, é espaço ovalado, camuflado, no canto. Mas por fim, fica bastante claro que parede é terra. Eis, que um canto é uma cosmologia inteira. Ainda que circule em ângulos retos!
– : “Respiro em ti uma potência indefinível, tal como a potência que há no ar antes da tempestade” – dissera Valéry –, pois a densidade do ar antes da chuva, e com dia quente torna tudo tão pesado, que parece que se podem destacar pedaços volumosos como algodão doce, e comê-los. A mesma densidade pode ser encontrada no quarto vazio ou na vegetação seca, parece que o ar antes das caixas – atmosfera abandonada, com um colchão vazio, ainda quente, pelo lençol desarrumado – pode ser mordido, e por isso as caixas precisam aumentar a tensão do ambiente, elas empurram o ar para o lado, mas a densidade se faz em espaço menor, logo, muito mais sólida, frente à avalanche não há o que respirar, ou se está debaixo das caixas, ou sem ar. Mas a vegetação seca atende ao incêndio. Ele sim, consumidor de ar, seja sólido, seja denso, e para manter a incomensurabilidade que precede o incêndio, é preciso distrair as fagulhas com pequenas imagens. A fita não só intervém, como também engana a floresta acerca de seu próprio incêndio. A secura inconsciente de si não se decide pelas chamas. Ela, interrompida em corte e depois recomposta, não consegue consenso para poder queimar. Ora, não há consenso entre partes partidas.
: – Mas se o ar é tenso, de modo a ter pedaços arrancados. Então: não há ninguém no quarto. A pequena maldade é dar a impressão de que ocorrerá uma rotação perfeita. A bagunça toda será revertida? Ainda que haja uma rotação, uma espécie de dança de roda dos objetos, o descanso se dará sob disposição nova, e tal como um pedaço de madeira que se molhado empena, os móveis cedem a uma linha invisível que os atrai todos juntos. A ciranda precisa ceder a essa linha de confabulação. Todavia, ao invés de termos uma dança entre móveis, poderíamos ter uma invasão? Ou tal não seria possível? De cada fresta poderiam não escapar ratos ou baratas, mas pedacinhos de carvão, desses que acendem o inverno. Ou não poderiam? Esses pedacinhos de carvão não acesos, numa crescente inveja à consumação de ar feita pelas chamas em suas epidermes, poderiam se agremiar para retirar o ar da sala por multidão. Não parece? Mas a realização seria menos cruel do que o panorama? Não seria? Por isso, Ramo deixa o espaço vazio por sobre o espaço cheio de carvão. Para mostrar que o mau delírio é muito pequeno e pode muito pouco.
No mau delírio não existem palíndromos, mas jogo de palavras-mundo, ele nos retira a imagem, e apenas nos retira, mas no bom delírio os palíndromos se mostram como compartilhamentos de essências. Se no mau delírio não existem palíndromos, então uma mulher é só uma mulher, e um homem apenas um homem. Não existindo confusão entre os gêneros, havendo gêneros, então a Um é vedada a solidão que constitui o outro. A Um é passível a solidão em turba, em massa, em multidão, em rebanho, em auditório, em casa etc. Ao Outro seria possível apenas a solidão do abandono. Ramo nos mostra que é uma infelicidade quando os palíndromos nos são vedados. Num bom delírio não perguntam por homem ou mulher.
– : A fantasiaDesejo – Wunschphantasie – parece sempre ligada a uma sorte de delírio um pouco estranho. Pois nela existe o desejo de esgotamento dos cantos, ou, quando absoluta, de extinção dos cantinhos. Mas o que viria a ser um cantinho? Mas a forma fantasiaDesejo capaz que é de substituir o mundo por um mundo outro – ainda que seja pela simples substituição da lógica do mundo por uma nova, ainda que seja pela substituição do mundo por outro idêntico,menor, maior, mas com pequenas partes essencialmente faltantes, onde antes a falta era circunstancial – é por demais bela para que se deixe capturada completamente pelo mau delírio. O que viria ser um cantinho? Na fantasiaDesejo a imagem é deixada de lado, por um organismo vivo. Ele pode ser turvo, ele pode ser dançante, agônico, pode ser em forma de claustro-claustro, ou de claustro-janela. Ele pode ser quase tudo que não imagem. Desde que se mantenha organismo vivo. Mas o que é um cantinho? Ele é o que sobra do conflito entre a expectativa – Erwartung – e a rememoração – Erinnerung . A fantasiaDesejo, quando feliz, decompõe o que a história condensa. Eis, pois, um cantinho. Não é mesmo, que pode caber um mundo na mala? Por que não haveria um cantinho, entoado a caixas sonoras, dedilhadas a metal doce, para meu corpo? Por que não haveria no cantinho, cruelmente escondido, um punhado de migalhas de vidro, que confundidas com poeira, poderiam me arrancar algumas gotas de sangue do dedo?
Cesar Kiraly é professor de Teoria Política da UFF.