Nem tudo o que é sólido se desmancha no ar: Zizek e as causas perdidas, por Tatiana Rotolo

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Tatiana Rotolo é doutora em Ciência Política pela UNB e leciona no Instituto Federal de Brasília.

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Resenha do livro:

ZIZEK, Slavoj. Em Defesa das Causas Perdidas. São Paulo, Boitempo, 2007, 480 p.

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Já conhecido do público brasileiro, Slavoj Zizek, filósofo político, marxista e psicanalista, insere-se entre os grandes pensadores do nosso tempo. A mais recente publicação de Zizek no Brasil, Em Defesa das Causas Perdidas, é uma grande provocação aos leitores. Trata-se de um livro que, como seus trabalhos anteriores, utiliza a psicanálise e a filosofia para interpretar e criticar o mundo contemporâneo, perdido entre o suposto “fim da história” neoliberal e o que ele chama de “pasmaceira da esquerda contemporânea”. Tudo com um intuito bem claro: defender uma proposta emancipatória, de inspiração marxista, para a humanidade. Para Zizek, o marxismo e a psicanálise são as duas grandes fontes de inspiração para se compreender o mundo contemporâneo. Isto porque tanto uma como a outra são teorias dialéticas, eminentemente enraizadas na realidade. A primeira na realidade das sociedades e a segunda, na realidade da constituição dos sujeitos. Em ambas, esta realidade está fincada no desenvolvimento social e histórico. Justamente por isto é que elas são chaves de leitura fundamentais nos dias de hoje: visam compreender o Real em seus recônditos mais escondidos.

Zizek parte da premissa fundamental de que é a ideologia que move o mundo atual. Tal como Marx, a ideologia está profundamente imbricada na realidade social e política.  Seu intuito Em Defesa das Causas Perdidas é desvelar como funciona a ideologia no mundo contemporâneo, isto é, daquilo que fazemos mas não sabemos que fazemos, na mais fiel filiação à definição de Marx. Isto não através de um tratado teórico ou da análise exaustiva de um ou mais autores. Ele fala através do cinema, da literatura, dos objetos de consumo, da teoria social e principalmente dos eventos e experiências políticas tanto do passado como atuais. Ele traz a tona uma antiga lição que em muitos momentos a filosofia parece se esquecer: filosofar é, sobretudo, olhar para o presente, para a realpolitik, a cultura e os fatos do cotidiano. Ou seja, ele desvela a realidade a partir daquilo que ela apresenta de mais elementar. Neste sentido, o livro do filósofo esloveno é um lúcido apelo para que não nos deixemos convencer por ideias prontas e exaustivamente repetidas. Para que não simplesmente adotemos modismos acadêmicos, alguns aspectos da pós-modernidade e algumas posições políticas de maneira irrefletida. É por isso que nosso autor faz questão de nadar contra a maré, e ressuscitar um punhado de ideias tidas como mortas e enterradas. Em outras palavras, o que Zizek faz neste trabalho é revisitar as teses do passado, com os pés cravados no presente e os olhos voltados para o futuro.

Ele endereça seu livro a seus dois adversários recorrentes: o capitalismo neoliberal, e a esquerda atual, segundo ele, insípida e incapaz de construir uma contra-hegemonia robusta o suficiente para combater os desmandos do neoliberalismo. É justamente tendo em vista esses dois alvos principais que o filósofo esloveno evoca as experiências revolucionárias condenadas: o socialismo de Estado, o partido de vanguarda, o stalinismo, a Revolução Chinesa e o terror revolucionário jacobino. Seguindo a trilha de seus trabalhos anteriores, as causas perdidas a que se refere Zizek são retomadas por ele sob um novo olhar, não no intuito que defendê-las a qualquer custo, mas de revê-las, retoma-las como experiências que ainda nos tem algo a ensinar. Além disso, Zizek revê essas experiências fazendo-as dialogar com as ideias pós-modernas e pós-marxistas, numa linguagem repleta de referências atuais e valendo-se de um conceitual contemporâneo. Tal característica, de fazer um elo com ideias do passado num contexto e linguagens atuais, faz de Zizek um pensador capaz de atrair a atenção de públicos muito diversos e, em muitos momentos, refratários ás suas ideias.

