Crítica sobre a instalação meridiano (o mu(n)do entre nós) de Rebeca Rasel na exposição coletiva Entre-Vistas na EAV Parque Lage.
Rebeca Rasel: Entre o Retalho e o Meridiano
Em um lance de dados, se desejamos um resultado específico, precisamos de alguma forma desejá-lo. Não que o desejo possa fazer algo pelo acontecimento. Não afetaremos a disposição final dos dados, por termos com nossas mentes pressionado o acontecimento com espera ansiosa. Mas precisamos desejar, para dar alguma chance ao acerto. Qual a natureza dessa decisão? Aposto que seja a crueldade. Assim, no ato de decisão é preciso que se deseje sinceramente um resultado em detrimento de todos os outros. O que poderá acontecer? Ora, se o desejo for sincero – por assim dizer, apaixonado –, ter-se-á dor. Pois, a não ser que desejemos com ardor todos os lados dos dados lançados, a chance de não termos o que precisamos é sempre maior do que a de termos. Mallarmé identificou bem esse princípio, um lance de dados é muito mais relacionado com a crueldade contra si do que com a sorte. Não quero dizer, contudo, que se trate de ter prazer com a crueldade, não precisamos ser tão tendenciosos, mas admitir que a sorte, muito embora coisa boa, não é suficiente para nos fazer lançar.
Rebeca Rasel atua no lance de dados. Um pouco porque seu trabalho segue um belo rastro deixado pelos dados de Mallarmé, e ondulado pelos caligramas de Apollinaire. Um caminho difícil, como todo aquele que segue uma homologia. A indiscernibilidade da poesia com a sua visualidade, por um lado, e a visualidade que toma ares de ação poética sobre o tempo. Mas isso que é necessário para que um lance de dados seja um lance de dados, Rasel, numa certa dimensão, espalha para outros cantos. Trata-se de procurar uma determinada carta perdida. Um tipo de olhar entre os casais. Um específico rosto num selo. Se o papel não possui, como os dados, a destreza física de saltar sobre seu próprio eixo, enquanto é vitimado pela expectativa que não poderá corresponder, Rasel supre essa falta com uma máquina associativa. Existe algo que saltita internamente ao papel, que expõe as suas partes passíveis de escolha, Rasel deseja apenas uma dentre as muitas – exercita uma intensa crueldade -, e retalho. A possibilidade de um retalho ser capaz de funcionar na máquina associativa é sempre muito diminuta, por essa razão todo retalho certo é uma felicidade um pouco melancólica.
Foi Celan quem nos deu o nome para sermos capazes de compreender o que liga um retalho ao outro, num texto lido no dia 22 de Outubro de 1960, ensaio escrito em lance de dados, em centenas de páginas reescrito, a máquina associativa sempre frustrada, o eco em dízima dos erros, para encontrar apenas o número escolhido, crueldade após crueldade, para ter apenas, e melancolicamente, o esperado. “[E]ncontro algo que me consola também de ter andado diante de vós este impossível caminho, este caminho do impossível”. Um lance de dados-alfabeto, para lembrar a também impossibilidade de Valéry em lidar com a própria crueldade, segundo a qual os elementos do retalho ligam-se uns aos outros pela semelhança da duração que apresentam. Aquele tempo que se interrompe sob a evidência de ter encontrado o lado-retalho certo.
Cesar Kiraly é professor de Teoria Política na UFF.