Esse é um dos motivos pelos quais Em defesa das causas perdidas é um trabalho instigante e curioso. Ao rever experiências e eventos tidos como derrotados, como desviantes ou totalitários, ele percorre tais reveses visando encontrar ali um ponto de apoio para compreender questões atuais. Ou seja, revisitar experiências tão execradas significa para Zizek, encontrar nelas não apenas os aspectos negativos pelos quais elas hoje foram condenadas e deixadas de lado. Mas encontrar os pontos fracos no presente, mostrar como que aquele punhado de temas e assuntos relegados apenas ao passado, é atual e vibrante se reinterpretados a luz dos nossos próprios dilemas. Em última análise, as causas perdidas são para Zizek uma fonte inspiradora na medida em que elas respondem as fraquezas do presente. Não se pode condená-las em bloco, diz nosso autor, como a esquerda atual o fez. É preciso também reconhecer o fato de que elas, por mais cruéis e anti-democráticas que tivessem sido, realizaram, por outro lado, fatos e ações grandiosas, capazes de mudar o curso da história. É justamente este efeito turbulento e devastador, que tira as sociedades dos trilhos ditos “normais”, que para Zizek, são ausentes ou carentes nos discursos e práticas da esquerda. E, ainda segundo ele, enquanto a esquerda não for capaz de responder a altura, ela continuará perdendo o jogo nas disputas atuais.

Dividido em três grandes partes, O Estado de Coisas, Lições do Passado e O que se há de fazer, Em defesa das causas perdidas procura, sobretudo, apontar caminhos. O centro das críticas de Zizek é um só: as democracias liberais contemporâneas, entendidas como supremas e invioláveis, que, segundo nosso autor, implica num grau relativo de “totalitarismo democrático”. Isto é, pode-se falar de tudo, discursos anti-racistas, anti-sexistas, multiculturalista, desde que não se questione a validade das democracias parlamentares sustentadas pelo capitalismo. Assim, o livro de Zizek se compõe também como um ataque a presença acachapante dessa democracia neoliberal nos modos de pensar e se fazer política hoje. É nesse sentido que ele vai reler as experiências totalitárias e autoritárias: ao menos nesses momentos houve uma escapatória para a presença quase superior das formas de democracia modernas, que no mundo contemporâneo são plenamente identificáveis com o a ordem capitalista. É um dos motivos que, para nosso autor, tais experiências são válidas: elas romperam de maneira radical com qualquer vestígio de uma lógica burguesa, buscando instaurar uma ordem própria e inteiramente nova. Não seria exatamente isto, segundo ele, o objetivo da luta socialista, no passado e no presente?

Assim, na primeira parte do livro, O Estado das Coisas, Zizek busca compreender o papel dos intelectuais nesta ordem dominada pela ideologia. Segundo ele a construção das ideias hoje acompanha um capitalismo fragmentado, diverso e global, e, por isso, as ideias pós-modernas também se apresentam desta mesma maneira. Para ele, a crítica atual não consegue penetrar no interior da democracia neoliberal porque ela ainda obedece a uma ordem neoliberal, em que os sujeitos são livres, para agir e pensar de qualquer maneira, desde que não questionem as estruturas fundamentais em que a sociedade contemporânea se assenta: aquelas do mercado.

O mercado, nesta ordem mundial, aceita o discurso emancipatório feminista, culturalista, anti-racista ou a tolerância religiosa, mas somente enquanto todas essas formas não coloquem em risco a sua própria existência. Ou seja, um dos objetivos de Zizek é também criticar as relações perniciosas entre a produção intelectual e as condições lançadas pelo neoliberalismo. Em outras palavras, tal como para Marx a ideologia estava profundamente imbricada na ordem política, econômica e social da vida, para Zizek, tal máxima permanece verdadeira, apenas adaptando-se as condições atuais. Seu objetivo, neste sentido, é escancarar de vez a preexistência da ideologia sob as condições atuais. Que condições são essas? O mercado global aportado pela ordem neoliberal, a ideologia pós-moderna, com seu vocabulário exótico e com uma volatilidade tão grande como o atual sistema de trocas de mercadorias pelo mundo. São essas mesmas condições, diz Zizek, que impedem de olhar para algumas experiências do passado sem prejulga-las de antemão como Gulags ou totalitarismo, sem considerarmos que esta ordem atual também produz, a sua maneira, seus próprios campos de concentração, sejam eles os campos de refugiados, a expulsão de imigrantes, a exclusão de direitos sociais mínimos de imensas parcelas da população mundial ou a falência da atividade crítica em relação a tal tragédia, tornada inativa por ter sido completamente cooptada pelos mecanismos contemporâneos de transmissão da cultura dominante. O cinema de Hollywood, para Zizek, funciona do mesmo modo como as escolas ou as sociedades de cultura burguesa eram aparelhos ideológicos para Althusser. É por isso que nosso autor discorre sobre filmes como O Código Da Vinci ou A paixão de Cristo de Mel Gibson.

Falta a crítica contemporânea um elemento essencial: radicalidade. É nesse sentido que nosso autor faz o elogio a Heidegger. Sem considerar propriamente aspectos da filosofia heideggeriana, Zizek defende Heidegger por considerar que ao aderir ao nazismo, ele não errou. Ao contrário, foi coerente e levou suas ideias às últimas consequências, mesmo que o preço por isto fosse a sua condenação como intelectual. Para o filósofo esloveno, falta à crítica atual a crença arraigada em seus próprios ideais, característica presente em Heidegger, ainda que esses ideais fossem enviesados e tivessem longe de ser emancipatórios. Zizek reivindica esta posição: intelectuais têm como missão propor e não justificar a ordem instituída, e levar essas ideias até o fim.

Com isso, a segunda parte do livro, Lições do Passado, é a parte mais instigante do livro. Ela se volta principalmente para todas as experiências mais condenadas, tanto pelos arautos da democracia parlamentar neoliberal, como principalmente por grande parte da esquerda. O stalisnismo, o maoismo, o terror revolucionário de Robespierre estão no centro das análises de Zizek. De Robespierre, nosso autor resgata a determinação de reformular o mundo a qualquer modo. Isto é, sem questionar muito sem método (que certamente são um tanto questionáveis), Zizek vê em Robespierre um revolucionário audacioso e comprometido com o projeto de transformação radical da sociedade. É justamente isso que para Zizek está ausente nos discursos da esquerda: a perspectiva de comprometimento radical com uma causa emancipatória, sem que se proceda apenas por políticas de adaptação. A verdadeira lição de Robespierre consiste, para Zizek, no fato de que para o revolucionário francês não se pode fazer uma “revolução sem revolução”. Ou seja, se se quer de fato transformar a fundo uma realidade, há um determinado preço a pagar, e, em Robespierre, esse preço foi o terror. Contudo, o foco de Zizek não está nas atrocidades do terror, mas sim no outro lado. Naquele que nos coloca a urgência de que uma revolução não se faz através de uma mudança interna nas estruturas vigentes ou do lento processo de tomada de consciência. Ao contrário, uma revolução se constrói pela destruição, às vezes radical, daquilo que existe, no sentido de ali erguer estruturas inteiramente novas.

Por fim, de Stalin, talvez o mais condenado revolucionário do século XX, Zizek revê o seu legado de duas perspectivas: a primeira como o responsável não por enterrar todas as conquistas da Revolução de Outubro, mas ao contrário, por devolver ao povo russo suas próprias origens eslavas. Ou seja, para nosso autor, Stalin negou o projeto ocidentalizante da URSS dos bolcheviques e com isso não bolchevizou a Rússia, mas sim a russificou novamente. Tal fora o grande projeto político stalinista: refazer a Rússia a maneira dos Russos. Novamente, assim como no caso de Robespierre, Zizek parece minimizar os expurgos, as mortes e perseguições procedidas durante seu regime. Mas seu objetivo neste contexto, não é condenar o regime stalinista por seus crimes. Isso a própria história se encarregou de fazer. Mais que isso, Zizek vê em Stalin um governante que procurou refazer a história de seu país a partir de dentro, com todas as suas limitações e qualidades, não obedecendo à perspectiva do “bom é o que vem da Europa ocidental” ou a postura do adotar aquilo que dizem ser o caminho mais eficiente. Num projeto de negação da modernidade, Stalin reconstruiu a Rússia a partir dos meios que ele dispunha sem obedecer a nenhuma fórmula ou projeto imposto de fora para dentro.  Tal capacidade de se reinventar com base naquilo que se tem no aqui e agora, é que falta a diversos governos de esquerda de hoje.

Além disso, outra incursão de Zizek sobre o stalinismo se dá a partir das conturbadas relações do compositor russo Dmitri Shostakovitch com Stalin. Shostakovitch encontrou nas suas composições um meio de realizar a crítica ao regime de maneira não declarada, como por exemplo, a Sinfonia n. 10, que faz um retrato de Stalin em seu segundo movimento, e a Sinfonia n. 11, uma homenagem às vítimas do Domingo Sangrento, fato que deu início a Revolução de 1095. Em suas composições, a crítica a Stalin aparecia de maneira subliminar, quase imperceptível. Para Zizek, tal atitude foi fundamental. Num regime totalitário cruel (e muitas vezes sanguinário), Shostakovitch encontrou um meio criativo que escapar da dominação: a música clássica. Suas sinfonias eram endereçadas a Stalin, mas em realidade faziam o elogio da Revolução de 1905. Segundo o filósofo esloveno, este modo de proceder nos ensina a buscar soluções e caminhos alternativos quanto todos os caminhos parecem estar fechados. Ou seja, a atitude de Shostakovitch nos mostra a capacidade criativa para realizar a crítica por caminhos nem sempre usuais, não declarados. O que os exemplos de Zizek nos ensinam é a escapar quando todas as saídas se encontram cerradas, a pensar alternativas nos momentos em que não se vislumbra saída alguma. Essa foi a lição de Shostakovitch. E, é justamente isso que o pensamento crítico carece hoje: sair das amarras do aparentemente óbvio, fugir do que é socialmente aceito, se embrenhar por novos rumos e traçar outros horizontes.

Com isso, a última parte do livro, O que se há de fazer, propõe uma saída. Numa referência declarada à sentença de Lenin, Zizek nos expõe que a saída é a contrapelo do que acontece nos movimentos de esquerda hoje. Ela não é auto-gestionada, não se dá pelas utopias das sociedades em redes tendo a internet como seu ponto de referência e muito menos ela irá emergir ex-nihilo de acampamentos em praças ou fóruns que propõem outro mundo possível. Zizek critica as saídas de Antônio Negri, por exemplo, por seu excesso de utopismo na defesa dos movimentos que emergem de baixo para cima, numa democracia horizontal. A saída também não está na democracia eleitoral, que padece de desinteresse e de influências nefastas do grande capital. Onde está a saída? Para Zizek ela reside, segundo a boa e velha tradição marxista: numa articulação entre intelectuais progressistas e a grande massa de trabalhadores. Porém, tal massa é distinta dos operários fabris dos tempos da Revolução de 1917. Hoje, ela está nas favelas e nas periferias dos grandes centros urbanos do mundo. Falta a essa grande massa a consciência revolucionária capaz de mobilizar a multidão. E, por outro lado, falta aos intelectuais progressistas a capacidade de reconhecer o potencial emancipatório desta massa. Como Zizek coloca: é mais fácil um intelectual de esquerda de Nova York dialogar com outro a Eslovênia que com a população do Harlem, que habita a poucos quilômetros de distância. Assim, Zizek faz  um elogio declarado a saídas como a de Chavéz ou Morales. São estadistas que souberam mobilizar seu próprio povo na direção de uma mudança real de vida. Não uma vida mais democrática, mas uma vida capaz de suprir as necessidades mais fundamentais. A saída, para o filósofo esloveno, pode também advir de cima para baixo, ou pode ser guiada por um Partido (propositalmente grifado por ele com “P” maiúsculo).

Assim, Em Defesa das Causas Perdidas é um livro que nos propõe uma saída na contramão do usual: retomar um projeto socialista radical, centralizado, mas adaptado às conjunturas contemporâneas. Tal leitura, embora seja assustadora num primeiro momento, nos ensina que, dentre outras coisas, não devemos jogar muitos eventos na lata de lixo da história. O trabalho do teórico social, ou filósofo político, pois não há linha divisória capaz de definir onde termina o trabalho de um e começa o do outro, é também mobilizar o passado para questionar o presente, fazer com que possamos ver aquilo que ainda não conseguimos. Neste sentido, esta obra de Slavoj Zizek, cumpre com presteza seu propósito: pôr o dedo na ferida e fazer com que sejamos capazes de rever algumas de nossas teses e opiniões.

Referências Biliográficas:

Zizek, S. Em Defesa das Causas Perdidas. São Paulo, Boitempo, 2011.

______. As portas da revolução. Escritos de Lenin de 1917. São Paulo, Boitempo, 2005.

LENIN, V. Que Fazer? São Paulo, Hucitec, 1978.

MARX, K. & ENGELS, F. A Ideologia Alemã. São Paulo, Boitempo, 2007.